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quarta-feira, 27 de julho de 2022

O GALÃ – Artur Azevedo



            Um belo dia, naquela pacata e honesta capital de província de segunda ordem, apareceram, pregados nas esquinas, enormes cartazes anunciando a próxima estreia de uma excelente companhia dramática, vinda do Rio de Janeiro.

            Há muito tempo o velho teatro não abria as portas ao público, e este, enfarado de peloticas e cavalinhos, andava sequioso de drama e comédia.

            Havia, portanto, na cidade uma animação e reboliço desusado.

            Falara-se na vinda da companhia, mas ninguém tinha absoluta certeza de que ela viesse, porque o empresário receava não fazer para as despesas. Agora, os cartazes, impressos em letras garrafais, confirmavam a auspiciosa notícia, provocando um entusiasmo indizível. Muita gente saía de casa só para ver, certificando-se, pelos próprios olhos, de tão grata novidade.

           

            A companhia anunciada era, efetivamente, a melhor, talvez, de quantas até então se tinham aventurado às incertezas de uma temporada naquela tranquila capital.

            Dois artistas, pelo menos, a primeira-dama e o galã, vinham precedidos de grande fama. Ela já tinha lá estado, quando menos célebre; ele, porém, era a primeira vez que lá ia, e por isso o esperavam com uma ansiedade fácil de imaginar.

            Quando a companhia chegou, foi uma verdadeira festa. Grande massa de povo aguardava-a no cais de desembarque; houve música, foguetes e aclamações.

            Tanto a primeira-dama como o galã foram acompanhados ao hotel por inúmeros admiradores – e ele, solicitado pelo povo, teve que aparecer à janela, onde visivelmente comovido, expectorou algumas palavras com mais entusiasmo que sintaxe.

            A estreia foi um delírio. O teatro encheu-se completamente: não havia um lugar desocupado.

            O presidente da província (era no tempo do império) estava presente, e os camarotes, ocupados pelas primeiras famílias, apresentavam magnífico aspecto.

            Representou-se a Morgadinha de Valflor.

            A primeira-dama agradou muito, mas sem causar grande impressão, porque já tinha sido vista no papel da protagonista e não parecia agora superior ao que dantes fora. Quem triunfou verdadeiramente, quem teve as honras da noite, foi o galã, o melhor Luís Fernandes que até então pisara naquele palco.

            Era um artista experimentado, com todas as qualidades e defeitos indispensáveis para agradar às plateias provincianas; bom órgão, gesto largo e abundante, porte esbelto, grande cabeleira encaracolada, bigodes fartos e retorcidos, olhos pisados, bons dentes – nada faltava a Luís Fernandes para ser desejado, não só pela Morgadinha de Valflor, como por todas as espectadoras sentimentais.

 

            Entre estas havia uma, a Sinhazinha Brites, cujo espírito enfermiço aquele formoso intérprete de Pinheiro Chagas impressionou singularmente.

            Ela sentia-se fascinada pela figura garbosa e varonil do palavroso pintor, em que tão bem assentavam os calções e as botas do tempo do diretório – e, por mais que tentasse disfarçar, não pode encobrir ao marido os violentos resultados daquela fascinação.

            Ele, o marido, o Brites,  era um sujeito observador e inteligente, a quem não deixava de inquietar o caráter romanesco de Sinhazinha. Estudara-a a fundo, atentando nas longas cismas em noite de luar, ou examinando cuidadosamente os livros cuja leitura ela preferia.

             Houvera certa desigualdade naquele casamento: o marido era quinze anos mais velho que a mulher; ele, um homem positivo, encarando a vida como a vida é, procurando o lado prático de todas as coisas; ela, com uns ares vaporosos de Femme incomprise divagando continuamente pelo intermúndios da quimera e do sonho. Ele, criatura comum, homem  feio como todos os homens sem educação física; ela, uma das moças mais bonitas da terra.

            Demais, faltava-lhes a maior ventura dos casais felizes:   faltava-lhes um filho, que reprimisse na senhora as fantasias da senhorita.

            Com essa boa posição no comércio, rico ou, pelo menos, remediado, honesto, escrupuloso, solícito, amável, e, como já ficou dito, inteligente, o Brites era, entretanto, um marido ideal.

 

            O segundo espetáculo da companhia foi com Romance de um moço pobre.

            Observou o sobressaltado marido que Máximo Odior causava à Sinhazinha uma impressão ainda mais pecaminosa que a produzida por Luís Fernandes.

