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quarta-feira, 10 de maio de 2017

O CALANGO E O VIAJANTE por JULIANA VALENTIM

O Calango e o viajante

Uma fábula do cerrado para quem tem bom coração.


O viajante de bom coração leva consigo pouca bagagem. Sabe que cada vez que pisa em solo novo, sua alma se mistura à paisagem. Tornando-se uma coisa só, é muito mais fácil viver. Foi isso que aconteceu quando chegou ao cerrado. De repente, seus olhos viraram lua, seus pés viraram mato e o sangue de suas veias começou a cantar baixinho um canto de cachoeira com voz de passarinho.

O viajante logo percebeu que aquela terra era diferente. Ali, o mar virava céu e o céu virava mar. Era preciso estar atento para enxergar, mudar de perspectiva, virar de ponta cabeça.
Sem medo, resolveu experimentar. E viu suas pernas virarem árvores que, contorcidas, dançavam um balé suave. O viajante dançou a noite inteira. Quando a manhã chegou, cansado, adormeceu.

Acordou recebendo um beijo nos lábios de um bichinho que o olhava intrigado. Quem é você, perguntou? Sou o calango do cerrado, moro aqui, moro acolá, sou dono desse lugar. O viajante de bom coração faz amigos pelo caminho. Quando perceberam, os dois já estavam rindo, lembrando das histórias do Tamanduá. Um dia, ele também havia vivido por lá, mas quase extinto, levantou a bandeira e já não voltava para visitar. O mesmo aconteceu com o Lobo Guará. E coração do calango doeu de saudade.

Decidiram, então, sacudir a poeira. Haviam conversado a manhã inteira e já era hora de almoçar. O calango, animado, decidiu cozinhar. E em pouco tempo, um aroma diferente pairava no ar. O que é isso, perguntou o viajante? É pequi, vem provar! Só não pode morder, é melhor raspar. Almoço bom que é danado. Sobremesa, tem? Tem os frutos do cerrado, coisa melhor não há. Tem Baru, Cagaita, Araticum, Mama-Cadela para os males curar.

O viajante, que iria embora em poucos dias, resolveu ficar.
Estava apaixonado por aquelas terras, queria aproveitar.
Então, os meses se passaram. Aos poucos, a chuva foi cessando e o sol rachou de brilhar. Sem cair água do céu, viu o cerrado secar. Sendo ele e sua paisagem uma coisa só, a sede daquele chão na sua garganta dava um nó.

Viu o verde virar tinta e o fogo pintar de cinza o que a terra tinha a oferecer. O que estaria acontecendo? Viu tanto bicho correr. Pela primeira vez, o viajante teve medo de morrer.
Mas o cerrado, encantado, não desiste de surpreender.
Quando menos esperava e achou que a vida acabava, virou Ipê!

* Este conto participou do I Concurso Literário de Sustentabilidade do Cerrado Brasileiro.

JULIANA VALENTIM
Nós moramos mesmo é nas entrelinhas, no silêncio dos intervalos. Somos feitos de uma voz que grita e uma voz que cala. Como música! A magia não está no que se ouve, mas no exato instante da pausa



http://obviousmag.org/o_segredo_da_pausa/2017/04/o-calango-e-o-viajante.html


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EDUARDO PORTELLA - Carlos Heitor Cony.

Eduardo Portella


"Não sou ministro. Estou ministro." A frase, pronunciada pelo então ministro da Educação, em sua simplicidade radical, ficou sendo uma das melhores expressões do velhíssimo problema que tenta definir a relação do intelectual com o poder. Pronunciou-a em causa própria Eduardo Portella, que aceitara o cargo num momento em que o fim da ditadura e a abertura política eram consideradas iminentes.

O tema (cultura e poder) frequenta sua obra de ensaísta e crítico de literatura. Um de seus livros, publicado pela Tempo Brasileiro, editora de sucesso que fundou, tem o título de "O Intelectual e o Poder".

Nele, o ensaio "O Renascimento da Utopia" desenvolve magistralmente aquela frase pronunciada num momento de sua biografia: "E daí também a necessidade de o intelectual guardar, como arma não tão secreta, o trunfo da insubmissão. A alternativa da insubordinação deve recuperar o ser do estar. Até porque nós só temos o que podemos perder, o que não podemos perder nos tem".

Baiano, formado em Recife, onde conviveu com Gilberto Freyre, Portella fez estudos na Espanha, quando foi aluno de Dámaso Alonso e Carlos Bousoño. Mais tarde, na Itália, onde recebeu aulas de Ungaretti e de Bataillon, no Collège de France e na Sorbonne, tornando-se, assim, o crítico mais bem equipado de sua geração. Portella construiu sólida reputação não apenas na crítica da literatura, mas nos assuntos brasileiros em geral.

A série que escreveu, "Dimensões", é um dos momentos mais nobres e fecundos de nossa história literária.

Sua morte nesta semana desfalcou a nossa cultura, a Academia Brasileira de Letras, e eu perdi um amigo que muito me ensinou e que nunca esquecerei.

Foi um "gentleman" em todos os sentidos e honrou o nosso tempo com o seu exemplo e o legado que nos deixou.

