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Bruno Santos/Folhapress
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Drauzio Varella em seu escritório, no centro de SP
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CLÁUDIA COLLUCCI
DE SÃO PAULO
31/05/2017
"Todo mundo tem que se convencer de que não é
possível acabar
com a cracolândia. A cracolândia não é causa de nada, é consequência de uma
ordem social que deixa à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas
periferias."
A afirmação é do médico oncologista Drauzio Varella, 74,
colunista da Folha. Ele disse que teve seu nome
envolvido inadvertidamente duas vezes nas recentes discussões sobre a
cracolândia.
Nesta terça (30), Drauzio se disse surpreendido com a
informação de que integraria um grupo de notáveis para ajudar as gestões
tucanas de Geraldo Alckmin e João Doria no combate à dependência, como divulgou
o Estado.
Na semana passada, foi citado pela prefeitura em ação
judicial, sem consulta, como favorável à internação compulsória –a gestão disse
ter anexado reportagens completas, e não frases isoladas.
O médico diz que a taxa de sucesso da medida é pequena e ele
se inclui entre os que defendem a internação à força só "como último
recurso, quando há risco de morte".
Em relação ao grupo de notáveis, o secretário estadual da
Saúde, David Uip, disse ter feito o convite a Drauzio e que ele aceitou.
"Infelizmente soube há pouco que ele desistiu. Lamento, mas respeito sua
decisão", afirmou.
Folha - O governo do Estado anunciou seu nome como parte de
um grupo que vai assessorar nos programas de combate ao uso de drogas. Como vai
funcionar isso?
Drauzio Varella - Isso saiu de uma conversa com o David Uip [secretário
estadual da Saúde], meu amigo há 30 anos. Ele me ligou dizendo que queria
conversar sobre a cracolândia, a gente marcou um café e eu disse para ele as
coisas que eu pensava.
Ele falou que estava pensando em chamar a mim, o Wagner Gattaz e o Anthony Wong
[professores da USP] para aconselhar a equipe, dizer como deve ser encaminhado
esse problema. Eu disse que lógico, estava à disposição. E a conversa ficou
desse jeito. Hoje fui surpreendido com essa história de agora fazemos parte de
um comitê para analisar política de combate de dependência química. Isso em
nenhum momento foi conversado. Não tenho tempo nem formação técnica para uma
tarefa dessa natureza.
É a segunda vez que o seu nome é usado inadvertidamente
nessa questão da cracolândia. Semana passada, a gestão João Doria citou o sr.
para justificar a internação compulsória. O que pensa sobre isso?
Estou vendo ações atabalhoadas. O que aconteceu ali na cracolândia foram
medidas que pareciam não obedecer a nenhum planejamento detalhado, sem
organização necessária, feita às pressas.
É possível acabar com a cracolândia?
Todo mundo tem que se convencer de que não é possível acabar com a cracolândia.
A cracolândia não é causa de nada, é consequência de uma ordem social que deixa
à margem da sociedade uma massa de meninos e meninas nas periferias nas cidades
brasileiras, sem qualquer oportunidade. Pararam de estudar com 13, 14 anos,
muitas vezes não têm orientação familiar e acabam indo por esse caminho. E a
gente vem querendo acabar com a cracolândia. A gente tem que ir lá atrás,
impedir que as coisas cheguem a esse ponto. Isso de, de repente, ter que fazer
alguma coisa, pode ficar muito pior.
Os usuários se aglomeram agora na praça Princesa Isabel e em
outros pontos do centro. O que deveria ser feito?
Não sei, ninguém sabe. A situação lá estava muito grave porque os traficantes
estavam dominando o ambiente, impedindo que os usuários se aproximassem dos
agentes de saúde. Esse tipo de situação não dá para aceitar. Parece que a
Polícia Civil conseguiu prender traficantes, foi uma ação até que bem
conduzida.
O que foi mal é o que veio depois disso. Para lidar com esse problema da
cracolândia, primeiro é preciso ver quais os recursos que o Estado tem. Há
pessoas que frequentam a cracolândia há muito tempo, dos projetos anteriores,
que conseguem ser aceitos pela comunidade de fato. É um trabalho lento. O
Estado também precisa se preparar muito bem para receber os usuários, ver quem
precisa de cuidados médicos mais intensivos. Não tem solução imediata, não pode
ter pressão política. Aí fica todo mundo paralisado com essa discussão de
internação compulsória.
O que dizem as evidências científicas sobre internação
compulsória? Qual é a taxa de sucesso?
É muito pequena. Estou entre os que sempre defenderam a internação compulsória
como último recurso, quando há risco de morte. Você vê na cracolândia meninos e
meninas magérrimos, encovados, em fase final de desnutrição. Não se pode
largá-los morrendo nas ruas. Agora o que você faz? Entra lá com uma equipe
médica e diz: 'você não está bem e vai para uma internação". Vai ser
assim? A única forma de atingir essas pessoas é você atrai-los para os serviços
de saúde e, para isso, têm que ter confiança de que serão ajudados, e que não
vão ser punidos com internação.
Quais os pontos positivos e negativos do programa De Braços
Abertos [de redução de danos, da gestão anterior], que foi extinto agora?
O programa teve méritos. Privilegiou esse contato, colocou à disposição dos
usuários assistentes sociais. O que eu achei que não daria certo foi o fato de
colocar os usuários naqueles hoteizinhos em volta da cracolândia. Usuário de
crack, como de cocaína, não pode ver a droga. Não pode ver alguém sob o efeito
da droga, não pode ver o lugar onde usava a droga. Isso é básico na dependência
química.
Muitas pessoas querem se ver livres da cracolândia e apoiam
a internação compulsória...
A sociedade tem uma visão míope desse tipo de problema. Você vai lá e limpa
aquela sujeira e tira as pessoas de lá e parece que está resolvido o problema.
Se fosse assim, seria a coisa mais fácil do mundo. O que estamos vendo? A
cracolândia aumentar a cada ano. Cada intervenção sem planejamento se torna
mais difícil. Tem algum sentido ter programa da prefeitura e do Estado? Tem que
somar forças. O crack é um problema suprapartidário. Esses dois programas
[Redenção, da prefeitura, e Recomeço, do Estado] vão trombar. E mesmo que
concordem, para que dois?
O que a literatura científica mostra sobre a efetividade dos
tratamentos da dependência?
No caso do crack, é tirar a pessoa fora do fluxo. Temos que nos conformar que a
dependência química é uma doença crônica, recidivante, como o câncer. Temos que
estar preparados para aceitar que uma pessoa que se afasta da droga meses,
anos, pode recair.
O certo é se ter uma equipe que analise os resultados. A gente sabe que a
estratégia de chegar lá com a polícia e jogar gás lacrimogêneo nas pessoas dá
errado. É gastar dinheiro do Estado, não sai barato fazer uma coisa dessas. Mas
a ignorância simplifica. Você acha que sabe resolver, e não é verdade. Os
gestores não conhecem a complexidade da situação, mas se veem pressionados pela
própria sociedade a fazerem alguma coisa.
Até pela urgência do crack, o país precisa rever sua
política nacional de saúde mental?
Forçosamente. Saímos de um exagero, tudo se internava em hospital psiquiátrico,
muitos deles depósitos de gente com transtornos, e caímos em outro, de fechar
tudo, acabar com as vagas. Você caminha pelas ruas e vê esquizofrênicos em
delírio, falando alto, sofrendo com alucinações. Se você trata, dá uns
remedinhos, ele para de ter essas crises. Temos que ter equilíbrio para tratar
dessas questões.