28 de junho de 2020
Péricles Capanema
Temos às pencas regressões sociais desconhecidas da maior
parte das pessoas, às vezes esquecidas, por vezes subestimadas. São fracassos
medonhos, lesivos ao bem comum. E assim, ao longo das décadas e séculos,
empobreceram a sociedade, dificultaram a inclusão, a mais de fechar horizontes
da promoção (perfeição) social. Por imperativo de justiça, reclamam resgate do
olvido imerecido, que começa pelo conhecimento. Reitero, convém trazê-los de
volta à luz, para fruição, instrução e proveito popular. Bem vista, essa
revivescência é benemérito ativismo social. Todos perdem com tais esquecimentos
(qualificação benévola, existem ocultações e deformações intencionais).
Vou falar em especial de um deles, hoje perdido em desvãos
da História. Antes, poucas linhas de útil recordação sobre a relevância da
exemplaridade. Tratei faz pouco, pela rama embora, do papel social dos “role
models”, exemplos e padrão para milhões. Bafejando comportamentos, são
fundamentais para formar mentalidades, favorecer doutrinas, promover condutas.
Governam no mais alto sentido da palavra. Pois governar não é sobretudo abrir
estradas e construir pontes; é em primeiro lugar dirigir pessoas. Dirige-as
quem influi nas convicções, mentalidades e hábitos morais.
É difícil a tradução de “role model” para o português; seria
modelo ou modelo social. Aliás, é exatamente esse o papel de um santo
canonizado, servir de modelo, padrão, sugerir rumos, trabalhar mentalidades. O
“role model” dos nossos dias em regra é versão apequenada, desnaturada,
laicizada e aguada do santo.
Assim define o “Business Dictionary” [Dicionário dos
Negócios] o “role model”: “São pessoas para as quais se olha e se
reverencia. Um modelo social é alguém que os outros desejam imitar, seja agora,
seja no futuro. Um modelo social pode ser alguém que você conheça, relacione-se
normalmente com ele, ou alguém que você nunca encontrou, como uma celebridade.
Modelos sociais podem ser atores conhecidos, figuras públicas, políticos,
professores, policiais, pessoas importantes da família”.
Modelos sociais são ou foram Gandhi, os Beatles, Elvis
Presley, Che Guevara, Bill Gates, Pelé, a princesa Diana e ainda
numerosos influencers atuais. Um tio seu, leitor, admirado na
família. Uma prima, leitora. “Quero ser como fulano”, é grito interior de
sem-número de pessoas. Modelos sociais influem no caminhar da sociedade
(involuções ou avanços), cada um a seu modo e título, cada um atuando em
especial sobre certa faixa do público. Seu tipo humano se torna objetivo
atraente naquela faixa da realidade. É corrente, a irradiação de sua
personalidade, ligada ao fascínio que exercem, muitas vezes ultrapassa a
influência de chefes de governo ou de Estado, mesmo de grandes potências. Podem
atrair para o bem, hoje pouco comum, podem puxar para o mal, o que é mais
frequente.
Luís XIV (1638-1715) é considerado a personificação do
monarca absoluto. Dele teria sido a frase, pronunciada em 1655, “L’État,
c’est moi” (o Estado sou eu). Nunca a disse; pelo contrário, pouco antes
de falecer, afirmou: “Morro, mas o Estado permanece”. Ninguém nega,
contudo, Luís XIV governou com autoridade, exerceu com desembaraço o
mando. “Le métier du roi est grand, noble et délicieux”. Essa é dele; para
o monarca o ofício do rei era grande, nobre e delicioso. Marcou a França,
marcou sua época, foi modelo para soberanos. Não analisarei sua política, nem
seus acertos e erros. Meu foco é aspecto pouco destacado, facetas de seu tipo
humano, inspiradoras de comportamentos e formadoras de mentalidade. A descrição
de que me valho é de Hyppolite Taine (1828-1893), dos maiores historiadores
franceses, está nas páginas do seu livro “Les origines de la France
contemporaine” [capa acima]; dela vou retirar apenas as referências para tornar
mais fluente a leitura. Hoje é fácil encontrar a obra na rede e baixá-la — está
no domínio público.
“Luís XIV tinha todas as qualidades de um mestre de casa, o
gosto da representação e da hospitalidade, a condescendência e a dignidade; a
arte de não ferir o amor-próprio das pessoas, a arte de ficar sempre em seu
lugar, a galanteria nobre, o tato, o atrativo do espírito e da linguagem.
