Um
telefonema.
Fechou a
revista e a sobrepôs à carteira, dirigindo-se depois para o aparelho, calmo,
cantarolando uma cantiga do seu tempo de menino.
“Alô”. Era
Laura. “Quem?”
Não
acreditou; havia tanto tempo, anos a fio. “Não está acreditando! Sou eu mesma”.
Por quê? Dez
anos não são dez dias; nem saudade existia mais, somente algumas lembranças a
esmo, soltas, sem nenhuma emoção. Até mesmo aquela raiva forte havia sumido
pelo vento. Mas agora voltava a voz de Laura, autêntica, doce, quase cantante a
momentos; o retorno de alguns flagrantes, o perfume que ela gostava depois do
banho. “Alô, é Laura”.
Conhecera
outras Lauras, mais de duas; a que lhe telefonava, porém, fora a única, dona da
vida dele, dos afazeres, de seu destino. “Volto amanhã, estou na Conselheiro
Rui Barbosa, 146”.
Pensou
perguntar alguma coisa a Laura; “o quê?” Não havia nenhum assunto, nem velho
nem novo, nem interesse que o houvesse não; tudo agora era outra coisa, outro
mundo entre os dois. Guardou o endereço na memória, particularmente o número;
pensou anotá-lo, mas confiou na memória. Lembrou do tempo de colegial quando
decorava de ponta a ponta qualquer lição, com facilidade; era elogiado, assim,
pela professora, por muitos colegas, invejado por outros.
Praticamente
não tinha nada agora para dizer a Laura; passado obscuro, ausência, distância.
Recordou, porém, como sombra, ela encostada numa amendoeira do quintal,
arrochada pelo vizinho, sujeito que ninguém o diria capaz. Até isso não passava
de imagem apagada pelo tempo, uma caricatura, mesmo como causa da separação. Ia
ver Laura, assim, sem nenhum constrangimento. No outro dia ela estaria voltando
para a Argentina. Gostaria de vê-la.
Encaminhou-se para a Conselheiro Rui Barbosa; rua comprida, cheia de
edifícios altos, magazines de luxo, agências bancárias, lanchonetes, bancas de
revistas, trânsito intenso de veículos. Avistou o prédio de número 126; “está
perto”. Olhava pelo lado dos números pares; mais alguns edifícios e chegaria ao
146. Chegou.
Era uma casa
grande, em ruínas, antiga, cupim pelos postigos das janelas fechadas, dois
edifícios ladeando-a; olhou para as cornijas estragadas, cheias de manchas
escuras; para as soleiras de mármore sujas nas portas e janelas arqueadas como
de igreja colonial. Seria ali. Laura. Não anotara o número, mas o tinha gravado
na memória, claro, como o fazia com as lições no tempo do colégio; tanto que
até agora as guardava na cachola, como o descobrimento do Brasil, como os nomes
dos navegadores, das naus, o atracamento em Porto Seguro. “Vou bater na porta”.
O fez, desconfiado, com medo de ser considerado doido; a casa antiga, suja,
fechada, roída pelo cupim. Bateu algumas vezes, olhava para trás; “este sujeito
é maluco”. Laura. Nem sombra de ninguém.
Atravessou
para o outro lado da rua, perguntaria numa banca de revistas em frente; “não,
senhor, ali não mora ninguém”.
Levantou a
cabeça e ficou mirando um edifício à esquerda da casa velha, número 144. Quantos
andares? Contou até o meio. Oito. Janelas envernizadas, vidros em cores,
limpos. Junto ao edifício a casa parecia-lhe mais atarracada. “O senhor tem
certeza?” O homem das revistas falou: em torno de três anos, nunca morou
ninguém ali. Será que havia confundido casa com edifício? O 146 seria número de
casa ou de apartamento? Acreditava na memória; “nunca falhou, desde o tempo do
colégio”.
Depois de ir
e voltar, atravessar pra lá e pra cá, teve a ideia de informar-se numa
lanchonete. “Não mora ninguém”.
Lembrou que
meninos de rua sabem das coisas, mas não havia nem um menino de rua no local.
Mas tinha certeza sobre o número; ora, perfeitamente. Mas havia somente uma
casa velha fechada, cheia de cupim. Sobre o número, nem tinha dúvida, era
aquele, o sentia fresco na cabeça, através da fala sutil de Laura pelo telefone
sem ruído. Impressão, nenhuma. Certo que estava esquecido dela, da fala, mas
reconheceu tudo de repente, rememorou até a cena em baixo da amendoeira. No
momento do telefonema estava tranquilo lendo uma revista; guardou perfeitamente
o timbre da voz de Laura lhe dizendo o número.
Por que no
local havia uma casa velha, desabitada, cheia de cupim pelos postigos? “Não
mora ninguém”. Insistir novamente sobre o inusitado assunto, seria inútil. No
dia seguinte Laura estaria voltando para a Argentina. Não havia uma pessoa que
pudesse ajudá-lo. Mesmo assim andou perambulando o resto da tarde, e à noite
voltou para o escritório; antes de sair de lá o telefone tocou. Ligação errada.
A custo
conseguiu dormir. Sonhou com Laura, ele anotando num pedaço de papel o número
146. Amanheceu com a cabeça zonza lembrando da casa velha ruída pelo cupim,
onde não morava ninguém, onde Laura nunca teria se hospedado. “Teria sido o espírito
dela zanzando por aqui?” Pensou, em última análise.
LINHAS INTERCALADAS
Ariston Caldas
* * *