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terça-feira, 15 de novembro de 2016

ORAÇÃO PELA NOSSA TERRA - Papa Francisco

Oração pela nossa terra

Deus Omnipotente,
que estais presente em todo o universo
e na mais pequenina das vossas criaturas,
Vós que envolveis com a vossa ternura
tudo o que existe,
derramai em nós a força do vosso amor
para cuidarmos da vida e da beleza.
Inundai-nos de paz,
para que vivamos como irmãos e irmãs
sem prejudicar ninguém.
Ó Deus dos pobres,
ajudai-nos a resgatar
os abandonados e esquecidos desta terra
que valem tanto aos vossos olhos.
Curai a nossa vida,
para que protejamos o mundo
e não o depredemos,
para que semeemos beleza
e não poluição nem destruição.
Tocai os corações
daqueles que buscam apenas benefícios
à custa dos pobres e da terra.
Ensinai-nos a descobrir o valor de cada coisa,
a contemplar com encanto,
a reconhecer que estamos profundamente unidos
com todas as criaturas
no nosso caminho para a vossa luz infinita.
Obrigado porque estais connosco todos os dias.
Sustentai-nos, por favor, na nossa luta
pela justiça, o amor e a paz.

 Papa Francisco

* * *

MAR DE DENTRO - Fernanda Pompeu

Mar de Dentro


       Não sei precisar quando surgiu a noção de autor. Creio ter havido épocas em que a relevância estava no conteúdo e ninguém se importava com autorias. Mas agora, já vão séculos, autores são prestigiados. Não acho ruim. Adoro quando compartilham meus textos com meu nome associado.        Dar crédito a quem de direito é justo. Outro dia li uma verdade do escritor italiano Primo Levi (1919-1987):O mundo não é justo. Mas nós amamos a justiça. Levi dedicou sua vida a contar os horrores que presenciou em Auschwitz, o tragicamente célebre campo de concentração nazista.
    Penso também que a definição de autor extrapola completamente escritores, músicos, pintores, cineastas, desenhistas, criadores de aplicativos. A autoria está presente em todos nós. No mínimo, cada pessoa é autora de grande parte de sua história. Faz alguns anos tive o prazer de conhecer uma senhora quilombola da comunidade Kalunga na Serra Geral, Monte Alegre, Goiás. Dona Procópia dos Santos Rosa, analfabeta de pai e mãe, foi a autora da escola instalada no quilombo. Ela liderou o movimento que reivindicou e conseguiu que o Estado cuidasse da educação de crianças e adolescentes na comunidade.
        Outra categoria é a dos autores incansáveis. Gente que se reinventa por várias vezes. Meu pai (1930-2013) foi petroleiro, bancário, vendedor ambulante, livreiro, agitador de massas, contador de histórias de arrebatar ouvintes. Ele gostava das pessoas. Costumava dizer que a humanidade é mais generosa do que mesquinha. Outra reinvenção incrível foi a de Cora Coralina (1889-1985), goiana como Dona Procópia. Ela publicou seu primeiro livro aos 76 anos. Não um livro bijuteria. Escreveu joias de poemas.
       Autores do destino são pessoas que arriscam pôr a cara no mundo. Empurram limites preestabelecidos. Eles gostam de observar estrelas. Não por alheamento ou falta do que fazer. Olham para o alto para ter forças em abrilhantar o pequeno. A analfabeta que viabiliza uma escola, o trabalhador que não tem medo de começar tudo de novo, a doceira que escreve poemas no caderno de receitas. A vida tem começo e fim. Mas no durante dela somos autoras e autores de caminhos.

http://www.geledes.org.br/mar-de-dentro/?utm_source=Atualiza%C3%A7%C3%A3o+Di%C3%A1ria+Geled%C3%A9s&utm_medium=email&utm_campaign=21c0d07d17-RSS-NEWS-Portal-Geledes&utm_term=0_b0800116ad-21c0d07d17-354042593#gs.Rr1z2iw

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ELE VEIO ME CONTAR! - Antonio Nunes de Souza

Ele veio me contar!