 Folha de São Paulo (RJ), 07/05/2017


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Carlos Heitor Cony - Quinto ocupante da Cadeira nº 3 da ABL, eleito em 23 de março de 2000, na sucessão de Herberto Sales e recebido em 31 de maio de 2000 pelo acadêmico Arnaldo Niskier.

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MIRIQUI - Helena Borborema

Miriqui


           Já se passaram muitos anos. Felizmente, nenhum trauma ficou do acontecido, apenas a lembrança. Hoje acho graça quando falo sobre o episódio, mas na ocasião foi um verdadeiro drama na minha vida de criança. Tinha eu uns seis anos de idade e, não sei por que circunstâncias era bastante voluntariosa, querendo sempre ser atendida nos meus desejos. Quando contrariada, armava verdadeiras cenas. Se estivesse na rua, sentava na soleira da primeira porta que encontrasse e teimava em não continuar a caminhada. Só saía, debaixo de muito agrado. Quando resolvia não calçar os sapatos, era  preciso muita persuasão e adulação, para conseguirem que eu atendesse. Para tomar óleo de rícino, quando achavam que era preciso, o que era o meu pavor, aí então eu fazia verdadeiro escândalo, correndo em cima da cama, recusando todas as promessas e presentes.

          Mas havia uma empregada que cuidava de mim, naquele tempo chamada ‘ama de menino’ em vez de ‘babá’, e esta astuciou um meio de acabar com as minhas teimosias. Contou-me a história de um preto velho chamado Miriqui, que andava pelas ruas com um cacete nas mãos e um enorme saco de couro às costas, cheio de meninos teimosos que ele ia pegando. “E o que era feito com esses meninos?, perguntei eu, muito interessada. Eram levados para o sertão e nunca mais viam nem o pai nem a mãe. Miriqui batia nos meninos com o cacete e mandava que eles cantassem: “canta, canta, meu surrão, se não te dou com o meu bordão”. “E ele pagava gente grande?”, perguntei medrosa, pensando em meus pais. “Às vezes, quando encontrava”, respondeu a narradora, muito séria. É evidente que esta história me apavorou. Logo visualizei a figura horrível de Miriqui, velho, magro, de barbicha, com o cacete na mão e o saco para esconder os meninos. E o sertão, o que era? Era um lugar longe, muito longe, todo cinzento, sem casas, uma espécie de túnel por onde Miriqui passava com o enorme saco, andando, andando, e os meninos chorando, sem nunca mais voltar para casa, explicou-me a ama.
  
          A pedagogia da minha ama Antonia era a do terror e surtiu certo efeito. Mas talvez, devido ao bem querer de que eu era cercada, logo esquecia a terrível história e, quando recomeçava uma das minhas cenas, a ameaça me alertava: ”Vou chamar Miriqui!”. A teimosia acabava de imediato.

           Um dia, à tardinha, estava bem tranquila, brincando com minhas bonecas num canto da sala. Era a hora de meu pai voltar para casa. De repente ouvi um vozerio na rua, bem perto, palavras alteradas. Trepei numa cadeira e fui espiar da janela. Alguns curiosos se dirigiam para a esquina próxima, quando, acompanhando com atenção a movimentação do grupo, dei de olhos com uma cena terrível: um velho alto e magro, negro, de barba comprida, com um saco nas costas e um cacete na mão, esbravejava e rodopiava sobre o passeio. Não sabia eu que o velho era um bêbado contando bravatas. Diante de tal figura, só podia pensar em Miriqui. Sim. Era ele verdadeiro. O que aquele espetáculo produziu no meu espírito naquele momento de pavor, podia ter deixado marcas no meu sistema nervoso. Estava vendo o Miriqui em carne e osso. Lembrei-me que o meu pai ia chegar e, sem nada saber, ia passar perto de Miriqui, que logo o pegaria, jogaria no saco e o levaria para o sertão, de onde não mais voltaria. Miriqui ia pegar meu pai! A imagem que formei foi de terror. Entrei em crise de choro e gritos de desespero tão forte, que não sei como esse abalo emocional não me deixou marcas para o resto da vida.

         Talvez a presteza com que minha mãe me abraçou e as suas palavras de segurança me protegeram. Na mesma hora, meu pai foi chegando, trazendo paz ao meu espírito de criança. Esse episódio foi tão traumático que nunca se apagou da minha memória. Ainda hoje revejo claramente a minha figura pequena da janela olhando a cena, com o coração aos pulos e os meus gritos de terror. Felizmente, a infância cercada de amor e a afetividade e segurança em que vivi, fizeram com que a pedagogia maluca da minha bem intencionada ama perdesse o seu efeito. Fizeram-me compreender que o terrível Miriqui não existia e a sua lembrança, hoje, só me faz achar engraçado o episódio quando penso nas meninas bobas do meu tempo, pois aquele Miriqui que aterrorizou  não só a mim como a outras crianças do passado, não creio que hoje merecesse nenhuma credibilidade ou temor da meninada, tão acostumado está o mundo com o contato diário e normal com os seres terríveis e perigosos dos filmes com que a TV nos presenteia diariamente. A figura de um Miriqui para qualquer criança, hoje, seria completamente ridícula e desacreditada.

