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domingo, 4 de outubro de 2020

HOSPEDARIA DAS ESTRELAS – Dinah Silveira de Queirós


Caminhava-se através de pequeninas casas que se apoiavam umas às outras e em breve se chegava a um retiro de caravanas. Mas naquele dia, junto a uma aguada no centro, o número de forasteiros, que ali haviam chegado, era enorme. Faziam pequenos círculos nessa hospedaria a céu aberto, sob a luz das estrelas; muitos cantavam alto sua ascendência, no encarreiramento de nomes ressoantes, como se afiassem a língua para, no dia seguinte, diante de um copista e do rolo de pele de carneiro, tornarem presentes suas linhagens de Davi. Havia cameleiros encostados a enormes animais indormidos que bafejavam o ar com seu hálito quente. Burricos relinchavam; eram presos junto a seus donos, que se envolviam em mantos e tentavam dormir a céu aberto. Perto da entrada um velho solitário cruzava as pernas encostando-se ao muro e repetindo orações, imóvel e meio desfalecido. Agarrava-se às preces, quando soavam os gritos alegres das gentes nômades que ralhavam por motivos de cargas. Lá atrás, havia outros pequenos espaços murados, feitos de pedra mas também a céu aberto. Comprimiam-se pessoas ali dentro, sob mantos, carga humana mais rica. Estas divisões agora custavam bom dinheiro e quase só as mulheres as haviam ocupado, enquanto os maridos, irmãos ou pais ficavam lá foram no envolvimento daquela noite ruidosa, em que uns se roçavam a outros, em que seria possível até morrer, agonizando aos gritos, como poderia ser o fim do velho em preces, e talvez não houvesse ouvidos, pela grande confusão entre as vozes humanas e a dos animais, a chegada de novas carroças, a oferta orgulhosa de ricos comerciantes que tomavam as câmaras - se é que assim se podia dizer daquelas separações em pedra - para as suas famílias, no tinir da moeda mais cara.

Maria esperava, olhando com curiosidade ferida, todas as vezes que o largo portão se abria, para aquela gente ali amontoada, cheirando à banha de carneiro e acendendo suas pequeninas fogueiras nos quatro cantos dos muros. Depressa voltou José amargurado, mas escondendo os cuidados:

- Se quiseres, encontramos algum lugar, lá no fundo, depois dos cameleiros.

- Mas já vejo que para mim seria difícil.

Sim, José via que a face assustada de Maria agora parecia anunciar para breve um acontecimento que não deveria ocorrer naquela promíscua hospedaria a céu aberto. Lembrou-se de um seu parente que possuía duas casas, Gessel. Uma delas ele a conservava sempre pronta para receber amigos ou alguém da numerosa parentela. Era um mercador rico. Quando os cascos do burrinho rasparam as pedras do pórtico e o relinchar alegre soou diante da casa, ele já estava, o parente mercador, às voltas com um homem que exigia fosse hospedado por uma noite, ali em sua mesma casa e, à guisa de pagamento, empurrava-lhe desde já peças de cobre, panos de linho, murmurando agradecimentos antecipados e consternando o dono da casa. Ele notou a chegada de José, deixou de lado o mercador e sua face se abriu numa alegria intensa.

- Eis o filho pródigo que volta a Belém!... com outros.

Mas antes que pai José fizesse descer Maria, ele mesmo foi afetuosamente saudá-la:

- Que bela esposa tu encontraste! Para nós, seria grande orgulho tê-la em nossa casa; mas desde ontem fomos quase assaltados por pessoas que nos forçaram a abrir a porta e lá estão apinhadas e tão prontas a trocar o teto pela má palavra, que, estou pensando, vou dormir fora de casa pois a noite está limpa.

Vendo o cansaço e a desolação de Maria, não teve senão uma pequena oferta cortês para fazer-lhes:

- Dentro de quatro dias a cidade ficará vazia, e então serão convidados para vir morar aqui ou na segunda casa, além desta ladeira. Ela é um pouco retirada da cidade mas, livre de tantos malcheirosos, poderá ser até agradável.

José agradeceu o oferecimento:

- Irmão, disse-lhe, carregando no tratamento: Ainda, quem sabe, habitaremos tua casa, ofertada de boa vontade, pois creio que ficaremos algum tempo mais em Belém.