            Noites com temperaturas diferenciadas, sempre com caras de chuvas, trovões, ou nada acontecer, desci do meu apartamento e fui me sentar em um banco embaixo de uma frondosa árvore que, além de dar um sombreamento, acolhe com carinho os pássaros para seus ninhos, dormidas e orquestração de cânticos ao amanhecer!
            Comecei a pensar na vida, recordações de amigos, parentes, etc. e, quando menos esperava, olhei para o lado ali estava meu querido e saudoso avô, Albino Marcelino Alves de Souza. Levantei-me sobressaltado, pois já faz mais de um ano que ele tinha partido para o além!
            - Calma meu netinho querido, pelo afeto que lhe tenho e as suas curiosidades com relação ao que acontece depois de nossa morte, consegui, as duras penas e irregularmente, um “habeas corpus” para vir aqui conversar com você, tudo que vi, vivi e comprovei do outro lado da vida, inclusive os diferenciais em função das crenças e religiosidades dos empacotados e enviados pelo “Teletrevas”, ou seja o correio dos mortos!
            - Que maravilha vovô! Você sempre fazendo as minhas vontades e, com grandes esforços, veio me contar os segredos do além, desmitificando as opiniões de milhões de sabichões e pregadores!
            - Verdade netinho querido, pois, embora tenha algumas coisas similares, na verdade as regras são severas e os estatutos bastante rigorosos!
            - Vou começar meu relato pelo setor investigativo de procedência, crença que professou na terra e a causa da morte. Preenchi o meu formulário, entreguei para ser protocolado e recebi uma senha. Mandaram-me aguardar sentado em uma imensa sala que, pelo visto, estava atolada de almas penadas. Algumas alegres, outras tristes e, uma grande parte, indiferente apenas com olhares de curiosidades. Assim como nos bancos, tinha um painel de televisão que aparecia o número e o guichê que você deveria se dirigir. Serviço de primeira, rápido e organizado com espera de alguns minutos. Apareceu meu número, segui para o local de atendimento, chegando lá fui orientado que, devido a minha idade e comportamento na terra, passaria de início uma temporada no céu, onde seria testada a minha capacidade de adaptação celeste, que seria avaliado pelo MJD (Ministério Judicial Divino), Mas, se o resultasse não fosse do meu agrado, eu poderia recorrer ao STS (Supremo Tribunal Santificado), cujo o presidente é o Espírito Santo, que é Deus o Pai de Jesus. Deram-me uma sacola com cinco batas rendadas, chamaram um anjo da Transcéu Aérea, que me pegou pelo braço e saímos voando para o céu, deixando-me cada vez mais curioso e, ao mesmo tempo, achando tudo uma maravilha de nova experiência. Ao aterrissar no portão de entrada, me deparei com uma cara bonachão, barbudo, com centenas de chaves na cintura, sorriso largo e com pinta de boa praça. Rapaz, não é que era S. Pedro. Eu já ia dizendo em meus pensamentos: “puta merda, que surpresa agradável”, mas, logo me lembrei de que santo pode até ler pensamentos e dizer nomes feios deve ser pecado aqui nesse lugar. Ele me abraçou, beijou minha testa e pegando uma chave, me deu e disse: Você vai ficar sozinho e está com sorte. Acabou de vagar uma ap numa nuvem com vista para a terra, com quarto e sala, varanda com um anjo tocando harpa somente de MPB, segundo seu gosto pelo relatório de pesquisas. O anjo me levou deu algumas orientações, falou que não tinha refeitório, pois não se fazia refeições, apenas um lanche as 15 horas de hóstias fritas com pudim de manjar e água benta! Para sustentação da alma isso era bastante, somente tendo alguns comes e bebes no Natal que é aniversário do filho do Homem! Disse-me ele que a minha modesta nuvem faz parte do programa especial “Minha nuvem, Minha morte”, uma cópia do Minha casa, Minha vida! Jesus, depois que veio ao mundo, criou a religião católica, fez centenas de milagres e morreu crucificado, não faz mais nada! Vive em uma nuvem de quatro quartos, uma orquestra de anjos e os melhores tenores que já morreram, quatro anjos da Aero Linhas Celestes para dar passeios. Além de três donzelas para a limpeza da sua luxuosa nuvem! Uma aposentadoria que jamais teremos na terra a não ser que sejamos políticos dos altos escalões!
            - Impressionante vovô! Continue, não pare não!
            - Fiz logo boas amizades com a vizinhança, meu trabalho era somente escrever crônicas de auto estima e levantar a moral dos que ainda estavam inconformados, algumas daquelas parábolas que sempre apresentaram para o povo, para lavarem seus cérebros, principalmente, nas igrejas católicas e evangélicas. E isso para mim, faço com o pé nas costas, colocando os caras para chorarem ou sorrirem, levantando seus austrais! O resto do tempo era dormindo, ouvindo músicas, lendo a Bíblia, ou vendo os programas religiosos na TV Universal, mas, não pertence ao Bispo Macêdo não. Tudo aqui é e pertence ao Espírito Santo!
            - Com as amizades que fiz, conheci um velhinho que já está lá, há vários anos, e com certo prestígio na área, conseguiu um passe terráqueo de 24 horas, impreterivelmente, para que eu pudesse conversar com você. Imagine você meu netinho, até aqui se consegue certas regalias por debaixo das nuvens! Onde o homem pisa, parece que o lugar apodrece! Será que Deus, se procurasse, não acharia um “barro” de melhor qualidade para esculpir esse perigoso ser? Parece mais que foram feitos da mais podre lama!
            - Então meu netinho querido, essa é vida no céu para os que são católicos! Vou lhe contar agora o que acontece com os espiritas, evangélicos e políticos. Mas, o pior de todos são os castigos dados aos criminosos!
            - Nisso eu sinto uma sacudida no ombro chamando: seu Antonio, acorde que começou a chover e é melhor o senhor ir para o apartamento. Tomei um susto retado, mais ainda ouvi meu avô dizer: eu volto, fique tranquilo!
           Juro que fiquei puto da vida, pois, tenho certeza que tudo foi verdade, apenas nosso contato estava sendo em terceiro ou quarto grau, dando a impressão que eu estava dormindo. Tenham paciência que, amanhã ou depois, voltarei para debaixo da minha árvore, me sentarei e aguardarei meu velhinho querido e revelador! Claro que contarei para vocês, pois eu não sou baú para guardar segredos!