            Quando o pano desceu depois da famosa cena das ruínas castelo abandonado, em que o herói de Octave Feuiller se atira num precipício, exclamando: - Vou salvar a honra! – Sinhazinha ficou uns bons cinco minutos estática, sem articular um som, os lábios entreabertos num quase sorriso voluptuoso, o olhar úmido perdido no vago.

            O público aplaudiu calorosamente, chamando três vezes os artistas à cena e ela não saiu  daquele êxtase.

            - Que tens?... Estás incomodada?... – perguntou o Brites.

            A moça estremeceu, passou as mãos pelos olhos, como se despertasse de um sonho, e suspirou, dizendo:

            - Não, não tenho nada.

           

            Na manhã seguinte o Brites experimentou o maior desgosto da sua vida conjugal: ouviu perfeitamente Sinhazinha, dormindo, pronunciar o nome do galã...

           

            Isto resolveu-o a atacar de frente o Minotauro.

            Não deixou perceber coisa alguma. Almoçou alegremente e foi para o trabalho à hora costumada.

            Quando voltou à tarde, aproximou-se de Sinhazinha, deu-lhe um beijo, e disse-lhe:

            - Trago-te uma notícia que talvez te contrarie...

            - Qual?

            - O galã da companhia dramática vem cá jantar amanhã.

            - O galã?

            - Sim: aquele que ontem fez com tanto talento o papel do moço pobre. Foi hoje levar-me ao escritório uma carta de recomendação, e eu, não sabendo como obsequiá-lo, convidei-o para jantar. Amanhã não há espetáculo: ele está livre.

            Sinhazinha, que, enquanto o marido falava, tivera tempo de preparar a dissimulação, limitou-se a responder:

            - Que maçada!

 

            Ela mal dormiu durante a noite, e, no dia seguinte, agitada pela ideia de que ia ver de perto, apertar a mão e falar ao irresistível galã, passou as horas febricitante, nervosa, mudando de lugar a cada momento. Felizmente os preparativos do jantar ofereceram uma espécie de derivativo àquele acesso nervoso.

            Quando, às seis horas da tarde, chegou o galã ela não quis acreditar que fosse ele: olhou para a porta como se esperasse outra visita; mas o marido, que lhe percebeu a surpresa, insistiu na apresentação e Sinhazinha dobrou-se à evidência.

            Tinha diante de si um homem feio, marcado de bexigas, os dentes postiços, o cabelo cortado à escovinha e a cara inteiramente raspada... de véspera.

            A alvura da camisa era suspeita, as botinas eram cambaias, as unhas não eram irrepreensíveis, a sobrecasaca tinha nódoas e as calças joelheiras.

            A desilusão continuou durante o jantar. O galã, aliás boa pessoa, não tinha absolutamente conversação, nem de outro assunto tratava que não fosse da sua vida de teatro. Disse mal dos colegas, arrastou a primeira-dama pela rua da amargura, e afirmou que não faria parte daquela tropa fandanga, se não tivesse que sustentar mulher e cinco filhos, em véspera de seis.

            E não sabia estar à mesa: repetia todos os pratos, metia a faca na boca, palitava os dentes, limpava a testa no guardanapo, escarrava, cuspia!

            Sinhazinha estava pasmada, e o Brites radiante.

            Quando o galã saiu, logo depois do café, a mulher do engenhoso Brites sentia-se curada de todos os devaneios da sua imaginação doentia.

            - Que diferença!... Não parece o mesmo!...

            - Pudera! Quem tu viste no teatro não foi ele: foi o Luís Fernandes, foi o Máximo Odiot.

           

            Alguns meses depois havia naquela casa o que até então lhe faltava: um filho que reprimisse na senhora todas as fantasias da senhorita.

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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NO TEMPO DAS BOIADAS - Cyro de Mattos



No Tempo das Boiadas

 Cyro de Mattos

 

            No tempo em que a infância não era como hoje, com os jogos eletrônicos sendo o divertimento dos meninos, a  cidade tinha pouco movimento de carro nas ruas.  Ficava movimentada quando as tropas de burro passavam pela rua do comércio, carregadas de cacau ensacado. Paravam em frente aos armazéns de portas largas, onde homens fortes descarregavam do lombo dos animais os sacos de cacau ensacado. A cidade tinha poucos prédios de dois pavimentos. A feira ficava atrás da antiga estação ferroviária. Aos sábados, parecia uma onda que tinha de tudo, com gente que ia e vinha, uns compravam, outros vendiam. 