Falava perfeitamente bem; quando era preciso tinha a linguagem leve; quando
necessário, o gracejo. Se narrava uma história, fazia-o com enorme encanto, um
tom nobre e fino, que só vi nele. Nunca houve homem mais naturalmente polido,
nem com uma polidez tão bem medida, tão bem graduada, ninguém distinguia melhor
nas respostas e na maneira de ser a idade, a condição social e o mérito. Suas
reverências, mais ou menos marcadas, sempre discretas, tinham uma graça e uma
majestade incomparáveis. Era admirável pela forma diferenciada de receber
homenagens à frente das tropas e ainda nas revistas. Sobretudo no tratamento
das mulheres, nada havia de semelhante. Nunca passou diante da mais simples
empregada de quarto sem tirar o chapéu e sabia a quem cumprimentava. Nunca
disse nada depreciativo para ninguém. Nunca em sociedade comentou alguma coisa
fora do lugar ou deslocada. Até no menor gesto, no caminhar, no porte, na
postura, tudo medido, decente, nobre, grande, majestoso e, contudo, muito
natural”.
Taine conclui: “Eis o modelo. De perto ou de longe, foi
seguido até o fim do Antigo Regime”. Sabe-se que Luis XIV morreu em 1715, o
Antigo Regime acabou com o triunfo da Revolução Francesa em 1789. De fato, Luís
XIV incarnou em alto grau um ideal de perfeição social, que marcou o Antigo
Regime. Em especial, tal ideal social moldou a educação dos príncipes, a
formação do “honnête homme”, o homem de sociedade. Tendia a se generalizar; sua
perenidade e aperfeiçoamento gradual estimulariam avanços civilizatórios, dos
quais o mundo se viu privado. Com o fim do Antigo Regime, atacada e
vilipendiada pelas correntes revolucionárias, em análise rápida, sobraram
destroços de tal padrão de convívio, ainda que por vezes enormes. Multidões
durante séculos estiveram excluídas de formas mais perfeitas de vida social,
acostumando-se com a degradação nas relações humanas. Decadência atroz —
minimizada.
Esse mesmo espírito, aninhado no fundo da doutrina e da
mentalidade das formações revolucionárias, manifestou-se repetidas vezes ao
longo da História, gerando miséria e exclusão. Dois exemplos. Um grande
cientista — nascido na nobreza de toga (durante a Revolução Francesa, renunciou
ao uso da partícula de, própria à nobreza; aliás, pouco lhe adiantou) —, hoje
por vezes chamado de “pai da química moderna”, Antoine-Laurent de Lavoisier
(1743-1794) foi condenado à guilhotina por tribunal de exceção da Revolução
Francesa. Pediu alguns dias de adiamento da execução, queria terminar;
solicitação negada. Resposta emblemática de Jean-Baptiste Coffinhal, presidente
do Tribunal Revolucionário: “A República não precisa de sábios”. Lavoisier
foi guilhotinado em 8 de maio de 1794. Arremeteu irado contra o crime hediondo
Louis de La Grange, dos maiores matemáticos da época: “Morreu Lavoisier,
só lhes custou um segundo cortar a cabeça, cem anos talvez não sejam
suficientes para que apareça uma parecida”. Quanto perdeu o mundo? Quanto
perderam os pobres em qualidade de vida? Retrocesso desumano — silenciado.
Outros fatos, de mesma natureza. No Brasil, animadas pelo
mesmo fanatismo, mulheres do MST (uma das vanguardas da atrofia social entre
nós), em pelo menos duas ocasiões, pelo que me lembro agora, 2006 e 2015, foram
discípulas modelares de Jean-Baptiste Coffinhal. Em março de 2006 em Barra do
Ribeiro, a 60 quilômetros de Porto Alegre, destruíram pelo menos um milhão de
mudas de eucalipto em laboratório [foto ao lado] de propriedade da Aracruz
Celulose. Renato Rostirolla, gerente florestal, lastimou: “Há trabalhos de
20 anos de melhoramento genético que foram destruídos. Se fôssemos realizar
todos os cruzamentos, levaria no mínimo cinco ou seis anos. Alguns nunca mais
serão possíveis, porque as matrizes foram destruídas”. Vandalismo
semelhante foi perpetrado em Itapetininga, março de 2015, também por mulheres
capitaneadas pelo MST, agora na Futura Gene, empresa do grupo Suzano. O gerente
Eduardo José de Mello lamentou: “Perdemos alguns anos de desenvolvimento
tecnológico”. Segundo a empresa, 14 anos de pesquisas foram destruídos.
Os setores que espatifam com delícias intolerantes milhares
e até milhões de mudinhas escolhidas de eucalipto, prenúncios de porvir melhor,
de forma congruente, simpatizarão com a decapitação criminosa de Lavoisier; e
não perceberão problema algum, acharão é bom, que a alta educação de Luís XIV
seja depreciada e finalmente desapareça como fator de aperfeiçoamento social.
Inimigos do crescimento, obstruem os caminhos da subida e o povo é a maior
vítima.
Post-scriptum: tais setores não têm apenas manifestações
extremadas; correntes de opinião numerosas ingeriram prazerosamente doses
graduadas de tal veneno.
* * *
Nenhum comentário:
Postar um comentário