Antonio Nunes de Souza, escritor
Membro da Academia Grapiúna de Letras – AGRAL


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MOVIDO PELO AMOR, SÁBATO SABIA QUE PALCO E RUA SÃO INSEPARÁVEIS

Movido pelo amor, Sábato sabia que palco e rua são inseparáveis.
AIMAR LABAKI

Com a morte de Sábato Magaldi, como disse o crítico e curador Kil Abreu, "fecha-se ao menos em termos cronológicos (mas não de influência) o ciclo da crítica ao teatro moderno no Brasil".
Difícil fazer compreender a quem não viveu a época em que ambos publicavam o misto de respeito e afeto que cercava suas figuras.

Sábato e Décio eram críticos pedagogos, mestres autodidatas, que criticavam em diálogo direto com o processo dos artistas e grupos, e escreviam buscando contribuir para a formação intelectual de seus espectadores. Eram, pois, professores nas duas pontas da equação.

Reconhecidos pela classe teatral como companheiros de jornada, não deixavam de ser tratados com uma certa reverência. Relação que hoje se diria autoritária, mas que à época era apenas natural, dadas as circunstâncias.

AnteriorAmigo fraterno de Nelson Rodrigues, defendeu e explicou sua obra antes mesmo do autor ser aceito e, post-mortem, consagrado. Não se furtou a algumas duras polêmicas, como a que manteve por meio de cartas com José Celso Martinez Correa, quando da montagem de "Gracias, Señor" —episódio que de certa maneira marca a ruptura entre a primeira e a segunda gerações do teatro moderno brasileiro.