           Mas, se um imaginário Miriqui foi arquitetado na minha infância para meter medo a crianças teimosas, hoje, infelizmente, o mundo está cheio de Miriquis reais que foram nascendo com a maldade humana, os desajustes sociais, o desemprego, a ausência de Deus nos corações, os péssimos programas  e enredos da TV e do cinema, verdadeiras fábricas de Miriquis. Dia a dia estão sendo clonados pela impunidade, e aí estão eles, espalhados nas cidades, nas ruas, nos ônibus, nas casas, estradas, encontrados a cada instante e por todos os lados, fazendo vítimas. O Miriqui da minha infância, que me atemorizava, nunca existiu, a não ser na minha mente infantil, produto de histórias inventadas, mas os de hoje são perigosos porque reais. O surrão que carregam está repleto de drogas, maldades, e saem eles por ai à cata, não de crianças teimosas,  mas de qualquer pessoa que se enquadre na sua mira, jovens, pais de família, todos aqueles de quem possam tirar proveito ou dar expansão aos seus instintos cruéis. Em lugar do bordão, carregam revólveres e metralhadoras. Com sua maldade, vão deferindo golpes mortais no corpo, no patrimônio dos que vão encontrando pelo caminho. E de maldade em maldade, de crime em crime, lá se vão eles medonhos, amedrontando, trilhando os túneis cinzentos da vida.

 (“RETALHOS”)
Helena Borborema



HELENA BORBOREMA - Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município.

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TABOCAS – ITABUNA - Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves

Clique sobre a foto, para vê-la no tamanho original
Tabocas – Itabuna


Foi aos mil e oitocentos e quarenta e nove...
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Alma de pioneiro altivo que remove
Aquilo que se opõe à sua caminhada
FÉLIX DO AMOR DIVINO, aventureiro e forte,
Partira de Sergipe aventurando a sorte
E agora está feliz!... Prossegue na jornada!

Já não lhe basta agora a roça MARIMBETA
Chegaram seus irmãos... e então projeta:
MANOEL CONSTANTINO, avante, outra fazenda!...
Vamos abrir lugar, seja onde for; preciso!...
Transformar esta mata em nosso paraíso...
E o crioulo escutou... sonhando a grande prenda!...

Seu amo era tão bom... jamais o desprezara...
Pensava... e de repente... assim, a ideia clara...
Partiu a procurar um local diferente...
Depois de muito andar... parou... quase um encantado
Estava bem defronte o lugar desejado...
Lado esquerdo do rio... estava à sua frente!...

A mata vai gemendo... e a terra se estremece...
E o matagal cortado em fúria, desfalece...
MANOEL CONSTANTINO é um ciclone humano,
Mas, um jequitibá exsurge inesperado...
Vetusto e gigantesco e não deteriorado...
Constantino prevê então trabalho insano...

São contratados, logo, uns fortes machadeiros...
E os dois irão cortar com golpes ligeiros,
Postados face a face, ao redor do gigante!...
Aquele que o machado entrar como uma broca,
Cortando mais veloz, então dará taboca
Por derribar primeiro o tronco agonizante!

Um grupo torcedor espera o resultado...
No silêncio da espera escuta-se o machado
E o arvoredo a gemer, ao golpe que lhe toca...
Num lance mais veloz – um MACHADEIRO o corta!
Treme JEQUITIBÁ... e cai... árvore morta!...
E a turma brada e aplaude... a lhe gritar TABOCA!

Aberta estava a mata agora ao CONSTANTINO...
É o mundo que sonha FELIX DO AMOR DIVINO...
Um novo povoado exsurge florescente!...
Mas... há um coração que quer dias melhores,
Que quer civilidade e músicas e flores,
Que sonha desta selva – a cidade nascente!

TABOCAS – gozarás feliz prosperidade!
Hás de crescer... enfim...serás uma cidade!
Não é que teu ditoso encanto te ressalves;
Mas é que existe ALGUÉM que sonha engrandecer-te
Que ao concerto da vida espera enobrecer-te,
É o grande lutador – José Firmino Alves!...

E os sonhos de Firmino Alves, como os de seu tio,
Os óbices vencendo, avançam como um rio...
Eis vibra de alegria a gente Grapiúna...
Surge Olinto Leone o primeiro Intendente...
Libertou-se o arraial...é Vila... Independente!

ITABUNA! ITABUNA!... Eis o passo seguinte!...
Novecentos e dez... Eis o século vinte!...
Eis VINTE E OITO DE JULHO – o teu dia sublime...
Afinal és CIDADE em toda fulgurância...
A Bahia se ufana em fidalga elegância,
Que ao Brasil teu cacau a lavoura redime!...

***
Itabuna, fevereiro de 1960
Nataniel Ruben Ribeiro Gonçalves

(Ensaios Históricos de Itabuna, O JEQUITIBÁ DA TABOCA – 1ª Edição 1960)
Manoel Bomfim Fogueira e Oscar Ribeiro Gonçalves.

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