Retornaram a andar, e o que se via agora eram pessoas dormindo fora de casa, acampadas nos currais, ou então, como eles, vagando de cima a baixo pelas vielas à procura de um lugar. De tempos em tempos, pai José olhava Maria, assim percebendo sua ansiedade.

- Devias ter ficado em casa de teu pai.

Ela se fazia forte até mesmo sabendo que o nascimento não ia demorar muito, pois o peso do menino parecia cada vez maior e conhecia que o filho estava pronto a dela desprender-se. Pai José mediu as colinas e se lembrou de quando menino bem se ocultava da chuva em cavernas abertas para guardar ovelhas, em outras cavas que eram depósitos de mantimentos. Novamente o burrinho, desta vez dificilmente tirado de uma touceira de ervas, foi movimentado. As casas iam ficando para trás. Sentia-se vivo o odor das plantações. Um pequeno caminho apareceu por entre os campos, onde os pastores amedrontados com a quantidade de forasteiros e suas fomes vigiavam os rebanhos e se chamavam pelas escuridões, tendo muito bem amarrado as ovelhas, com suas vozes quentes e roucas, ou até troando pequenos sons que eram imediatamente respondidos em flautas de ossos de animais.

- Não, vamos mais longe, mais longe... - pedia minha mãe.

Caminhavam agora na direção de uma gruta escondida. Esta deveria estar lá, pai José bem o sentia: no alto dela havia um abrigo para pastores, embaixo, lugar para as ovelhas.

O Senhor fosse louvado, lá estava ela, sim, completamente vazia, tendo os pastores aproveitado a noite mais seca e a convivência de outros, para juntos guardarem os rebanhos, em dias de tantos estrangeiros e visitantes. Lá estava ela, como quando a conhecera e passava tardes vendo, de sua altura, o céu corar e a noite acender as estrelas. Lá estava ela, bendito fosse o Senhor: o lugar onde Maria podia, sem ser ferida por aquela gente ruidosa, em seu acanhamento, tomar o descanso de uma noite, enquanto ele providenciaria hospedagem própria.

Na primeira parte da caverna havia a manjedoura e palhas no chão; em cima, mais alguns passos na rocha, e eles poderiam deitar-se e esperar o dia, para que pai José se inscrevesse e obtivesse o lugar desejado. Mas enquanto José dormia, na parte alta da gruta, Maria deslizava e, acendendo um archote que haviam trazido, iluminava o pequeno cocho; tomou do chão as palhas, cobriu-o e escorregou mansamente ao lado dele, o archote iluminando seu rosto angustiado. Principiou a chorar baixinho. "É assim que tu vens, Senhor meu filho?"

O tempo se havia cumprido.

Lá bem longe, o canto dos pastores vindo ao vento, chamava uns aos outros. Então eu gritei à Vida. Eu me havia separado da doçura e da bondade do seio de minha mãe e gritava e chorava, uma criança ferida pela aspereza de viver, porque o ar dói em nosso peito e começar a vida será sempre, para todos os pequenos, também começar a gritar, chorar muito diante do desconforto: as criancinhas logo sabem de sua dor e de sua áspera condição. Eu gritava todo o choro, eu clamava como clamam os bem pequeninos. Maria cuidava de mim. Tirava de seu ombro o manto de linho, enrolava-me nele. "E tu, Belém Efrata?"

(Memorial de Cristo I, Eu venho, 1977.)

https://www.academia.org.br/academicos/dinah-silveira-de-queiroz/textos-escolhidos

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Dinah Silveira de Queiroz - Sétima ocupante da Cadeira 7 da ABL, eleita em 10 de julho de 1980, na sucessão de Pontes de Miranda e recebida pelo Acadêmico Raymundo Magalhães Júnior em 7 de abril de 1981.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (204)

27º Domingo do Tempo Comum – 04/10/2020


Anúncio do Evangelho (Mt 21,33-43)

— O Senhor esteja convosco.

— Ele está no meio de nós.

— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.

— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, Jesus disse aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo: “Escutai esta outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda. Depois, arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro. Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos. Os vinhateiros, porém, agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram.

O proprietário mandou de novo outros empregados, em maior número do que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma forma. Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’.

Os vinhateiros, porém, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!’ Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram. Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros?”

Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: “Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo”.

Então Jesus lhes disse: “Vós nunca lestes nas Escrituras: ‘A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos?’

