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terça-feira, 2 de junho de 2020

SAÚNA - Catulo da Paixão Cearense



Saúna
Catulo da Paixão Cearense


A Albino Forjaz de Sampaio

De todas as fazendolas
que nos sertões conheci,
a do Monte da Espinhela
foi a Fazenda mais bela
e a mais alegre que eu vi.

O dono daquela joia,
o major Felix Lindóia,
tinha garbo em ser o tipo
da lealdade suprema.

Cavalheiroso e gentil,
era um filho do Brasil,
um brasileiro da gema.

No entanto o major Lindóia,
com alma sempre propensa
para o amor e a caridade,
era cego de nascença!

Delicado, mas austero,
na sua boca sanguínea
nunca um sorriso abrolhou!

E todos assim diziam
que se o major não sorria,
o major nunca chorou!

Constava a sua família
da mulher – dona Benvinda –
e de sua filha – a Beatriz.

Cego embora, esse homem santo
proclamava-se feliz.

No mundo cheio de escolhos,
que importa que Deus tivesse
lhe apagado a luz dos olhos?!

Os bigodinhos canoros,
os cebites, os cronquís,
os curiós, os bentevis
e os mais lindos cardeais,
faziam dos bambuais
os seus palcos de folhagens,
onde, a brincar nas ramagens,
ruflando as suas plumagens,
vinham dar seus recitais.

A olência dos benjoeiros,
o aroma dos cajueiros,
das odorosas limeiras,
das flóreas mexiriqueiras...
o perfume dos cajás,
a essência dos laranjais
e o cheiro verde do mato,
era uma luz que lhe entrava
pelos dois olhos do olfato.

Se não via com os seus olhos
a sua nédia boiada,
 a valente cavalhada
e os seus rebanhos luzidos,
pelos olhos dos ouvidos,
nas tardes harmoniosas
e nas manhãs extremosas,
enxergava a sinfonia
dos seus agrestes gemidos.

Não creio que Adão e Eva
no seu olimpo cheiroso
possuíssem mais cantores
do que os célebres tenores
daquele Éden verdoso.

A Fazenda tinha fama
pelo infindo panorama
dos horizontes azuis!

Naquelas florestas bravas,
em sua idade infantil,
numa tarde pastoril,
com certeza andou Jesus.

Naquele Éden formoso,
o major Felix Lindóia
era um feliz, um ditoso!

Numa noite eu e o major
estávamos palestrando
de coisas já repassadas
de um outro tempo melhor.
E como tinha a meu lado
um pinho bem afinado,
preludiando uns gemidos
nas cordas desse violão,
eu comecei a cantar
o meu Luar do Sertão.

Enquanto a voz derramava
por toda a amplidão sonora,
extasiado eu fitava,
(no encanto daquela hora...)
o doce e sublime encanto
do céu, que mais se estrelava
e até parecia o manto
azul de Nossa Senhora!

Pois bem: dolorosamente,
no fundo do coração,
sentindo a grande piedade
daquela infelicidade
de ele cego ter nascido,
carinhosa e bruscamente,
interrompendo a canção,
eu lhe disse, comovido:

“o senhor não faz ideia
deste cenário estrelado,
desta esplêndida epopeia
que estou contemplando agora,
vendo o céu, maravilhado,
pontilhado de amarelo,
aberto, como um flabelo,
na sua glória divina!”

E o major, em voz cadente,
olhando-me cegamente,
respondeu: “Não é mais belo
do que minh’alma imagina!”

E notando o meu silêncio,
acrescentou: “Continue,
que a sua canção à lua
é de um efeito estupendo!

Com os olhos do meu espírito,
vejo a beleza da noite,
como o senhor está vendo!...

O que eu não sei, meu amigo,
- assim me disse, sorrindo –
é se o senhor sente n’alma
o turbilhão de saudades,
que estou agora sentindo!!”

                        ***

Mas deixemos o major
e aquela noite tão bela,
e falemos de Saúna,
d’uma pequena cadela,
que era a imagem da desgraça
naquela rica Fazenda.

Entre os cachorros de raça,
a pobre era desprezada
por todos lá da vivenda.

Mártir, velha, escorraçada,
quase no extremo da vida,
andava sempre escondida,
e não morria esfomeada,
porque às vezes, lhe tocava
um frangalho de comida,
que a outro cão sobejava.

Diga, embora, uma heresia,
mas eu confesso que, um dia,
vendo os olhos de Saúna,
lembrei-me dos santos olhos
da Santa Virgem Maria!

A sua melancolia
era saudosa e macia,
como a sombra do luar!
Quanta dor, quanta poesia
e quanta filosofia
chorava naquele olhar.

A morte é sempre bondosa
com os deserdados da sorte!

Por isso é que eu acho a vida
muito mais misteriosa
e indecifrável que a morte.

Mas, suavizando os acúleos
de toda aquela paixão,
Saúna tinha a piedade
De um piedoso coração.

Entre os bichos prediletos
que o major mais estimava,
tinha o primeiro lugar
um papagaio faceiro,
que levava o dia inteiro
e a noite inteira a falar.

Tudo o que se lhe dizia,
coçando a rósea cabeça,
de pronto reproduzia.

Pois ouvi: o belo Louro,
o inestimável tesouro,
de pescoço todo de ouro
e o corpo de verde mar,
era o amigo singular
de Saúna, a cachorrinha,
que, inocente, se entretinha,
ouvindo-o tagarelar.

Quando, às vezes, lhe faltava
um osso para o jantar,
era belo, era sublime,
ver aquele papagaio,
como quem comete um crime,
às ocultas, lhe ofertar
alguns bocados gostosos
do seu gostoso manjar.

O Louro sabia o nome
de toda a raça canina,
e chamava, pela tarde,
os cachorros, um por um!...
Chamava todos por ordem,
sem se esquecer de nenhum!

Mas o nome de Saúna
era o que mais lhe sabia!
Pela manhã, de tardinha,
a todo o instante do dia,
aquele nome tão doce
vinte vezes proferia!

Mas diz um velho ditado:

“Não há mal que sempre dure,
nem bem que não tenha fim”.

Pois foi assim, foi assim,
que um dia a mártir leprosa,
desdentada, cancerosa,
os olhos tristes, fechou,
e, mais feliz, descansou!

Sim!... Foi Deus quem a levou!

Saúna foi encontrada
com a barriga toda inchada,
junto à porta do curral.

E morta, rígida e fria,
nos seus olhos inda eu lia
aquela filosofia
da dor irracional!

E só porque já fedia,
foi que o vaqueiro Zé Marco
enterrou a pobrezinha
ao pé d’um velho Pau d’Arco.

Pois bem: nesse mesmo dia
em que Saúna expirou,
(quem sabe?! Talvez de fome!...)
o bondoso papagaio
chamando pelo seu nome,
com aquela doce meiguice,
e me olhando de soslaio,
a cabecinha inclinou.

- Saúna morreu! – lhe disse.

- “Morreu?!” – ele perguntou!

E depois de eu repetir-lhe
esta palavra importante,
as suas penas ruflando,
pôs-se, alegre, assobiando
uns cantos sentimentais!

Mas, desde aquele momento,
pelo nome de Saúna
não chamou! Não chamou mais!!

Meu Deus!... Porque não fizeste
os homens irracionais...



POEMAS BRAVIOS
Catulo da Paixão Cearense
                
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