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terça-feira, 18 de junho de 2019

COISAS DA VIDA – Ariston Caldas



            O maior desejo de Maria era o de ser cantora; nem tanto pela voz. Ela sabia não ser lá essas cosas era pelo charme pela grana – tantos mil por uma apresentação. Nem achava que a voz de algumas cantoras fosse o que dizem por aí, mas estão sempre faturando. Precisava era de um pistolão de peso para encaminhá-la ao cenário artístico; um diretor, um empresário de prestígio, um fazendeiro, um cantor de cartaz. Ser artista era seu maior sonho, comparável somente ao de casar-se com um homem rico com apartamento e carro. Aos quatorze namorou um rapaz mais ou menos assim, mas o romance durou quase nada. Ela descobriu que o sujeito era homossexual e, aí, foi o fim. Depois da desdita, andou perambulando com o dono de uma lanchonete que se quebrou e desapareceu.

            Olhava-se no espelho e sentia que não era feia; não era nenhuma misse, mas reconhecia seus cabelos cacheados atraentes, os olhos sombreados naturalmente, as pestanas longas; além desses atrativos tinha o corpo esbelto e pernas bem feitas, os pés pequenos que ficavam chique em sandálias de tirinhas; os seios, médios-pontiagudos; sabia ainda ser meiga e preparada para os momentos necessários. Sentia essas coisas com o pensamento voando sobre um palco, a multidão à frente, aplaudindo. Ganharia um nome artístico. “Qual?” Um especialista diria. Ia participar de um programa de calouros de porte nacional, patrocinado por uma tv famosa. Era só inscrever-se e tinha um pistolão importante. “Menina bonita como você não deve ficar perdendo tempo numa lojinha qualquer”, disse-lhe o pistolão influente, fazendeiro e dono de uma emissora de rádio. “Quem sabe! Ele é um sujeito poderoso”. Cantaria uma música baiana das melhores, nada daquele romantismo ultrapassado me besta. Teria que ensaiar bem com o conjunto. O pistolão voltou várias vezes; o último encontro deu-se no escritório dele, a boquinha da noite. “sente aqui”. O “aqui” dele era nas próprias pernas. Maria estranhou o convite. “Por quê?” Ela não sentou-se e fingiu não entender; o sujeito levantou-se e, com as duas mãos, apalpou nos seios dela que afastou-se , encostando-se à parede; “peste”, pensou mas não disse. “Bobinha”, disse-lhe ele, avançando macio. “Eu grito”. Ele se acalmou treiteiro. Maria abriu a porta e correu para o elevador, assustada, apavorada com o sujeito que era muito feio e agressivo, rangendo os dentes para ela. Tudo acabou aí.

            Afastou-se do espelho e saiu para o quintal onde foi escovar os dentes na pia junto à cerca lateral; ao lado, a mãe dela, com uma bacia cheia d'água, molhava umas leiras de alface; duas galinhas pedreses ciscavam pelo terreiro; o sol vinha saindo desmanchando as sombras no quintal; o pai, apelidado de Bené, ainda dormia na marquesa antiga comprada quando casou; ele sentia frio e se enrolara até o nariz com uma coberta dorme-bem com duas listras vermelhas atravessadas. Ela sentia o envelhecimento do pai. “Trabalhou com um bicho para criar meninos, ganhando ninharia”. O pistolão teria sido decisivo em sua participação no concurso de calouros, a começar pela compra de roupa bem cara, sapato muito chique, tudo o mais necessário. “E depois? Ora, foi logo antes. Quem mandou ele apalpar meus seios! Sou alguma prostituta? Maria afastou-se espantada e sumiu entrando no elevador que havia chegado.

            No auditório eu estaria apinhado do e gente, a mesa julgadora presidida por pessoas importantes. Não pôde ir. Sem o pistolão nem pudera pagar a taxa de inscrição, quanto mais comprar um vestido decente, um sapato novo. “Isso influi”. Passou o dia pensando no assunto, no auditório superlotado, no conjunto musical; as amigas do bairro assistindo, os clientes da lojinha admirados, os colegas de trabalhos torcendo, e seu Bené ao lado da mãe dela, todo orgulhoso. “Besteira, perdi tudo só por causa de uma pegadinha nos peitos!”

            Estava na hora de sair para o trabalho, e saiu andando apressada para o ponto do ônibus; um carro passou em velocidade, um vento frio batia em seu rosto e balançava as árvores margeando o caminho. Apalpou os seios com as duas mãos e lembrou novamente do sujeito.


(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas

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O VOO DA ÁGUIA



A águia é a ave que possui a maior longevidade da espécie. Chega a viver 70 anos. Mas para chegar a essa idade, aos 40 anos ela tem que tomar uma séria e difícil decisão.

Aos 40 anos ela está com as unhas compridas e flexíveis, não conseguindo mais agarrar suas presas, seu alimento... O bico alongado e pontiagudo se curva. Apontando contra o peito estão as asas, envelhecidas e pesadas em função da grossura das penas e voar fica cada vez mais difícil!

A águia então só tem duas alternativas: Morrer... ou enfrentar um doloroso processo de renovação que irá durar 150 dias. Esse processo consiste em voar para o alto de uma montanha e se recolher em um ninho próximo a um paredão onde ela não necessite voar. Após encontrar esse lugar, a águia começa a bater o bico no paredão até conseguir arrancá-lo. Após arrancá-lo, espera nascer um novo bico com o qual irá, depois, arrancar suas unhas.

Quando as novas unhas começam a nascer, ela passa a arrancar as velhas penas. E só após cinco meses sai para o famoso voo de renovação e para viver então mais 30 anos.

(Autoria não mencionada)


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