Um Homem de Seriedade
Nídia Maria Costa Reis
Agora, o professor tinha melhorado de vida. Tinha casa
própria, filhos empregados e crédito fácil no comércio porque, apesar dos
miseráveis proventos de professor aposentado que, mensalmente, caíam em seu
bolso, ele sempre pagava o que devia, a trancos e barrancos, mas pagava. Andava
até muito saliente com um fusquinha azul, bem conservado, presente que ele
havia dado a si mesmo quando ganhou na loteria, num rasgo benevolente da sorte.
Mesmo sem carteira de motorista, ele aventurava-se pelas estradas de terra de
seu município, sempre acompanhado de sua esposa, em busca de lagoas e peixes
ariscos.
Certa vez, numa dessas pescarias improdutivas, viram-se numa
enrascada dos diabos. Foi num cenário poético, junto à ponte da rodovia. Uma
colina de cada lado, o rio no meio, barulhento, sobre um leito de rochas.
Estacionaram o fusquinha em um pequeno acostamento e aproveitaram a parada para
um cafezinho quente, já antegozando o “tête à tête” com os peixes. Eram três
horas da tarde e fazia muito calor. O sol, inclinado, castigava-os sem dó nem
piedade e aquecia excessivamente a atmosfera. De repente, surgiram cabriolando
e atacando de rijo as primeiras abelhas. Umas tantas ferroadas aqui e ali, e,
depois, o dilúvio do zumbido de asas malignas, dos golpes certeiros de ferrões
aguçados e venenosos. O pobre professor e sua esposa precipitaram-se por
barrancos e capinzais, desferindo taponas e esfregadelas na cabeça e no
pescoço. Com o rosto coalhado de abelhas, tropeçando nas pedras e nas touceiras
de capim, finalmente avistaram, à margem da rodovia, uma casinha onde se
refugiaram e receberam os primeiros socorros.
Sua esposa jurou por tudo que é sagrado jamais voltar a
pescar, mas o professor, que enfrentara o desafio de inserir a tabuada na
cabeça de seus alunos, durante vinte e cinco anos, não ia desistir tão
facilmente. Passado o susto e a recuperação, voltaram às pistas, aos peixes e
às abelhas.
Certa manhã de domingo, o Dorneles voltava da missa todo
enfatiotado, aflito para chegar a seu sítio e apartar as vacas. Para aproveitar
a viagem, resolveu dar uma passadinha diante da casa do professor. Encontrou-o,
como de costume, assentado no canto da varanda.
- Bom dia, professor! Pegando um solzinho, né? Até que é
bão, mas escuta, professor, queria ter um malemaleque com o senhor, posso?
- Que história é essa, homem? Quanta falta de respeito!
- Deus me livre, professor. Sou um homem de seriedade. É só
um dedinho de prosa, gente! Só isso! Olhe, professor, fim do mês tá chegando.
Aqueles quinhentos com mais sete por cento... fico preocupado. E o senhor? Ah!,
mudando de assunto, outro dia eu ouvi a banda tocar na procissão uma música
animada pra caramba. O Roque, aquele que toca prato, disse que foi o senhor que
fez, é verdade? Eu sempre tive vontade de tocar um instrumento na banda. Se eu
pudesse queria aquele fininho e preto. É bacana.
- Deve ser a clarineta. Você tem bom gosto, mas, antes, é
preciso aprender teoria musical e solfejo.
- Quem me dera! Sou meio turrão, professor. Só alisei o
banco da escola.
Aproveitando a deixa, o professor animou-se com o assunto,
falou bastante sobre música e a conversa parou por aí. O Dorneles seguiu
caminho e deixou o coitado do professor bastante preocupado com a história dos
quinhentos reais. Mais dia, menos dia, ele teria de barrar a escalada da dívida
antes de recorrer ao FMI. O pior é que não sobrava nem um centavo depois de
pagar o açougue, a padaria, a farmácia...
Apesar da preocupação, o professor Avelar achou interessante
aquele sujeito rude, sovina e ignorante ser sensível à arte de Euterpe. O
Dorneles não era assim tão bronco como pensava. Ele gostava de música e
apreciara seu último dobrado que, aliás, era mesmo uma criação de mestre. Homem
culto, violinista, poeta, compositor e maestro, o professor, naquele momento,
preferia uma carteira recheada a tantos dotes intelectuais. Na verdade, estava
mesmo numa boa enrascada. Foi, então, que lhe veio a feliz ideia de trocar
lições de solfejo pelos juros da dívida. Seria um bom negócio para os dois.
Proposta feita, proposta aceita. Nos fins de semana, o Dorneles passou a vir
religiosamente ao bangalô do professor Avelar para as lições de solfejo e
teoria musical. O professor cada vez mais se entusiasmava com o talento e a
notável aplicação de seu aluno que seguia, à risca, seus ensinamentos em troca
dos juros dos quinhentos reais.
Alguns meses se passaram e, após as lições sobre “andamento
e ornamentos”, o professor, a contragosto, deu por encerradas as aulas e
admitiu o recomeço do pagamento dos juros. A não ser que...
- Desistiu da clarineta, Dorneles?
- Eu? Quá! Quem sou eu, professor? Nem clarineta eu tenho.
