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domingo, 18 de fevereiro de 2018

CONHECENDO E DISSEMINANDO A MENSAGEM (III) – Clóvis Silveira Góis Júnior


4.3 – Boqueirão


            A parti daqui, vou tentar reconstruir a trajetória dos pioneiros domésticos, ou seja, aqueles que, após selarem sua fé nas águas, continuaram a disseminar aqui seu cristianismo e diretamente ajudaram a formar o Adventismo que se instalou em toda a região cacaueira e sul baiana. São situações concretas do passado, colhidas da Revista Adventista e por meio do testemunho dos remanescentes dos pioneiros com quem tive contato direto.

            Em 1912, o colportor Manoel Margarido, de passagem pela região, distribuiu e vendeu literatura para fazendeiros; um deles foi Joaquim Melo. Sua família ficou interessada pelo assunto. O material é emprestado ou repassado à família de João Roberto Ramos, que se encanta com os ensinos e incorpora a mensagem ali contida, dando um passo adiante em relação aos vizinhos. Joaquim Porto também foi responsável por anunciar a boa nova àquelas pessoas por meio da página impressa. O próprio Ricardo Wilfart, administrador da obra no Nordeste, reconheceu  que “o interesse em Boqueirão foi despertado pela literatura vendida, em tempos passados, pelo irmão colportor Joaquim Porto”.

            Antes de pormenorizar um fato sucedido no Boqueirão, vou relembrar um episódio ocorrido em 1845 nos Estados Unidos, quando o Sr. James Hall e José Bates atravessavam juntos a ponte Fairhaven, no estado de Massachusetts. José Bates é tido como o pioneiro dos pioneiros entre os Adventistas do Sétimo Dia, o fundador mais interessante do Adventismo norte americano. Do grupo dos líderes iniciais, foi o primeiro a entender, aceitar e advogar o mandamento sabático. Por mais de um ano, ficou sozinho no movimento, defendendo tal ensino. Quando o Sr. James Hall, seu vizinho, passou por ele na ponte, saudou-o e fez a pergunta usual, de sempre, quando dois conhecidos se encontram: “Olá, capitão Bates! Que há de novo?”. Prontamente, carregado de zelo, respondeu: “A novidade é que o sétimo dia é o sábado do senhor nosso Deus!” (Ex. 20:10). A novidade para o ancião Bates era aquilo que mais martelava  seu intelecto! O Sábado era sua verdade  presente! E aquilo o consumia. O desconhecimento por parte de seus irmãos daquela verdade olvidada dilacerava seu interior. O Espírito Santo, agindo em sua mente e coração, impelia-o a falar daquilo que sabia ser um ensino necessário e plenamente em vigor! Diante de uma boa nova tão importante e defendida tão vigorosamente, Hall aceitou estudar o tema e em pouco tempo seria um observador do sábado.

            Imaginemos agora um encontro semelhante, só que dessa vez na América do Sul, na Bahia, no Boqueirão de Itabuna, lá pelos idos de 1910/1912, envolvendo um carpinteiro e um fazendeiro que se reuniam em suas horas de folga para estudarem o Texto Sagrado. Embora os aspectos físicos, culturais e geográficos relacionados a esses homens fossem diferentes dos norte-americanos, seus anseios espirituais eram idênticos.

            O encontro  concebido pode ter sido muito apropriadamente ocorrido num pontilhão sobre o riacho do Boqueirão, e José Aniceto de Souza, proveniente da cidade, pergunta: “Quais são as novidades, compadre?” Tal como Bates, consumido pelas descobertas bíblicas impulsionadas pelos folhetos que vizinhos lhe ofertara, prontamente João Roberto responde: “A novidade, Aniceto, é que o sábado é o  sétimo dia, e que precisamos observá-lo!”.

            A rapidez do momento não permitiria maiores delongas, mas um encontro mais pensado e demorado fora marcado para mais tarde, à noite, quando Aniceto poderia acalmar seu espírito atordoado e surpreso com aquela história.

            Mais tarde, naquele dia, os ripões, tábuas e martelos foram abandonados mais cedo por parte de Aniceto. Com certeza, a empreitada da nova barcaça seria atrasada, pois ele teria algo mais importante a buscar e realizar. Ele, munido de uma Bíblia que lhe fora presenteada por amigos da Igreja Batista em Itabuna (ainda existe e está em posse de parentes no Rio de Janeiro), apressara-se para o encontro que mudaria sua vida,  de seus familiares e da cidade que o abraçara em 1905, depois que saiu de Campo Formoso, em busca de dias melhores. E aquele seria, talvez, o melhor de seus dias.

