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sábado, 18 de junho de 2022

POBRE RIO CACHOEIRA, Por Sione Porto

 


Pobre Rio Cachoeira

Sione Porto

 

Menina, vi o Rio Cachoeira,
Belo e veloz, descer
Em busca do mar,
Com seu verde e ondas vertiginosas,
Brilhar perto das margens,
Nos fazendo encantar!

Então, comigo pensava,
Quão magnífico, ó Rio Cachoeira,
Cheio de vida e amplexos,
Trazendo cardumes nas redes
Peixes a se multiplicar,
Para os pobres alimentar!

Menina, vi o Rio Cachoeira
Banhando as lavadeiras,
Que após lavar roupas tão alvas,
Entoando sonoros cantos ribeirinhos,
Saíam com suas trouxas na cabeça,
Nos fazendo sonhar e sonhar!

Hoje, procuro o Rio Cachoeira,
De tanta beleza de outrora,
Mas apenas vejo sujeira,
dentro e nos seus arredores,
povoado de garças sorrateiras,
Que triste é o Rio Cachoeira!

Será que ninguém ver o seu penar?
Antes tão absoluto e majestoso,
A deslizar nas ondas fortes
Na sólida terra grapiúna,
Que hoje geme e sangra,
Querendo se recuperar?

Bravo Rio Cachoeira,
Estrela brilhante,
Daqueles que o amam,
Certamente uma voz,
Falará mais alto para o salvar,
E, como aquele que não foge à luta, sobreviverá!

 

Sione Maria Porto de Oliveira, poetisa.

Membro da Academia de Letras de Itabuna (Alita)

* * *

 

A Percepção Poética de Heloísa Prazeres

Cyro de Mattos (*)  


            

             Depois da estreia com a Pequena história, antologia pessoal, a baiana (de Itabuna) Heloísa Prazeres retoma seu processo poético com um segundo volume, Casa onde habitamos (2016), formado de consistente união entre inspiração e transpiração, intuições e reflexões, imaginações e registros. Nesse segundo volume, com a ilustração de fotografia de  Jamison Pedra, a poeta usa a palavra simbolizada para metamorfosear o discurso da vida como resultado de trabalhos de bastidor, achados nas zonas suspensas do sonho, fiações de interiores sob o teto da terra, memórias para alcançar o  entendimento no mesmo chão de suas origens.

            Há nos oitenta e dois poemas que compõem essa casa, tecida com o labor do sonho, um ritmo que conduz a ideia através de versos bem construídos para o preenchimento dos vazios no mundo. Assim, nos domínios onde a atribuição a um autor consiste na  boa literatura mesclada com instrumental crítico suficiente, o emprego de linguagem eficaz deixa  ver que aqui estamos diante de uma construção poética  segura, de signo adornado pelo som na cadência musical própria do poema,  que diz de emoções chegando da  memória ou da razão, como se fossem sensações que na imagem iluminam o ser.   

        Numa lírica moderna ressoa o uso do vocábulo estrangeiro, a boa referência a poetas e escritores de predileção pessoal, mas em especial o tempo que, na alma enlaçando afetos e afinidades, busca outro tempo, marcado através de experiências, revelações tantas perante a existência.  Dividido em quatro partes, “Trabalhos de bastidor”, “Antessala de sonho”, “Sob o teto da terra” e “Mesmo chão”, podemos dizer que, nessa casa onde o eu lírico traça projetos efêmeros ante o eterno que perdura, a chave para o seu conhecimento, distribuído em compartimentos delimitados pelo assunto ou tema, o qual homenageia a vida, está na epígrafe de Sophia de Mello Breyner Andresen, tão esplêndida poeta portuguesa quanto luminosa contista, quando diz:

 

Por isso recomeço sem cessar a partir da página em branco

E este é meu ofício de poeta para a reconstrução do mundo

               

         Quando a reconstrução do mundo no verso é convincente, faz pensar logo como a vida é falha, repleta de contradições dentro de certo peso que impõe suas vozes agudas permeadas da ambiguidade na passagem do tempo. Sendo falha, para equilibrar-se nos vazios, o poeta recorre à   linguagem literária para inaugurar novos sentidos, lembrando assim que na quimera e na divagação, na pureza de dicção superior, criativa, a vida torna-se viável. Utiliza por isso lições plasmadas em linguagem específica para discorrer sobre o espanto da vida e assim prosseguir na litania do verso,  que em si mesmo se sustenta e encanta. 

              O poeta quer dizer com isso que o seu gesto de ler o mundo põe claridade nas partes escuras que ocultam o mundo. O verso supre a deficiência crítica, repleta de limitações, impossibilidades que envolvem aos humanos perante a experiência da vida em que entra a solidão, o tédio, o azar e a tristeza.  Embora existam as flores, sabe-se que elas somem, mal surgem. Ao poeta Heloísa Prazeres, o milagre para que sempre sobrevivam consiste em vê-las com a sua teimosia no deserto, em tácito entendimento com as altiplanas montanhas de Nevada, como as encontramos no afetuoso “Poema para os meus amigos”. Lembre-se então que, ressoando larguras e profunduras, em mínimas cosmovisões de ternuras, disse Neruda que a flor da alma na alma flora.

          Na geografia íntima da casa abandonada, Heloísa Prazeres não sabe “dizer se havia/consentimentos, apelos/de viagens dominavam/ vontades. Seguro apenas/ o mandato da aventura.”  E, porque o desafio consiste em ultrapassar a aventura do viver, o tempo dos legítimos poetas é outro. Decide-se com os reclamos da alma, rumores urdidos com “mala fixa e estética”, emoções e conceitos mesclados com a permanência de surpresas, cismas e perplexidades.  É o que percebemos, por exemplo, no discurso singular do poema “Trópico do capricórnio.”

         Até mesmo no poema “Familiar”, os versos livres de Heloísa Prazeres, de um ritmo quase automático, de incrível rapidez e visibilidade, síntese e concisão, como quer Italo Calvino,  fixam-se na  cena com assunto moderno, extraído do mundo internético de hoje, o qual, instalado  no grupo, faz com que cada um fique hipnotizado no seu recurso, na cerimônia ao deus TIC - Tecnologia da Informação e Divulgação.

        Esse modo de estruturar o verso nos tempos de hoje, embalado do eletrônico que não se ajusta ao sol na manhã com esperança, só comprova que nessa casa de Heloísa Prazeres, aqui e agora, com leveza e graça, densidade e clareza, a poesia está em tudo.

            O poema não engole o poeta quando provido de linguagem adequada e percepção do mundo.

 

Leitura Sugerida

PRAZERES, Heloísa. Casa onde habitamos, Editora Scortecci, São Paulo, 2016.

 


*Cyro de Mattos
é autor premiado no Brasil e exterior.

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