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quarta-feira, 29 de janeiro de 2025

 O Vizinho e a Filarmônica

Cyro de Mattos

 


O vizinho ainda conserva o hábito de sentar na cadeira de vime, colocada no passeio quando é noite de lua clara. Vem tirar bons dedos de prosa enquanto a brisa ligeira passa pelos cabelos brancos e suaviza o rosto de pele enrugada. Às vezes, pigarreia, descansa, retoma daí a instante o rumo da conversa na voz cansada.

O vizinho contou-me certa vez que a primeira filarmônica não saía tocando pelas ruas. Quando era inverno, chovia bastante no arraial, as ruas esburacadas estavam sempre cheias de lama. Alguns comerciantes mandavam enfiar garrafas de cabeça para baixo na terra centenária. Os fundos das garrafas, unidos, formavam um passeio diferente, servindo para proteger da lama a entrada dos estabelecimentos na rua do comércio. Era aí nesses passeios feitos com fundo de garrafa que a filarmônica tocava em tempo de festa.

Segundo meu vizinho, as Filarmônicas Lira Popular e Minerva tiveram presença marcante na cidade quando surgiram as primeiras ruas calçadas. Cada uma queria ser melhor do que a outra quando se apresentavam sob o entusiasmo de seus componentes e admiradores. Pertenciam a partidos políticos que mantinham uma rivalidade das mais aguerridas.

As filarmônicas quando iam tocar em tempo de eleições evitavam-se encontrar pelas ruas estreitas. Teve uma vez que se encontraram numa rua tão estreita que não puderam passar as duas ao mesmo tempo. Como nenhuma delas resolvesse recuar para que a outra passasse, houve discussões, bate-boca e xingamento. Uma gritava “Viva a Lira!”, a outra respondia “Morra!” Ânimos acesos, entre gritos e vaias, a confusão generalizou-se, com socos, pontapés, gritos e desmaios. Foi comentário na semana que houve feridos e mortos.

Por motivos óbvios, daí em diante não se viu mais uma filarmônica passar em frente da sede da outra, tocando em tom provocativo.

A Filarmônica da Euterpe ensaiava numa casa antiga, que tinha um palanque em frente da praça. Apresentava-se no palanque, durante os festejos de fim de ano ou no tempo de eleições, antes que os candidatos desfilassem com seus discursos inflamados. Nos domingos tocava marchas, hinos pátrios e valsas. O povo na praça encantava-se. Num êxtase de onda, sentia as horas passando com prazer por meio de sons harmoniosos. Escutava a prata do clarinete, o ouro do saxofone, a flor da flauta, o brilho do pistão e os diamantes na caixa. Havia o riso entre os assistentes quando o homem bigodudo dava sopros gordos na tuba. O povo dançava na praça quando a filarmônica convidava a todos para voar na valsa.

Não sei como explicar a sensação que até hoje me acompanha quando vejo uma filarmônica tocar no coreto de qualquer cidade. Quando era menino, não podia ver a filarmônica passar tocando na rua. Saía atrás apressado, acompanhando-a alegre pelas ruas da cidade. O sonho àquela noite era sereno, sob acordes e modulações de uma onda que me levava, em tom festivo, pelas zonas suspensas do puro encanto. Não perdia uma apresentação da filarmônica nos festejos de fim de ano, com quermesses armadas na praça em frente da igreja, ou no coreto do jardim. Cheguei a assistir vários ensaios da Filarmônica da Euterpe sob a batuta do maestro Elpídio, no prédio do Montepio dos Artistas.

Não consigo entender por que a filarmônica deixou de tocar de uns tempos para cá na praça ou coreto do jardim. Fico entre saudoso e triste com a ausência de suas tocatas. Sinto que a filarmônica vai ficando cada vez mais no aceno triste das distâncias. Tornou-se como uma mancha imprecisa que se instalou na memória da chuva. Para acendê-la um pouco com os raios do sol que brilhava no verão, tomo como via plausível de revê-la ouvir o poeta Chico Buarque de Holanda. Coloco o CD no aparelho de som. Na parte em que o poeta fala da banda é que me encanto ainda mais. Aparecem sentimentos, levando-me de volta a um tempo perdido na fuga dos anos. O coração pulsa como se tudo de repente acontecesse novamente. As pessoas nas janelas e passeios vinham conferir a banda que passava tocando, puxando pela cauda meninos afoitos no tempo iluminado de amor.

Amanhã vou convidar o meu vizinho para de novo ouvirmos Chico Buarque. Vamos assim assistir a filarmônica, vê-la pelas ruas tocando, os seus componentes trajando o uniforme bonito, com alamares nos ombros, fios dourados nos punhos. Vamos retirar da alma pedaços coloridos da infância, viajar no tempo em que ouvíamos a filarmônica na praça. E voávamos

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*Cyro de Mattos é escritor e poeta. Autor de 70 livros pessoais e, entre eles, cinco de crônicas. Também editado no exterior. Advogado e jornalista. Colabora quinzenalmente com a revista da crônica Rubem, há mais de quinze anos editada pelo jornalista e cronista Henrique Fendrich em Brasília, como homenagem a Rubem Braga, o melhor cronista do Brasil. Conquistou o Prêmio Casa das Américas em 2023 com o livro Infância com Bicho e Pesadelo e outras histórias.

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