E contribuiu para a formação de inúmeros críticos e pensadores. Foram seus alunos, entre muitos outros, Ilka Maria Zanotto, Mariângela Alves de Lima, Silvana Garcia, Edélcio Mostaço, para não falar de seu sucessor no "Jornal da Tarde", Alberto Guzik.

O que o movia era o amor —amor ao teatro e amor às pessoas, não fosse o grande proseador que era. Conversar com Sábato, mais que um aprendizado, era um grande prazer.

Deixa uma grande obra publicada incontornável —e outra, submersa: um diário que manteve durante todos os anos de crítica. Obra que merece ser depositada em alguma biblioteca, nem que seja para só ser aberta daqui a alguns anos, como aparentemente era seu desejo. Sábato era um homem de teatro, e como tal sabia que palco e rua são inseparáveis.

Ainda que algumas de suas teses estejam sendo revistas à luz de novos trabalhos e pesquisas, seus livros permanecem e permanecerão como fonte primária insubstituível. Escritas com o rigor e sabor que caracterizavam também sua fala.

Mineiro, de charme insuspeitado por trás da timidez e formalidade aparentes, Sábato teve por grande parte da vida uma grande companheira, Edla van Steen, escritora talentosa, intelectual de brilho próprio —e uma das mulheres mais bonitas que este país já viu. Foi casado também com outra grande artista, Marilena Ansaldi, atriz e bailarina.

Com ele, ficamos todos um pouco órfãos. Mesmo aqueles que nem conhecem ainda seu nome, mas sabem que seu próprio caminho passa por duas tábuas e uma paixão —em língua portuguesa.

 AIMAR LABAKI é dramaturgo, roteirista e diretor.



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"TRUMP É UM VENENO, VENDIDO COMO ANTÍDOTO AOS MALES DE HOJE."


Entrevista com Zygmunt Bauman
14 Novembro 2016

Para Zygmunt Bauman, decano dos sociólogos europeus, um dos mais renomados pensadores contemporâneos, a vitória eleitoral de Donald Trump é um sintoma alarmante: ela reflete o divórcio já existente entre poder e política, do qual deriva um vazio, uma lacuna preenchida por aqueles que prometem soluções fáceis e imediatas a problemas complexos e sistêmicos, recorrendo ao rico reservatório da retórica populista.
A reportagem é de Giuliano Battiston, publicada no jornal La Repubblica, 11-11-2016. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Trump – explica Bauman à revista L’Espresso – soube jogar habilmente a carta do forasteiro e do homem forte, combinando uma política identitária discriminatória e a ênfase nas ansiedades econômicas dos cidadãos estadunidenses, filhas da passagem de um modelo econômico inclusivo a um modelo que exclui, marginaliza e cria verdadeiros exilados. 
Trump se apresentou como o antídoto às incertezas do nosso tempo, mas é um veneno, defende Zygmunt Bauman, razão pela qual a vitória do empresário estadunidense leva a pressagiar o risco de que os tradicionais mecanismos de tutela democrática sejam substituídos pela "aglutinação do poder em modelos autoritários, até mesmo ditatoriais".
Os esquecidos do novo século fizeram a revolução. À direita, porque a esquerda não os quis ver. Um choque epocal que não diz respeito apenas aos Estados Unidos, mas que abala o próprio conceito de Ocidente.
Eis a entrevista.
Nos EUA e na Europa, a reação predominante à vitória de Trump, ao menos nos ambientes progressistas, foi de espanto e de medo. Alguns falaram de um "grande perigo", outros de "um desafio ao modelo democrático ocidental", outros ainda de "uma tragédia para a república estadunidense e para a Constituição". Esses tons às vezes apocalípticos lhe parecem adequados?

