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quarta-feira, 20 de maio de 2020

UM HOMEM DE SERIEDADE – Nídia Maria Costa Reis


Um Homem de Seriedade 
Nídia Maria Costa Reis


                     - Oi, professor, vai um dinheirinho hoje? Juro tá bão!

                    Era sempre assim. Dorneles, o agiota analfabeto, mas bom de conta, não podia ver o professor Avelar na varanda de seu bangalô, sem lhe oferecer um empréstimo, raras vezes rejeitado. Ele sabia que, mesmo sem muita necessidade, o professor sempre aceitava alguma quantia. Era uma espécie de vício, adquirido ao longo dos anos de aperto financeiro que o levava sempre aos benditos cruzeiro, cruzados e reais do Dorneles.

          Agora, o professor tinha melhorado de vida. Tinha casa própria, filhos empregados e crédito fácil no comércio porque, apesar dos miseráveis proventos de professor aposentado que, mensalmente, caíam em seu bolso, ele sempre pagava o que devia, a trancos e barrancos, mas pagava. Andava até muito saliente com um fusquinha azul, bem conservado, presente que ele havia dado a si mesmo quando ganhou na loteria, num rasgo benevolente da sorte. Mesmo sem carteira de motorista, ele aventurava-se pelas estradas de terra de seu município, sempre acompanhado de sua esposa, em busca de lagoas e peixes ariscos.

          Certa vez, numa dessas pescarias improdutivas, viram-se numa enrascada dos diabos. Foi num cenário poético, junto à ponte da rodovia. Uma colina de cada lado, o rio no meio, barulhento, sobre um leito de rochas. Estacionaram o fusquinha em um pequeno acostamento e aproveitaram a parada para um cafezinho quente, já antegozando o “tête à tête” com os peixes. Eram três horas da tarde e fazia muito calor. O sol, inclinado, castigava-os sem dó nem piedade e aquecia excessivamente a atmosfera. De repente, surgiram cabriolando e atacando de rijo as primeiras abelhas. Umas tantas ferroadas aqui e ali, e, depois, o dilúvio do zumbido de asas malignas, dos golpes certeiros de ferrões aguçados e venenosos. O pobre professor e sua esposa precipitaram-se por barrancos e capinzais, desferindo taponas e esfregadelas na cabeça e no pescoço. Com o rosto coalhado de abelhas, tropeçando nas pedras e nas touceiras de capim, finalmente avistaram, à margem da rodovia, uma casinha onde se refugiaram e receberam os primeiros socorros.

          Sua esposa jurou por tudo que é sagrado jamais voltar a pescar, mas o professor, que enfrentara o desafio de inserir a tabuada na cabeça de seus alunos, durante vinte e cinco anos, não ia desistir tão facilmente. Passado o susto e a recuperação, voltaram às pistas, aos peixes e às abelhas.

          Certa manhã de domingo, o Dorneles voltava da missa todo enfatiotado, aflito para chegar a seu sítio e apartar as vacas. Para aproveitar a viagem, resolveu dar uma passadinha diante da casa do professor. Encontrou-o, como de costume, assentado no canto da varanda.

          - Bom dia, professor! Pegando um solzinho, né? Até que é bão, mas escuta, professor, queria ter um malemaleque com o senhor, posso?

          - Que história é essa, homem? Quanta falta de respeito!

          - Deus me livre, professor. Sou um homem de seriedade. É só um dedinho de prosa, gente! Só isso! Olhe, professor, fim do mês tá chegando. Aqueles quinhentos com mais sete por cento... fico preocupado. E o senhor? Ah!, mudando de assunto, outro dia eu ouvi a banda tocar na procissão uma música animada pra caramba. O Roque, aquele que toca prato, disse que foi o senhor que fez, é verdade? Eu sempre tive vontade de tocar um instrumento na banda. Se eu pudesse queria aquele fininho e preto. É bacana.

          - Deve ser a clarineta. Você tem bom gosto, mas, antes, é preciso aprender teoria musical e solfejo.

          - Quem me dera! Sou meio turrão, professor. Só alisei o banco da escola.

          Aproveitando a deixa, o professor animou-se com o assunto, falou bastante sobre música e a conversa parou por aí. O Dorneles seguiu caminho e deixou o coitado do professor bastante preocupado com a história dos quinhentos reais. Mais dia, menos dia, ele teria de barrar a escalada da dívida antes de recorrer ao FMI. O pior é que não sobrava nem um centavo depois de pagar o açougue, a padaria, a farmácia...

          Apesar da preocupação, o professor Avelar achou interessante aquele sujeito rude, sovina e ignorante ser sensível à arte de Euterpe. O Dorneles não era assim tão bronco como pensava. Ele gostava de música e apreciara seu último dobrado que, aliás, era mesmo uma criação de mestre. Homem culto, violinista, poeta, compositor e maestro, o professor, naquele momento, preferia uma carteira recheada a tantos dotes intelectuais. Na verdade, estava mesmo numa boa enrascada. Foi, então, que lhe veio a feliz ideia de trocar lições de solfejo pelos juros da dívida. Seria um bom negócio para os dois. Proposta feita, proposta aceita. Nos fins de semana, o Dorneles passou a vir religiosamente ao bangalô do professor Avelar para as lições de solfejo e teoria musical. O professor cada vez mais se entusiasmava com o talento e a notável aplicação de seu aluno que seguia, à risca, seus ensinamentos em troca dos juros dos quinhentos reais.

