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sábado, 2 de março de 2019

A METAMORFOSE - Cyro de Mattos


Da sacada do apartamento, jogava o milho pisado para os pombos. Via com prazer a cena inquieta dos bicos catando as migalhas na rua.

Comprava o passarinho com a gaiola, na feira, aos sábados. Abria a portinhola, ficava feliz vendo o bichinho bater asas, desaparecer. Tomava a direção da mata.

Comprara o binóculo para observar com detalhes o espetáculo dos periquitos voando acima dos telhados, próximos ao edifício onde morava, erguido na colina.

Gritos constantes das aves. Até que se empoleiravam nas árvores perto da igreja.

Acordavam cedo, nuvem de asas acima da torre da igreja. Tomavam depois a direção da mata. Voltavam pela tarde em busca do poleiro nas árvores.

Aqueles bichinhos foram feitos por Deus para voar pelas estações temperadas de sol e chuva. Bicar nas manhãs frutíferas. Alegrar a natureza com voos e cantos. Cumprir a lei da reprodução da natureza, perpetuar a espécie. Preso algum deles na gaiola, a vida do cantor prisioneiro passava sem graça, em canto e plumagem perdia o sentido.

Igual a um castigo destamanho só o de alguém que nascesse sem os braços ou arrancados do corpo em algum acidente, por exemplo.

Teve a certeza dolorida disso quando foi atropelado por um caminhão, que passou na rua desembestado.

Com a pancada, perdeu um dos braços, o outro mutilado, sem a mão, imprestável também. Sorte não ter morrido.

Difícil acostumar com a situação precária. Abatia seus sentimentos e nervos. Os olhos denunciavam a alma entristecida.

Os de casa não ligavam para ele. Só servia quando era gerente de banco, sustentando a mulher e os três filhos, a cunhada, a sogra e o sogro.

Deficiente, impossível agora dar milho pisado aos pombos. Ficava em silêncio, sentindo pena de si mesmo, a situação irreversível.

Até que uma manhã acordou com umas asas no lugar dos braços. A princípio achou o acontecimento estranho. Dessas coisas que por mais que se force a inteligência não se acha a explicação lógica do seu acontecimento. Um milagre, para Deus nada é impossível.

Foi até a sacada. De lá alçou voo. Não hesitou, seguiu na direção da mata. O mundo visto do alto pareceu-lhe então perfeito, cheio de brilho e cores.


Cyro de Mattos é poeta e ficcionista. Premiado no Brasil, México, Itália e Portugal. Publicado por editoras na Europa. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz (Bahia).


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ESTÁ FALTANDO UMA - Arnaldo Niskier


Escrevi sobre o empoderamento feminino lá em casa (O DIA de 28/1/19) e deixei de propósito para citar a minha irmã em separado. Foi a quinta filha do casal Fany e Marcos, depois de terem nascido quatro homens. O meu pai dizia que não ia parar de ter filhos (coitada da minha mãe) enquanto não viesse uma menina. E isso aconteceu em 5º lugar. Já imaginaram se fosse em 8º ou 9º?

A Rachel sempre foi um encanto lá em casa. Era a mais nova, sempre muito bonita, e fez uma bela carreira em medicina. Teve um desempenho brilhante no curso na Faculdade de Ciências Médicas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), especializando-se em Pediatria. Não quis clinicar, pois detestava o lado comercial da profissão, preferindo o seu aspecto científico.

Com esse zelo integrou os quadros de grandes e notáveis instituições, ganhando renome internacional. Em 2002, ela era conselheira titular do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), e coordenou, para a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), a "Campanha Nacional de Prevenção de Acidentes e Violência na Infância e Adolescência". A sua atuação foi marcante e mostrou que a violência doméstica potencializava a violência social e ocorria de forma velada entre os mais ricos. Essa avaliação era resultado das diversas visitas que ela fazia por todo o Brasil, conhecendo a fundo o funcionamento das instituições que cuidavam de menores infratores, como as antigas Febens. Rachel fazia questão de conversar com os adolescentes para saber os motivos pelos quais eles cometiam atos que conflitavam com a lei. Na maioria das vezes, eles saíam de casa fugindo da violência praticada pelos próprios pais.

Também chamou a atenção outra campanha da SBP, também sob a coordenação de Rachel, chamada "Violência é Covardia - crescer sem violência é direito fundamental das crianças e adolescentes", que foi deslanchada em 2016. Nesta, outros aspectos foram abordados, como abuso sexual, negligência e maus tratos psicológicos. A preocupação era mostrar que é possível e saudável promover nas residências uma educação livre de atos violentos.

No período em que fez parte do Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente do Rio de Janeiro, ela se preocupou em resolver os principais problemas sociais que afetavam (e infelizmente ainda afetam) os jovens e adolescentes aqui do nosso estado. Temas como o atendimento do adolescente vítima de violência na emergência e violência psicológica intrafamiliar sempre foram objeto de estudos e intervenções da entidade. A atuação de Rachel ajudou a reforçar a ideia de que um relacionamento sadio e amigável na família contribui para que os meninos e meninas se tornem adultos plenos, produtivos, companheiros, solidários, generosos, bons cidadãos, bons pais e eternamente bons filhos.

Com o bom humor que lhe é peculiar, Rachel Niskier Sanchez diz que se considera uma "jurássica" na luta em defesa das crianças e adolescentes, um título que ela procura honrar. Há muitos anos ela ficava abordando transeuntes e colhendo assinaturas para a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), "numa mesinha", no centro da cidade do Rio de Janeiro. Isso foi antes de 1990, quando o Estatuto ainda não havia sido sancionado. Depois de tantas lutas e conquistas, hoje, é uma competente e conceituada profissional que presta serviços no Instituto Fernandes Figueira, participando com êxito de palestras e seminários.

O Globo, 18/02/2019



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 Arnaldo Niskier - Sétimo ocupante da Cadeira nº 18 da ABL, eleito em 22 de março de 1984, na sucessão de Peregrino Júnior e recebido em 17 de setembro de 1984 pela acadêmica Rachel de Queiroz. Recebeu os acadêmicos Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Paulo Coelho. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 1998 e 1999.

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