"Jura secreta"
01/06/2016
Recordo-me bem das alvoradas e, com mais nitidez, do por do
sol no velho cais banhado pelas águas do Rio Buranhém que se mesclavam com as
vindas do oceano, separados, o rio e o mar, por um colossal recife em barreira
esculpido pela natureza, a desenhar uma das mais encantadoras paisagens
por ela criadas.
Vejo-me na Ponta de Areia, local próximo ao cais. Na beira
da praia, havia a tarifa – ponto de comércio de mariscos -. Ao lado, uma
amendoeira antiga cercada por uma espécie de banco de madeira, meio
desforme e rústico, onde as pessoas se reuniam para conversar, jogar
dominó, tomar um trago e também confidenciar juras de amor.
Próximo dali, na Praia do Cruzeiro, misturam-se
pitangueiras, mangabeiras, cajueiros e, na areia branca, os pés de guarus
se espalhavam entrelaçados e ofertavam frutos roxeados de sabor
inesquecível, sem igual. A eles se misturavam os pés de cocos de caxandó. Eu
era menino e, juntamente com meus amigos, desfrutava daquilo tudo.
Adorava ir à tarifa com o meu avô comprar peixe. O preferido
dele era Guaricema. Minha avó fazia uma moqueca de Guaricema frita, servida com
mangabas, que até hoje guardo na lembrança.
Numa dessas idas e vindas à tarifa, ouvi de um marujo, em
tom zombador, de deboche, contar ao meu avô que “Beijinho” tentou a morte
por amor.
Beijinho era pescador, homem do mar. Assim chamavam-no
porque era de baixa estatura. Seu nome era Benjamim.
Sujeito forte, valente,
destemido. Tinha dois filhos, Maciel e Otávio, frutos do seu
casamento com Ana, conhecida por Donana, a mulher de sua vida. Havia duas
coisas que realmente amava, Ana e o mar.
Eram também pescadores e mestres na arte de navegar. Não
tinham estudo, mas experiência não lhes faltava. Tinham um saveiro
batizado de “Marujo”. Da embarcação tiravam o sustento.
O casamento de mais de 40 anos findara com a morte de
Donana. A dor da perda da mulher amada, modificou-lhe complemente a vida.
Beijinho não mais saia de casa. Fez-se triste. Nada mais fazia sentido. Desde o
passamento, a solidão e a tristeza passaram a lhe fazer companhia.
Certo dia, seus filhos convenceram-no a visitar “Marujo”.
Estava o saveiro completamente reformado. Convencido pelos filhos, resolveu,
então, voltar ao mar. O barco foi guarnecido do necessário à finalidade.
No dia seguinte, bem cedinho, deixaram o cais. O veleiro
rompeu a barra e rasgou o mar. A previsão de retorno era no final da
tarde. A depender da pescaria, dormiriam no mar e voltariam no dia seguinte.
A pesca era artesanal. Não havia instrumentos de navegação,
salvo a bússola. Falava mais alto a experiência, até mesmo na localização dos
chamados pesqueiros em alto mar.
Naquele dia tudo estava correndo muito bem. Um pesqueiro foi
localizado e farta era pesca. Animados, resolveram pernoitar.
Caía a tarde! As estrelas, ainda meio tímidas,
começavam a piscar no firmamento...
De repente, o tempo se transformou. O vento sul passou
a soprar impiedosamente, cujas rajadas violentas despertaram a ira de Netuno,
deixando o mar revolto. A natureza chorava em forma de tormenta e
seus gritos se revelavam nos estrondos estarrecedores dos trovões.
Por vezes cuspia labaredas de fogo a iluminar, por breves
segundos, o breu da noite. Em meio a esse cenário, o saveiro desgovernado
bailava, ora para a esquerda, ora para a direita, ora para cima, ora para
baixo, sem saber ao certo para onde ir.
Dentro dele, os homens
desesperados, rogavam a Deus a salvação.
A chuva apagou as duas lamparinas que se encontram do lado
de fora do convés. Tudo ficou turvo. Tateando em busca de uma delas, Beijinho
desequilibrou-se e caiu ao mar.
Desesperado, mestre Otávio lançou-se ao mar em
fúria para socorrer seu velho pai. Seu guia era a intuição. Do saveiro, com uma
lanterna, Maciel norteava a Otávio.
Os gritos aflitos deram a Otávio a localização de Beijinho.
Agarrado ao pai, tentava bravamente levá-lo a bordo, mas não conseguia, devido
não só às circunstâncias, mas à resistência dele em querer morrer no mar.
Sem alternativa, desferiu-lhe um soco, vindo ele a desmaiar. Maciel
arremessou-lhe uma boia amarrada numa corda. Agarrou-se à boia e puxado
por Maciel, finalmente veio a bordo trazendo consigo o pai.
Exausto, no convés, agarrado ao pai, viu a noite
lentamente passar. O dia amanheceu. O tempo havia
melhorado. Beijinho acordou. Ainda assustado, o mestre Otávio lhe
perguntou: “meu pai, por que o senhor dizia aos grito que queria morrer”?
Ao que ele respondeu: “porque não cumprir a jura que fiz a Ana, a
mulher que sempre amei e amo, de partir antes dela para esperá-la
no céu, na casa de Deus e, num cantinho, revivermos o nosso
grande amor”.
Em silêncio, atentamente, meu avô a tudo ouviu e não
fez qualquer comentário. Pensei comigo como podia aquele homem desdenhar
do amor? Afinal, quem nunca quis morrer por amor? E tenho, até
hoje, que só desdenha do amor quem não conhece o amor. Amar é preciso. Viver
não é preciso.
Antônio Carlos de Souza Hygino
Juiz de Direito
Juiz de Direito
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