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quarta-feira, 15 de junho de 2022

A POLÊMICA - Artur Azevedo


A Polêmica

 

            O Romualdo tinha perdido, havia já dois ou três meses, o seu lugar de redator numa folha diária; estava sem ganhar vintém, vivendo sabe Deus com que dificuldades, a maldizer o instante em que, levado por uma quimera da juventude, se lembrava de abraçar uma carreira tão incerta e precária como a do jornalismo.

            Felizmente era solteiro, e o dono da “pensão” onde ele morava fornecia-lhe casa e comida a crédito, em atenção aos belos tempos em que nele tivera o mais pontual dos locatários.

            Cansado de oferecer em pura perda os seus serviços literários a quanto jornal havia então no Rio de Janeiro, o Romualdo lembrou-se, um dia, de procurar ocupação no comércio, abandonando para sempre as suas veleidades de escritor público, os seus desejos de  consideração e renome.

            Para isso, foi ter com um negociante rico, por nome Caldas, que tinha sido seu condiscípulo no colégio Vitório, a quem jamais ocupara, embora ele o tratasse com muita amizade e o tuteasse, quando raras vezes se encontrava na rua.

           

            O negociante ouviu-o, e disse-lhe:

            - Tratarei mais tarde de arranjar um emprego que te sirva; por enquanto preciso da tua pena. Sim, da tua pena. Apareceste ao pintar! Foste a sopa que me caiu no mel! Quando entraste por aquela porta, estava eu a matutar, sem saber a quem me dirigisse para prestar-me o serviço que vou te pedir. Confesso que não me tinha lembrado de ti... perdoa...

            - Estou às tuas ordens.

            - Preciso publicar amanhã, impreterivelmente, no “Jornal do Comércio”, um artigo contra o Saraiva.

            - Que Saraiva?

            - O da rua Direita.

            - O João Fernandes Saraiva?

            - Esse mesmo.

            - E queres tu que seja eu quem escreva esse artigo?

            - Sim. Ganharás uns cobres que não te farão mal algum.

            A essa palavra “cobres”, o Romualdo teve uma estremeção de alegria; mas caiu em si:

            - Desculpa, Caldas; bem sabes que o Saraiva é, como tu, meu amigo... como tu, foi meu companheiro de colégio...

            - Quando conheceres a questão que vai ser o assunto desse artivo, não te recusarás a escrevê-lo, porque não admito que sejas mais amigo dele do que meu. Demais, nota uma coisa: não quero insultá-lo, não quero dizer nada que o fira na sua honra, quero tratá-lo com luva de pelica. Sou eu o primeiro a lastimar que uma questão de dinheiro destruísse a nossa velha amizade. Escreves o artigo?

            - Mas...

            - Não há mas nem meio mas! O Saraiva nunca saberá que foi escrito por ti.

            - Tenho escrúpulos...

            - Deixa lá teus escrúpulos, e ouve de que se trata. Presta-me toda atenção.

            E o Caldas expôs longamente ao Romualdo a queixa que tinha do Saraiva. Tratava-se de uma pequena questão comercial, de um capricho tolo que só poderia irritar um contra o outro, dois amigos que não conhecessem  o que a vida tem de áspero e difícil. O artigo seria um desabafo menos do brio que da vaidade, e, escrevendo-o, qualquer pena hábil poderia, efetivamente, evitar uma injúria grave.

            O Romualdo, que há muito tempo não pegava numa nota de cinco mil réis, e apanhara, na véspera, uma descompostura da lavadeira, cedeu, afinal, às tentadoras instâncias do amigo, e no próprio escritório deste redigiu o artigo, que satisfez plenamente.

            - Muito bem! – exclamou o Caldas, depois de três leituras consecutivas.

            - Se eu soubesse escrever, escreveria isto mesmo! Apanhaste perfeitamente  a questão!

            E, depois de um passeio à burra, meteu um envelope na mão de Romualdo, dizendo-lhe:

            - Aparece-me daqui a dias: vou procurar o emprego que desejas. A época é difícil, mas há de se arranjar.

            O Romualdo saiu, e, ao dobrar a primeira esquina, abriu sofregamente o envelope: havia dentro uma nota de cem mil réis. Exultou! Parecia-lhe ter tirado a sorte grande!

            Na manhã seguinte, o ex-jornalista pediu ao dono da “pensão” que lhe emprestasse  o “Jornal do Comércio”, e viu a sua prosa “Eu e o sr. João Fernandes Saraiva” assinado pelo Caldas; sentiu alguma coisa que se assemelhava ao remorso, o mal-estar que acomete o espirito e se reflete no corpo do homem todas as vezes que este pratica um ato inconfessável, e aquilo era uma quase traição. Entretanto almoçou com apetite.

            À sobremesa entrou na sala de jantar um menino, que lhe trazia uma carta em cujo sobrescrito se lia a palavra “urgente”.

            Ele abriu e leu:

            “Romualdo. – Preciso falar-lhe com a maior urgência. Peço-lhe que dê um pulo ao nosso escritório hoje mesmo, logo que possa. Recado do – João Fernandes Saraiva”.

            Este bilhete inquietou o ex-jornalista.