          Alguns meses se passaram e, após as lições sobre “andamento e ornamentos”, o professor, a contragosto, deu por encerradas as aulas e admitiu o recomeço do pagamento dos juros. A não ser que...

          - Desistiu da clarineta, Dorneles?

          - Eu? Quá! Quem sou eu, professor? Nem clarineta eu tenho.

          - Isto a gente dá um jeito. Posso ajudar.

          - É, mas quem vai me ensinar? O Roque não sabe. Ele só toca prato.

          - Eu ensino, se quiser. Acho que aprende em pouco tempo.

          - O senhor sabe tocar clarineta também? Puxa! O senhor é danadinho, professor.

          As aulas recomeçaram, desta vez ao som de uma clarineta emprestada. O aprendizado ia de vento em popa enquanto os juros permaneciam estacionados para a felicidade do professor Avelar. No início, eram só os primeiros sopros desafinados, seguidos das notas soltas e de escalas ascendentes e descendentes. Depois, o professor compunha umas lições fáceis, com mínimas e semínimas, diversificava os compassos, introduzia colcheias, semicolcheias e pausas. Dorneles assimilava tudo com a maior facilidade, a ponto de o professor escrever para ele uma valsinha cheia de quiálteras e apogiaturas, valsinha que foi digerida num átimo. O aluno tinha parte com o sopro e a palheta.

          Nada mais havendo para ser ensinado e aprendido, para a alegria do aluno e a tristeza do professor, encerraram-se as atividades musicais. Poucos dias depois, o Dorneles apareceu na porta do bangalô do professor com a finalidade de reativar os juros dos quinhentos reais. Apesar de todos os benefícios recebidos, ele não estava disposto a perdoar um centavo sequer. Conversa vai, conversa vem, o Dorneles deixou transparecer sua desilusão com a clarineta. O estudo fora perda de tempo, pois não tinha músicas para executar em seu instrumento e não conseguia tocar sem ver as notas na pauta, com compasso e tudo mais. O professor, imaginando uma proposta interessante, arriscou:

          - Não seja por isso. Tenho algumas partituras de valsa, dobrados e marchas fúnebres que compus e nunca foram executados por aí. Se quiser aproveitá-las, posso emprestar-lhe algumas se ...

          - Aceito. Dois meses sem os juros, conforme a quantidade.

          O professor não esperou mais nada. Saiu às pressas para o quartinho da sala onde guardava o violino, o trompete, aposentado por falta de fôlego, e as benditas partituras musicais de sua autoria, um calhamaço de fazer inveja a J Strauss, a J F Sousa, e a João da Mata, uma preciosidade.

          Quando voltou, tratou de apresentar a obra, exagerando nos elogios e atenuando as dificuldades. O Dorneles, de queixo caído diante daquele precioso acervo, não teve dúvidas de que se tratava de um negócio da China. Afinal, ele jamais compraria tamanha coleção pelos juros de dois meses, uns setenta reais.

          Feliz da vida, o Dorneles se foi, levando consigo três valsas, dois dobrados e duas marchas fúnebres, obras inéditas da melhor qualidade. Foi-se e desapareceu por algum tempo. O professor, assentado em sua cadeira, na varanda do bangalô, respirava aliviado por ter feito o melhor negócio de sua vida. Mas a felicidade durou apenas alguns meses. Um belo dia, ou melhor, um dia sinistro, o Dorneles apareceu com as mãos nos bolsos da calça e um sorriso maroto de quem havia levado a melhor em alguma transação.

          - Oi, professor, que tempão, hem? Tomei chá de sumiço, não tomei? O senhor, com certeza, achou que eu morri, não achou?

          - Morrer? Você não morre assim tão fácil, meu amigo. É jovem e cheio de vida. Eu é que já estou na fila... Mas, que aconteceu? Ah, já sei. Os quinhentos, não é?

          - Que nada! é só um malemaleque sem importância. Eu vim passando e... Ah, quer saber? pra falar a verdade é sobre eles mesmo. Só que o negócio agora é outro.

          - Aumentou os juros. Eu já esperava. Coitado de quem pede dinheiro a qualquer um.

          - Que é isso, professor? Sou um homem de seriedade. Pra provar que sou um sujeito sério, fiz um negocião pra nós dois. Pra mim e pro senhor.

          - Negocião? Bom para mim?

          - Não é, professor? Escute. Eu não sou bobo nem nada. Já percebi, há muito tempo, que o senhor nunca vai me pagar os quinhentos que me deve. Então, resolvi tomar minhas providências.

          - Providências?

          - É isso mesmo. Outro dia, fui levar umas encomendas lá em Brojocó e fiquei sabendo que a cidade tinha uma bandinha de música, uma bandinha de nada, muito mixuruca. Aí, eu procurei o músico maestro e fiz a oferta.

          - Oferta?

          - Ele topou na hora. Vendi as partituras do senhor por seiscentos reais e ainda me convidou para tocar clarineta na banda dele. Tirei meus quinhentos e vim trazer o troco de cem pro senhor. Aqui, tome. Cem reais. Tudo resolvido. Um negocião! Sou ou não sou um homem de seriedade?

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Nídia Maria da Costa Reis - Educadora, escritora, soma mais de cem pequenas histórias e poemas catalogados, além da coleção 12 provérbios e suas histórias, que chegou à quarta edição e concorreu ao Prêmio Jabuti de Literatura. Aventuras de Gui Omar é seu trabalho mais recente.



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