            Na sede da fazenda Pacífica, o patriarca João Roberto Ramos, impaciente, esperava a chegada do amigo. Os facões, enxadas, caçuás e animais foram guardados, também, mais cedo do que de costume. Os afazeres agrícolas foram celeremente terminados naquele dia, e a atenção e educação dos seus oito filhos ficariam na responsabilidade única de sua esposa, dona Senhorinha Oliveira Ramos.

            Os textos já estavam marcados (também numa Bíblia adquirida por intermédio dos batistas Itabunenses), as anotações e folhetos sabatistas todos arrumados sobre a mesa. Somente a cabeça do fazendeiro estava um tanto desarrumada, em face de sua ansiedade momentânea. Com certeza, o encontro iminente e o estudo conjunto com Aniceto iriam definir o aprendizado daquilo que pautaria sua vida, de sua família e da futura Igreja Adventista que surgiria na região. Não somente Itabuna, como Ibicaraí e Floresta Azul, sofreriam as consequências daquele encontro e dos muitos que ainda ocorreriam!

            Aniceto vivia situações financeira e física  diferentes das vividas por João Roberto. Sua saúde não era das melhores, nem as economias domésticas. Provavelmente, o mal de Parkinson que o vitimaria já apresentasse alguns sinais degenerativos. Sua família exibia uma pré-divisão, exatamente em virtude de fatores religiosos, pois seu filho Sinphrônio de Souza começou a namorar uma jovem de família batista, o que levou Aniceto a buscar qualquer passagem bíblica que embasasse a guarda do Domingo. Não encontrando o pretendido e imaginado texto, discussões sérias ocorreram entre os dois. tinha dificuldade também em aceitar as proibições bíblicas em relação a algumas carnes consideradas imundas. Desde sua chegada em Tabocas, já havia frequentado cultos com os irmãos presbiterianos e com os batistas. Depois dos encontros com João Roberto, as coisas pareciam mais claras, conforme ele mesmo já havia descoberto em alguns versículos bíblicos. Mas a cisma familiar acabou adiando um pouco sua decisão de batismo.

            Aquela reunião foi fundamental para iniciação da propagação da tríplice mensagem angélica em Itabuna. E outros encontros advindos semelhantes, promovidos e participados por aqueles dois pioneiros, produziram a gênese da Igreja Adventista atual.

(A GÊNESE DO ADVENTISMO GRAPIÚNA Cap. 4.3.)
Clóvis Silveira Góis Júnior
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Sobre o autor:
Clóvis Silveira Góis Júnior é trineto de Genoveva França Jacó (integrante do primeiro batismo adventista realizado em Boqueirão, no ano de 1918).
Servidor público federal há 30 anos, é graduado em Administração e licenciado em história. É casado com Iara Souza Setenta Góis, pedagoga, e tem dois filhos: Felipe e João.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (66)


1º Domingo da Quaresma -18/02/2018

Anúncio do Evangelho (Mc 1,12-15)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Marcos.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, o Espírito levou Jesus para o deserto. E ele ficou no deserto durante quarenta dias, e aí foi tentado por Satanás. Vivia entre os animais selvagens, e os anjos o serviam.
Depois que João Batista foi preso, Jesus foi para a Galileia, pregando o Evangelho de Deus e dizendo: “O tempo já se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho!”

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do Frei Alvaci Mendes da Luz, OFM:

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DESERTO: tempo de des-velamento interior
 “O Espírito levou Jesus para o deserto” (Mc 1,12)

Ao iniciarmos a Quaresma, um lugar que continuamente será citado e que vai aparecer com frequência nos textos, reflexões e orações, é o “deserto”. Deserto que deve fazer parte de nossas vidas em algum momento: espaço de escura e de silêncio, de busca, de despojamento; lugar que nos faz tomar consciência das coisas essenciais que dão sentido à nossa existência; ambiente privilegiado para o encontro tu a tu com o Deus amor que nos habita, ou melhor, em Quem habitamos. Se nos abrirmos à Sua presença amorosa, caminharemos livres dos falsos absolutos que cada dia nos tentam, e nossos desertos existenciais se converterão em um jardim onde florescerá de novo a esperança.