            O jardim próximo à beira do rio ficava na Praça Olinto Leoni, o primeiro intendente da cidade. Os habitantes da cidade orgulhavam-se do jardim, era um cartão postal que encantava os visitantes, diziam. Dava uma impressão agradável a quem visse. O jardim tinha plantas e flores bem cuidadas pelos jardineiros da prefeitura,  palmeiras onde os passarinhos se aninhavam em algazarra pelo cair da tarde, duas  fontes luminosas,  um coreto para a filarmônica tocar marchas e hinos em dia especial.  Havia bancos embaixo das árvores para quem quisesse descansar. Os velhos ali sentavam e ficavam conversando sobre os anos idos e vividos. Os namorados davam voltas de mãos dadas pelo passeio do jardim. Quando estavam sentados no banco, permaneciam com as mãos entrelaçadas. A moça sorria para o rapaz que lembrava o beijo dado pelo galã  nos lábios doces da mocinha,  na última fita romântica exibida no Cine Itabuna.

            Uma balaustrada comprida, erguida bem perto do rio, ficava separada do jardim pela rua calçada de pedras regulares. Por detrás da balaustrada havia um caminho estreito, margeando o rio, por onde desciam pequenas boiadas na direção do matadouro, construído em condições rudimentares em um dos aclives do morro.

             Um dia combinei com dois amigos para irmos até o matadouro. Lá ficaríamos sabendo como o boi era abatido, retalhado em pedaços de carne, os quais seriam  transportados para que fossem vendidos no açougue. Lá chegamos calados por volta das quatro horas da tarde. Ficamos concentrados, apreensivos, em cima de um dos muros do curral, que tinha o piso do pátio cimentado, lá fora, como também na área debaixo do telheiro.

            Então vimos entrar no pátio do curral um boi laçado pelo homem musculoso. Foi preso ao mourão no meio do pátio. E logo tomamos grande susto quando o homem musculoso golpeou com as costas do machado a cabeça do boi. O animal deu um grito estranho, ajoelhou-se e borrou de bosta o piso de cimento. Ouvimos um baque surdo quando o bicho emborcou no chão, estrebuchando. Daí a pouco instante, o homem musculoso começou a tirar o pelo do boi com uma faca de lâmina afiada. 

             Não quisemos ficar mais tempo no matadouro. Saímos depressa de lá, horrorizados com a cena que acabávamos de presenciar. À noite, antes de dormir, eu com  os amigos Nei Gordinho e o Duduca armamos um plano lá na rua para impedir que no outro dia os bois, vindos do sertão, conduzidos por vaqueiros, chegassem até o matadouro. Nei Gordinho, o filho do funcionário do banco, seria o encarregado de soprar o apito na esquina quando avistasse a boiada descendo pela margem do rio e viesse se aproximando para descer pelo caminho estreito, junto à balaustrada.

              No dia seguinte, quando ele trilou o apito três vezes, bem forte, e avistamos a boiada se aproximando, começamos a soltar os fogos de São João na direção dos bois, que costumavam se apertar procurando entrar no caminho estreito que margeava o rio e a parede de pedras da balaustrada.  Eu e  Duduca, o filho do farmacêutico, estávamos em nossos esconderijos, encobertos pelos troncos de duas árvores no jardim. De lá acendíamos e soltávamos os fogos Adrianino para que as bombas explodissem no meio da boiada. 

            Logo os bois se assustaram e se esparramaram para todos os lados.  Alguns caíram nas águas e foram nadando até o outro lado do rio. Outros saíram em carreira desabalada, pisando plantas e canteiros do jardim. Ainda outros entraram na rua do comércio em correria, espalhando o pânico aos comerciantes, vexame e corre-corre às pessoas que por ali passavam pelo passeio das lojas.  

           Não sei até hoje quantos bois não seguiram naquele dia para o matadouro. Mas tenho certeza que alguns deles, que estavam marcados para morrer, não tiveram o mesmo destino daquele que vimos tombar sob o golpe do machado desferido pelo homem musculoso no matadouro. E que mal teve tempo para gritar, logo caindo de joelhos e borrando de bosta o piso cimentado do pátio. Numa cena terrível, que nunca mais queríamos que fosse repetida,  diante de nossos olhos espertos de meninos, ansiosos de descobertas e desafios na aventura da vida.  

 

Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, cronista, ensaísta e autor de literatura infantojuvenil. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da UESC (Bahia).  Possui prêmios importantes. Publicado no exterior.

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