Por isso, eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.

https://liturgia.cancaonova.com/pb/

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Clique no link abaixo e acompanhe a reflexão do Pe. Paulo Ricardo:

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Vinha, aliança global em favor da vida

 

“... arrendará a vinha a outros lavradores, que lhe entregarão os frutos no tempo certo” (Mt 21,41) 

 

Segundo o relato bíblico, o Criador, depois de plantado o jardim, parou o seu trabalho para descansar e contemplar: “E viu que tudo era muito bom”. Tudo o que Deus fez terminou num jardim. Mas o jardim já existia no coração e nos desejos do Criador. Por isso, o jardim é a revelação da bondade de Deus, a expressão nobre de suas entranhas. E Deus tem prazer em passear pelas alamedas desse imenso jardim; não é preciso templos e nem altares, pois tudo pode ser lugar de encontro com o Criador.

Mas, Deus quis compartilhar essa experiência indizível; criou o ser humano a partir da argila, ou seja, com os mesmos elementos da natureza, e o colocou no centro deste imenso jardim, para que, prolongando a ação criativa do Grande Artista, pudesse “guardar e cuidar” da Grande Casa Comum.

A literatura bíblica fala da Grande Vinha, lugar onde os homens, as mulheres e as crianças, em sintonia com todas as criaturas, convivem em harmonia e compartilham os frutos abundantes das videiras. Por isso, a primeira vocação do ser humano é a de ser jardineiro, pois recebeu do Criador a missão de cuidar e preservar a Sua “vinha”. Vinha é paraíso prometido; a vinha é realidade presente e é “terra prometida”. 

Existimos para receber a vinha em herança, para prepará-la, para fertilizá-la, para cuidá-la, para torná-la bela. Mas, que coisas horríveis fizemos com a vinha que herdamos!

Por sua atitude de arrogância e de autosuficiência, o ser humano explorou exaustivamente a vinha herdada e a destruiu, depredou, aniquilou, tomou posse dela... Assim, não foi respeitoso para com o Criador que a ele reservou a missão de cuidar da sua vinha e de compartilhar os seus frutos. Conquistou demais e cuidou de menos. A ameaça provém da atividade humana altamente depredadora da obra da Criação a ele confiada; perdeu o sentido da corrente única da vida e de sua imensa bio-diversidade; esqueceu a teia das inter-dependências e da comunhão de todos com a Fonte originária de tudo.

A crise ecológica, pela qual estamos passando, é a crise do próprio ser humano. A “vinha” do Senhor está em ruínas, devido a maneira como o ser humano a tratou, arrancando dela pedaços para satisfazer seus interesses egoístas e não se dá conta que está destruindo seu próprio espaço vital. As conseqüências trágicas estão presentes por toda parte:

Buracos na camada de ozônio, mutações climáticas provocadas pelo efeito estufa, enchentes diluvianas, secas prolongadas e devastadoras, desertificação de imensas áreas, erosão de solos férteis, desaparecimento de florestas devido ao desmatamento e às chuvas ácidas, rios assoreados e poluídos devido ao esgoto doméstico e aos detritos industriais, ar irrespirável pela presença de monóxido de carbono e outros gases venenosos, poluição sonora e visual das grandes cidades, crescimento e acúmulo de lixo urbano e industrial, esgotamento das fontes de energia não renováveis e dos lençóis freáticos de água, extinção continuada e crescente de espécies vegetais e animais, pondo em risco a biodiversidade e o equilíbrio dos ecossistemas, escassez de alimento, proliferação de doenças, migrações forçadas... Enfim, o desequilíbrio dos ecossistemas pode comprometer, de forma irreversível, todas as formas de vida sobre a terra. 

O drama do ser humano está em perder a memória de que é parte do todo: seu instinto de posse e domínio o leva a romper a relação cordial com todas as criaturas, caindo num devastador vazio existencial.

A “centração em si mesmo”, sem levar em conta a rede de relações que o envolve, provoca a quebra da “re-ligação” com tudo e com todos. Este é o veneno que corrói o ser humano por dentro: a petrificação de sua interioridade, o embrutecimento de sua sensibilidade, a perda do gosto pela verdade, pelo bem e pelo belo, o extravio da ternura e da transcendência, a atrofia da comunhão com o todo cósmico...