            Com certeza, pensou ele, o Saraiva soube que fui eu o autor do artigo! Naturalmente alguém me viu entrar em casa do Caldas, demorar-me no escritório... desconfiou da coisa e foi dizer-lhe... Mas para que me chamará ele?

            O seu desejo era não acudir ao chamado; alegar que estava doente, ou não alegar coisa alguma, e lá não ir; mas o menino de pé, junto à mesa do almoço, esperava a resposta... Era impossível fugir!

            - Diga ao seu patrão que daqui a pouco lá estarei.

            O menino foi-se.

            O Romualdo acabou a sobremesa, tomou o café, saiu, e dirigiu-se ao escritório do Saraiva, receoso de que este o recebesse com duas pedras na mão.

 

            Foi o contrário. O amigo recebeu-o de braços abertos, dizendo-lhe:

            - Obrigado por ter vindo! Estava com medo de que o pequeno não te encontrasse! Vem cá!

            E levou-o para um compartimento reservado.

            - Leste o “Jornal do Comércio” de hoje?

            - Não – mentiu prontamente o Romualdo – Raramente leio o “Jornal do Comércio”.

            - Aqui o tens; vê que descompostura me passou o Caldas!

            O Romualdo fingiu que leu.

            - Isso que aí está é uma borracheira, mas não é escrito por ele! – bradou o Saraiva. – Aquilo é um besta que não sabe pegar na pena senão para assinar o nome!

            - O artigo não está mau... Tem até estilo...

            - Preciso responder!

            - Eu, no teu caso, não respondia...

            - Assim não penso. Preciso responder amanhã mesmo no próprio “Jornal do Comércio” e, se te chamei, foi para pedir-te que escrevas a resposta.

            - Eu?...

            - Tu, sim! Eu podia escrever, mas... que queres?... Estou fora de mim!...

            - Bem sabes – gaguejou Romualdo – que sou amigo do Caldas. Não me fica bem...

            - Não te fica bem, por quê? Ele com certeza não é mais teu amigo que eu! Depois, não é intenção minha injuriá-lo; quero apenas dar-lhe o troco!

            No íntimo o Romualdo estava satisfeito, por ver naquele segundo artigo um meio de atenuar, ou, se quiserem, de equilibrar o seu remorso.

            Ainda mastigou  umas escusas, mas o outro insistiu:

            - Por amor de Deus não te recuses a este obséquio tão natural num homem que vive da pena! Tu estás desempregado, precisas ganhar alguma coisa...

            O Romualdo cedeu a este  último argumento, e, depois de convenientemente instruído pelo Saraiva sobre a resposta que devia dar, pegou na pena e escreveu ali mesmo o artigo.

            Reproduziu-se então a cena da véspera, com mudança apenas de um personagem. O Saraiva, depois de ler e reler o artigo, exclamou: - Bravo! Não poderia sair melhor! – e, tirando da algibeira um maço de dinheiro, escolheu uma nota de duzentos mil réis e entregou-o ao prosador.

            - Oh! Isso é muito, Saraiva!

            - Qual muito! Estás a tocar leques por bandurra: é justo que te pague bem!

            - Obrigado: mas olha... recomendo-te que mandes copiar o artigo, porque no “Jornal” pode haver alguém que conheça a minha letra.

            - Copiá-lo-ei eu mesmo.

            - Adeus.

            - Adeus. Se o Caldas treplicar, aparece-me!

            - Está dito.

            No dia seguinte, o Caldas entrou muito cedo no quarto do Romualdo, com o “Jornal do Comércio” na mão.

            - O bruto replicou! Vais escrever-me a tréplica!

            E batendo com as costas da mão no jornal:

            - Isso não é dele... Aquilo é incapaz de traçar duas linhas sem quatro asneiras... mas, ainda assim, quem escreveu por ele está longe de ter o teu estilo, a tua graça... Anda! Escreve!...

             E o Romualdo escreveu...

 

              Durante um mês teve ele a habilidade de alimentar a polêmica, provocando a réplica, para que não estancasse tão cedo a fonte de receita que encontrara. Para isso fazia insinuações vagas, mas pérfidas, e depois, em conversa ora com um, ora com outro, era o primeiro a aconselhar a retaliação e o esforço.

            Tanto o Caldas como o Saraiva se mostraram cada vez mais generosos, e o Romualdo nunca em dias de sua vida se viu com tanto dinheiro. Ambos os contendores lhe diziam: - Escreve! Escreve! Eu quero ser o último!

 

            Por fim, vendo que a questão se eternizava, e de um momento para o outro a sua duplicidade podia ser descoberta, o Romualdo foi gradualmente adoçando o tom dos artigos, fazendo, por sua própria conta, concessões recíprocas, lembrando a velha amizade, e com tanto engenho se houve, que os dois contendores se reconciliaram, acabando amigos e arrependidos de terem dito um ao outro coisas desagradáveis em letra de forma.

            E o público admirou essa polêmica, em que dois homens discutiam com estilos tão semelhantes que o próprio estilo pareceu humanizá-los.

 

          O Caldas cumpriu a sua promessa: o Romualdo pouco depois entrou para o comércio, onde ainda hoje se acha, completamente esquecido do tempo que perdeu no jornalismo.

 

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.

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