As visões apocalípticas despontam sempre que as pessoas entram no "grande território desconhecido": quando estamos certos de que nada, ou muito pouco, continuará como está e não temos nenhum indício sobre o irá ocorrer ou sobre o que provavelmente irá substituir aquilo que deixamos para trás. As reações à vitória de Trump proliferaram rapidamente. O surpreendente é que são todas consensuais: assim como aconteceu no caso da votação pelo Brexit, interpreta-se o voto em Trump como um protesto popular contra o establishment e a elite política do país como um todo, em relação aos quais uma grande parte da população amadureceu uma crescente frustração por ter desatendido as expectativas e não ter mantido as promessas feitas. Não surpreende que tais interpretações estejam particularmente difundidas entre aqueles que têm fortes interesses adquiridos na manutenção do atual establishment polític

Enquanto isso, Trump jogou justamente a carta do forasteiro...

Não fazendo parte de tal elite, não tendo ocupado nenhum cargo eletivo, provindo "de fora do establishment político" e estando em forte desacordo até mesmo com o partido do qual era formalmente membro, Trump ofereceu uma oportunidade única para uma condenação, sem apelo, contra todo o sistema político. O mesmo aconteceu no caso do referendo britânico, quando todos os principais partidos políticos (dos conservadores ao Labour e aos liberais) se uniram no pedido de permanecer na União Europeia, de modo que cada cidadão pôde usar o próprio voto para expressar o nojo pelo sistema político como um todo.
Outro fator complementar foi o notável anseio da população para que a infinita disputa parlamentar, ineficaz e impotente, fosse substituída pela vontade indomável e incontestável de um "homem forte" (ou de uma mulher forte), capaz, com a sua determinação e com os seus dotes pessoais, de impôr, de modo imediato, sem hesitação e procrastinação, soluções rápidas, atalhos, decisões de verdade.Trump construiu habilmente a sua imagem pública como uma pessoa rica nessas qualidades com as quais o eleitorado sonhava.
Estes recém-citados não são os únicos fatores que contribuíram para o triunfo do Trump, mas, sem dúvida, são cruciais. Ao contrário, o pertencimento de 30 anos de Hillary Clinton ao establishment e a sua agenda política fragmentada e compromissada jogaram contra a popularidade da sua candidatura.

Você concorda com aqueles que chegam a ler a vitória de Trump como uma manifestação da crise do modelo democrático ocidental?

Eu acho que estamos assistindo à acurada evisceração dos princípios da "democracia", que se presumia que fossem intocáveis. Eu não acredito que o termo em si será abandonado, ao menos como termo para descrever um ideal político, até porque esse "significante", como definiria Claude Levi-Strauss, absorveu e ainda é capaz de gerar muitos e diferentes "significados". Mas há uma clara possibilidade de que os tradicionais mecanismos de salvaguarda (como a divisão de Montesquieu do poder em três âmbitos autônomos, o legislativo, o executivo e o judiciário, ou o sistema britânico de checks and balances) saiam de algum modo do favor público e sejam desprovidos de significado, substituídos de modo explícito ou de fato pela aglutinação do poder em modelos autoritários ou até mesmo ditatoriais.
As citações que você relatou como reações à vitória de Trump indicam, todas, uma preocupação comum, são sintomáticas de uma tendência crescente, que existe: a tendência de trazer de volta – por assim dizer – o poder dos nebulosos picos elitistas onde havia sido colocado e para onde foi arrastado. Uma tendência, portanto, de restaurar o poder dentro de uma comunicação direta entre o homem forte na cúpula, de um lado, e, de outro, a agregação dos seus defensores e sujeitos de poder, equipados com as redes sociais como instrumentos de doutrinação e de sondagem das opiniões.

Durante a campanha eleitoral, Trump insistiu muito nas questões raciais e no nacionalismo mais insular e discriminatório, mas não apelou apenas a esses temas. Para além dos ataques sistemáticos contra os "diferentes", ele jogou a carta da incerteza econômica de todos aqueles cidadãos estadunidenses que têm a percepção de terem sido defraudados pelos processos de globalização. Os dois aspectos – a ansiedade econômica e a ansiedade em relação aos "outros" – estão ligados? Como?