O ser humano se colocou num pedestal solitário a partir de onde pretende dominar a Terra e os céus; como consequência dessa atitude, temos a devastação da vinha.

Com isso ele rompeu com a solidariedade natural entre todos os seres; contradisse o desígnio do Criador que quis o ser humano como co-criador e que por sua colaboração conduzisse a Criação à sua plenitude. Mas este colocou-se no lugar de Deus. Sentiu-se, pela força da inteligência e da vontade, um pequeno “deus” que quer manipular e dominar tudo. 

Do evangelho deste domingo (27o dom TC) podemos deduzir claramente que o ser humano não é senhor da vinha e não pode fazer com ela e com os outros seres aquilo que bem entender. A primeira relação do ser humano com a Vinha, portanto, não é a da posse, mas a da acolhida, por ela ser dada em herança. Todos os bens da Criação são recebidos por nós deste modo, ou seja, como dons.

A Vinha, como realidade doada, convida à compreensão de sua origem, não para ser dominada e manipulada, mas para se tornar dom e uma benção fecunda para todos.

Isso significa que a realização mais profunda das pessoas e da natureza está na gratuidade, não no seu aspecto utilitário. A vinha aparece sempre como aliada do ser humano; ela nos ensina a viver em harmonia com a água, com a terra e com todos os seres, uma relação de aliança, não de dominação arbitrária e exploradora.

Os profetas sempre insistiram neste ponto: quando o povo guarda a aliança com Deus e respeita a terra, esta fica fértil e generosa. Quando as pessoas rompem a aliança com Deus e se afastam d’Ele, a vinha fica estéril. (cf. Is. 5,1-7)

A vinha não é o lugar para a espoliação e a devastação, mas o lugar do louvor e do serviço a Deus.

A vinha não foi dada em herança para o consumismo, mas para a vida; não é para que uns poucos se apropriem dela como donos, mas para todos abrigar e alimentar; ela não é campo para a guerra, mas para a convivência fraterna, a solidariedade, a justiça e a paz. Somente a vivência dessa relação do ser humano com a vinha possibilitará novas relações sociais e ambientais, o novo tempo de paz e justiça. 

Como seguidores(as) d’Aquele que veio “trazer Vida, e vida em plenitude”, somos convocados a despertar uma consciência criatural, em que a Criação deixa de ser vista como objeto de domínio. Ela é um dom de Deus que deve ser acolhido com reverência, respeito e louvor.

Quem crê, é convidado(a) a olhar a Terra, com tudo o que ela contém, como um grande corpo cósmico de Deus a nos abrigar e nos acolher em seu colo maternal.

Somos todos “lavradores”, encarregados de tornar a vinha fecunda. Quem sabe, um dia, ao contemplar a Vinha do Senhor com olhos encantados, sofreremos ao vê-la violentada pelos vândalos que a estupram em nome de um pretenso crescimento econômico, que só beneficia a uns poucos.

Somos a “Grande Vinha” do Senhor, uma rede de relações no qual vivem, convivem, muitas outras pessoas e criaturas, e muitas delas sobrevivendo em condições de grande penúria, escassez e violência. Cuidar da Vinha supõe, portanto, cuidar da maneira como somos “vinha” cada um de nós, como influímos nas vidas de outras pessoas, como contribuímos para que todos se sintam acolhidas e acompanhadas em seu meio. E descobrir aí um desafio que vai muito mais além do mero cuidado de algo externo: cuidamos de nós mesmos, de nossa humanidade e da rede de relações que nos mantém vivos. 

Textos bíblicos:  Mt. 21,33-43    

Na oração: Estamos vivendo o “Tempo da Criação”:

- tempo para entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelos benefícios que recebe a cada dia da Criação;

- tempo para ter sempre presente que fomos criados para viver uma relação de amor e de solidariedade com tudo e com todos;

 - tempo para assumir gestos de cuidado para com o meio ambiente: reduzir, reciclar, reutilizar, replantar...

* Você se sente afetado(a) por esta tragédia da destruição, contaminação, poluição... do meio ambiente?

   Quê atitudes você pode assumida, no nível pessoal, familiar, social...?

 


Pe. Adroaldo Palaoro sj

 https://centroloyola.org.br/revista/outras-palavras/espiritualidade/2153-vinha-alianca-global-em-favor-da-vida

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