- Isto a gente dá um jeito. Posso ajudar.
- É, mas quem vai me ensinar? O Roque não sabe. Ele só toca
prato.
- Eu ensino, se quiser. Acho que aprende em pouco tempo.
- O senhor sabe tocar clarineta também? Puxa! O senhor é
danadinho, professor.
As aulas recomeçaram, desta vez ao som de uma clarineta
emprestada. O aprendizado ia de vento em popa enquanto os juros permaneciam
estacionados para a felicidade do professor Avelar. No início, eram só os
primeiros sopros desafinados, seguidos das notas soltas e de escalas
ascendentes e descendentes. Depois, o professor compunha umas lições fáceis,
com mínimas e semínimas, diversificava os compassos, introduzia colcheias,
semicolcheias e pausas. Dorneles assimilava tudo com a maior facilidade, a
ponto de o professor escrever para ele uma valsinha cheia de quiálteras e
apogiaturas, valsinha que foi digerida num átimo. O aluno tinha parte com o
sopro e a palheta.
Nada mais havendo para ser ensinado e aprendido, para a
alegria do aluno e a tristeza do professor, encerraram-se as atividades
musicais. Poucos dias depois, o Dorneles apareceu na porta do bangalô do
professor com a finalidade de reativar os juros dos quinhentos reais. Apesar de
todos os benefícios recebidos, ele não estava disposto a perdoar um centavo
sequer. Conversa vai, conversa vem, o Dorneles deixou transparecer sua
desilusão com a clarineta. O estudo fora perda de tempo, pois não tinha músicas
para executar em seu instrumento e não conseguia tocar sem ver as notas na
pauta, com compasso e tudo mais. O professor, imaginando uma proposta
interessante, arriscou:
- Não seja por isso. Tenho algumas partituras de valsa,
dobrados e marchas fúnebres que compus e nunca foram executados por aí. Se
quiser aproveitá-las, posso emprestar-lhe algumas se ...
- Aceito. Dois meses sem os juros, conforme a quantidade.
O professor não esperou mais nada. Saiu às pressas para o
quartinho da sala onde guardava o violino, o trompete, aposentado por falta de
fôlego, e as benditas partituras musicais de sua autoria, um calhamaço de fazer
inveja a J Strauss, a J F Sousa, e a João da Mata, uma preciosidade.
Quando voltou, tratou de apresentar a obra, exagerando nos
elogios e atenuando as dificuldades. O Dorneles, de queixo caído diante daquele
precioso acervo, não teve dúvidas de que se tratava de um negócio da China.
Afinal, ele jamais compraria tamanha coleção pelos juros de dois meses, uns
setenta reais.
Feliz da vida, o Dorneles se foi, levando consigo três
valsas, dois dobrados e duas marchas fúnebres, obras inéditas da melhor
qualidade. Foi-se e desapareceu por algum tempo. O professor, assentado em sua
cadeira, na varanda do bangalô, respirava aliviado por ter feito o melhor
negócio de sua vida. Mas a felicidade durou apenas alguns meses. Um belo dia,
ou melhor, um dia sinistro, o Dorneles apareceu com as mãos nos bolsos da calça
e um sorriso maroto de quem havia levado a melhor em alguma transação.
- Oi, professor, que tempão, hem? Tomei chá de sumiço, não
tomei? O senhor, com certeza, achou que eu morri, não achou?
- Morrer? Você não morre assim tão fácil, meu amigo. É jovem
e cheio de vida. Eu é que já estou na fila... Mas, que aconteceu? Ah, já sei.
Os quinhentos, não é?
- Que nada! é só um malemaleque sem importância. Eu vim
passando e... Ah, quer saber? pra falar a verdade é sobre eles mesmo. Só que o
negócio agora é outro.
- Aumentou os juros. Eu já esperava. Coitado de quem pede
dinheiro a qualquer um.
- Que é isso, professor? Sou um homem de seriedade. Pra
provar que sou um sujeito sério, fiz um negocião pra nós dois. Pra mim e pro
senhor.
- Negocião? Bom para mim?
- Não é, professor? Escute. Eu não sou bobo nem nada. Já
percebi, há muito tempo, que o senhor nunca vai me pagar os quinhentos que me
deve. Então, resolvi tomar minhas providências.
- Providências?
- É isso mesmo. Outro dia, fui levar umas encomendas lá em
Brojocó e fiquei sabendo que a cidade tinha uma bandinha de música, uma
bandinha de nada, muito mixuruca. Aí, eu procurei o músico maestro e fiz a
oferta.
- Oferta?
- Ele topou na hora. Vendi as partituras do senhor por
seiscentos reais e ainda me convidou para tocar clarineta na banda dele. Tirei
meus quinhentos e vim trazer o troco de cem pro senhor. Aqui, tome. Cem reais.
Tudo resolvido. Um negocião! Sou ou não sou um homem de seriedade?
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Nídia Maria da Costa Reis - Educadora, escritora, soma mais
de cem pequenas histórias e poemas catalogados, além da coleção 12
provérbios e suas histórias, que chegou à quarta edição e concorreu ao
Prêmio Jabuti de Literatura. Aventuras de Gui Omar é seu trabalho mais recente.
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