O truque foi justamente o de conectar os dois aspectos, torná-los inseparavelmente ligados e reforçá-los mutuamente. Foi isso que Trump conseguiu fazer, um supremo impostor (embora não seja o único no panorama político mundial). Estou inclinado a ir ainda mais longe na análise do uso que Trump fez do casamento entre política identitária e ansiedade econômica, porque acredito que ele conseguiu condensar todos os aspectos e os setores da incerteza existencial que persegue aquilo que restou da classe trabalhadora e da classe média, doutrinando aqueles que sofrem com a ideia de que a expulsão dos estrangeiros, daqueles que são etnicamente diferentes, dos estrangeiros recém-chegados represente a tão cobiçada "solução rápida" que poderia reembolsá-los, de uma vez só, por toda sua ansiedade e incerteza.

Entre aqueles que votaram em Trump, alguns fazem parte da categoria dos "expulsos": aqueles cidadãos que faziam parte de um "contrato social", mas que foram expulsos dele à força, junto com aqueles, jovens mas não só, que não faziam parte dele e nunca o serão no futuro. A vitória de Trump representa o fim do modelo econômico inclusivo, keynesiano, do pós-guerra, substituído por um modelo de sinal oposto, que exclui?

A passagem de uma visão de mundo, de uma mentalidade e de uma política econômica que inclui a uma que exclui não é nova, de fato. Foi uma passagem estreitamente sincronizada com outro salto qualitativo, o de uma sociedade de produtores a uma sociedade de consumidores, que não teria sido possível sem a marginalização, ou seja, a criação de uma "subclasse", que não só está degradada em relação à sociedade de classes, mas também foi totalmente exilada dela, uma categoria de "consumidores fracassados", tão excluída a ponto de não pode ser readmitida. A atual tendência à "securitização" dos problemas sociais põe mais água no mesmo moinho: torna as redes de exclusão ainda mais amplas, enquanto transfere aqueles que acabam nessas redes de uma categoria que, embora inferior, continua sendo de sinal "positivo", a uma divisão que, embora suave, continua sendo mortal, sinistra e tóxica.

Em alguns dos seus livros, por exemplo em "A solidão do cidadão global", você analisa aquilo que define como "a trindade malvada", a incerteza, a insegurança e a vulnerabilidade, sentimentos predominantes em um mundo em que ocorreu o divórcio entre poder e política. É inevitável que tal divórcio leve ao homem forte ou ao populismo?

Sim, eu tendo a acreditar que é inevitável. O divórcio ao qual você se refere deixa atrás de si um fosso – uma lacuna que está aumentando assustadoramente – do qual emana a combinação venenosa entre desespero e infelicidade. Os instrumentos ortodoxos, que nós acreditávamos que fossem familiares e que estivessem disponíveis para combater e rejeitar eficazmente os problemas e as ansiedades que nos afligem, já foram superados. Acima de tudo, não se acredita mais que eles possam manter aquilo que prometem. Para uma sociedade na qual cada vez menos pessoas se lembram, em primeira mão, do que significava viver sob um regime totalitário ou ditatorial, o homem forte – ainda não experimentado – não parece um veneno, mas um antídoto: pelas suas supostas capacidades de saber fazer as coisas, pelas soluções rápidas e instantâneas, pelos efeitos imediatos que ele promete trazer como bagagem à sua nomeação.

Beppe Grillo, o líder italiano do Movimento Cinque Stelle, ressaltou as semelhanças entre as vitórias eleitorais do seu partido e a de Trump, escrevendo que "são aqueles que ousam, os obstinados, os bárbaros, que levarão o mundo para a frente. E nós somos os bárbaros". Chegou a hora de que o establishment realmente faça as contas com os novos bárbaros?

Na Europa, os vários Grillo são muito numerosos. Para aqueles para os quais a civilização fracassou, os bárbaros são os salvadores. Em alguns casos, é nisso que eles se esforçam, de todos os modos, em levar a acreditar, para convencer os ingênuos de que é realmente assim. Em outros casos, é nisso que desejam acreditar ardentemente aqueles que foram abandonados e esquecidos na distribuição dos grandes dons da civilização. Alguns membros do establishment poderiam estar impacientes para aproveitar a oportunidade, já que aqueles que acreditam na vida póstuma, às vezes, estão dispostos a se suicidar.