Uma fantasia
Cyro de Mattos
A mulher andava zangada. Queixava-se da vida, não casara,
não tinha um filho sequer para lhe fazer companhia. Vivendo a sós na casa
acanhada, sem energia elétrica, tinha medo quando a velhice chegasse, sem
alguém para lhe ajudar quando estivesse doente, prostrada na cama, sem forças.
Os dias com zanga, as noites mal dormidas. Ela merecia isso?
Tempo com as amargas, vida solitária pelos desvãos difíceis de uma vida onde
não tinha sossego, tudo a contrariava?
Resolveu sair andando até achar a direção certa para se
livrar do rancor, que havia se alojado no peito, fazendo dele morada
permanente.
Estava na encruzilhada. Dobrar à esquerda, à direita ou
seguir em frente. Ou até mesmo recuar na caminhada. Qual nada, andar para
frente, tomar o lado esquerdo ou o outro, tinha que achar a direção certa para
se livrar do rancor, que tanto a amargurava, não desgrudava até mesmo nas
coisas mais simples.
Encontrou o velho no meio da estrada.
Ele veio andando apoiado no cajado.
Usava roupas pobres, a barba branca crescida.
Tinha nos olhos um brilho de estrela.
Certa intuição
deu-lhe o pensamento de que ele ia mostrar o que ela devia fazer para achar o
caminho certo para se livrar do rancor, que vinha fazendo dela uma
escrava. Estava pronta para fazer a
pergunta, que havia guardado para a ocasião que chegasse em boa hora.
Relembrou: “Como posso me livrar desse rancor, dessa vida horrível cheia de
azedume?”
Nem
precisava fazer a pergunta, ele já sabia que nada para ela prestava.
Adiantou-se
ele, fazendo à mulher uma pergunta.
- Se você
tiver de escolher para ser entre uma águia e uma pantera qual das duas
preferia?
Ela percebeu que ele tinha a voz serena, o tom macio de suas
palavras fez bem ao ouvido atento.
Fora surpreendida com aquele tipo de pergunta estranha,
feita pelo velho com a sua voz cadenciada.
- Não sei dizer, mas faça-se em mim a sua vontade, mestre.
Em razão da idade avançada dele, resolveu chamá-lo assim.
Não havia dúvida de que com aqueles vincos no rosto, os
cabelos sedosos ao vento, a pele enrugada, ele era o guardião da memória na
aldeia. Sabia dos caminhos, conhecia o segredo das coisas. Se alguém pudesse
existir neste mundo com a sabedoria dele, saberia dizer o que melhor devia
fazer cada um para viver na vida sem rancor.
A direção que
apontasse no mapa para ela seguir e chegar ao local onde se libertaria do
rancor somente ele sabia.
Ela notou que de repente um halo de luz apareceu acima da
cabeça daquele homem idoso com a fisionomia de um profeta.
Estava ansiosa para saber o que ele responderia à própria
pergunta que acabara de fazer a ela.
O velho então disse com a voz calma.
- Quando eu dobrar aquela curva, você ficará sabendo.
Foi só desaparecer na curva, ela virou um beija-flor.
No corrupio, no frufru, como ternura de Deus, frescurazinha
de ventilador. Plumagem alegre, de flor em flor.
Então ela
soube ser esta a vida do ar, a de sonhar e beijar.
Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da
Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris
Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Um dos idealizadores da Academia
de Letras de Itabuna (ALITA).
* * *