O Doce
Cyro de Mattos
Coloquei um doce bom
Na boquinha de meu bem
Quando a mulher ama
Que doçura o homem tem.
Filhos, netos, parentes, de bom gosto alardeavam o feito
incrível alcançado pelo patriarca. Caso raro no planeta. Alcançara a marca de 102 anos de idade. A
comemoração festiva, os familiares, a cada ano do aniversário. Ele nem ligava. As vozes fraternas pelos
cômodos da casa modesta.
Falava, escutava, cantarolava baixinho.
Gostava de pegar o banquinho, a enxada com o cabo pequeno.
Sentava-se no quintal, Ali, extirpava a erva daninha, paciente. Lavrador desde
jovem, hábito que cultivava prazeroso na passagem das estações. Mexia nas veias
e nervos, a tendência para lavrar a terra, lavouras de curta duração.
O tempo, benevolente, de mansinho ia sustentando-o. Ajudava
a carregar as porções da vida na cacunda.
Morava com a filha Nicota, costureira de mão cheia,
enviuvara quando andava nos seus 85 anos. Não tinha filhos, da vida não se
queixava.
Pela manhã, com o sol quente, encerrava o agrário ritual
pelo quintal.
Pela tarde, tirava um soninho, depois de fazer a refeição do
almoço. Constava apenas de mingau de aveia e um copo de limonada.
Voltava à tarde ao ritual no quintal quando o sol esfriava.
“Tá na hora de tomar seu banho”, dizia Nicota, chamando-o à
porta da cozinha, que dava para o quintal.
Recolhia-se para o banho fresco. Arrumava com cuidado os
cabelos ralos, a cabeça miúda. Aparecia
na sala para a última refeição do dia, mais uma merenda. Chá de cidreira com
bolacha ou rodelas de pão torrado.
Quando havia visita da vizinha ao lado, aparecia na sala.
Perfumado. Os olhinhos miúdos, como
duas contas, brilhavam. Vestido de camisa e calça azul, de mescla. A roupa
engomada com cuidado pela Nicota, como ele pedia sempre.
Dizia para a visita:
- Dona, me arranje uma namorada.
A vizinha Lenilda, viúva oitentona, sorria.
Doceira de mão cheia, de voz macia, dava água na boca só de
pensar nos doces que faziam as mãos dadivosas da vizinha Lenilda.
A cada visita da vizinha à filha Nicota, na encomenda de um
vestido ou blusa com florzinhas, o pedido dele não faltava.
- Me arranje uma namorada, dona... te dou um doce.
Um dia, a vizinha apresentou-se como a eleita, que tanto ele
procurava. Alegre, a voz cantante,
maviosa.
Casamento no padre e no juiz. Casório bastante comentado na
cidadezinha, aplaudido por uns, desaprovado por outros.
Agora, ao invés de oferecer um doce à antiga vizinha,
ganhava dela vários doces, uma delícia nos ingredientes caprichados. De
abacaxi, goiaba, batata doce, carambola, laranja, mamão, banana, jaca e até de
bala de jenipapo. Tinha também o de pudim de tapioca. Uma gostosura.
O doce de leite era o que ele mais gostava.
Não cansava de elogiar o predileto. Chegava a chorar, de
tanto comer esse tipo de doce. Se não recebesse um freio da Lenilda, era capaz
de acabar com a vida ali mesmo, de tanto comer e se lambuzar de doce de leite.
*Cyro de Mattos é escritor e poeta.