Nos anos 50, o professor de Teoria Geral do Estado na
Faculdade de Direito do Recife era Samuel MacDowell, que estudara em Oxford,
onde, devido à sua compleição morena, representou Otelo no espetáculo montado
pelos colegas. Isolado na casa-grande do engenho, ele dedicou-se a traduzir os
sonetos de Shakespeare. Como costumava narrar nas mesas boêmias dos bares do
Recife, eis que, em certa noite em que trabalhava em seu gabinete, apareceu-lhe
o próprio Shakespeare, envolto numa auréola. Deu-se, então, o seguinte diálogo:
Shakespeare: — Samuah, Samuah, que estás tu a fazer a estas
horas mortas?
MacDowell: —Will, estou a te traduzir.
Shakespeare apanhou, então, uma das folhas que se achavam
sobre a escrivaninha, leu-a demoradamente, para finalmente sentenciar: “Samuah,
Samuah, se um dia eu tivesse de me exprimir em tão rude idioma, o faria
precisamente assim”. Dito o quê, Shakespeare desapareceu na auréola que o
trouxera até Pernambuco.
Nunca me intrigou o aparecimento de Shakespeare, porque é
conhecida a sua predileção pelos fantasmas e nada impedia que se transformasse
em um deles e cruzasse o Atlântico. Intrigavam-me, contudo, primeiro, a
intimidade com que os interlocutores se tratavam, e também o fato de
Shakespeare conhecer a língua portuguesa. Tanto que se manifestara
enfaticamente sobre a qualidade do trabalho de MacDowell.
O Globo, 27/06/2020
Evaldo Cabral de Mello - Oitavo ocupante da Cadeira n.º 34 da ABL, foi eleito no dia 23 de outubro de 2014, na sucessão do Acadêmico João Ubaldo Ribeiro, e recebido no dia 27 de março de 2015, pelo Acadêmico Eduardo Portella.
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