Como seres humanos, de tempos em tempos precisamos passar por experiências de despojamento, de esvaziamento, de vulnerabilidade, de crise..., para poder suavizar nosso coração e, desse modo, fazer-nos mais receptivos e expansivos.

O “deserto” é o lugar das perguntas, do discernimento, da busca de profundidade, o ambiente favorável que nos oferece ferramentas com as quais poder romper as bolhas que nos aprisionam, impedindo-nos sair para a aventura da vida.

O “deserto” nos sacode e nos desnuda, porque desmascara nossas falsas seguranças. Por isso, somos movidos a buscar nossas raízes mais profundas. Quando esse percurso é vivido adequadamente, é provável que no final vamos poder dizer, como Kierkegaard, “eu teria me afundado se não tivesse ido ao Fundo”. Com efeito, antes ou depois, o deserto nos conduzirá para o Fundo estável e sereno, nos conduzirá à “casa”, à nossa verdadeira identidade, à “Terra prometida”.

Num mundo em que a imagem e as redes sociais ocupam, com suas presenças, toda a nossa vida, todos os nossos lares, os espaços públicos, fazendo-nos viver a cultura da superficialidade, muitas pessoas de diferentes condições sociais e religiosas já começam a sentir a urgente necessidade de escapar de tanta solicitação externa que as oprime e alimentam o desejo de se ocupar mais decididamente com o seu mundo interior. Mas, se somos sinceros, adentrar-nos em nosso “eu profundo” e viver a partir de dentro é algo que não sabemos e muitas vezes até sentimos medo. É cada vez mais difícil a criação de um espaço interior, em sintonia e bem integrado com o mundo exterior.

Nesse sentido, a liturgia quaresmal revela-se como uma mediação privilegiada para potencializar nossa interioridade, ou destravá-la, para que a expansão de nossa vida seja possível. Tal experiência resgata-nos do entorpecimento e nos dá um choque de lucidez. Ela oxigena a nossa mente e implode nosso conformismo; revela-se instigadora e provocativa, fonte inspiradora que nos liberta do cárcere da rotina. Ela nos faz lembrar que somos andarilhos, deslocando-nos no traçado da existência em busca de respostas que dêem sentido à nossa existência.

O caminho para Deus passa pela experiência mais profunda e autêntica de si mesmo, convidando cada um a repensar como, em meio às dificuldades de cada tempo, sempre é possível o percurso em direção à própria interioridade.

Buscar o Deus que “está dentro de mim, enquanto eu estou fora” (S. Agostinho), significa entrar em relação direta com nosso interior, com o que nos move, com o que sentimos e pensamos; significa dissolver bloqueios afetivos já solidificados e conflitos não resolvidos; é fazer que se calem muitos ruídos parasitas e que se escute, por fim, o silêncio sonoro que brota do oculto; desentupir os condutos do coração e processar a lava ardente dos grandes desejos significa abrir os olhos para uma paisagem desconhecida.

Foi no deserto onde Jesus descobriu o que move verdadeiramente o coração do ser humano. Foi nessa situação – de solidão – onde também descobriu o que Deus ama no coração humano. Nessa experiência de deserto Jesus tomou consciência de duas forças ou dinamismos que atuam no coração humano: um de expansão, de saída de si, de vida aberta e em sintonia com o Pai e com os outros; outro, de retração, de auto-centração, de busca de poder, prestígio, vaidade... 

Jesus viveu impulsionado pelo Espírito, mas sentiu em sua própria carne as forças do mal: “foi tentado por satanás”; satanás significa “o adversário”, a força hostil a Deus e a quem trabalha por seu reinado. Na tentação de Jesus se des-vela o que há em nós de verdade ou de mentira, de luz ou de trevas, de fidelidade a Deus ou de cumplicidade com a injustiça. Qual dos dois dinamismos internos alimentamos?

O evangelista Marcos ressalta que o “deserto” não é só um lugar geográfico; é também o lugar que buscamos para nos silenciar e nos oferecer a oportunidade para reconectar conscientemente com nosso centro. Em todo processo de crescimento, e mais ainda nos períodos críticos do mesmo, vamos nos deparar com a presença dos “animais selvagens” e dos “anjos” em nosso eu profundo.

É assim que nomeamos as experiências que acontecem quando nos adentramos em nosso mundo interior. Os “animais selvagens” são aquelas circunstâncias internas e que nos frustram e, sobretudo, aquele material psíquico que não reconhecemos ou aceitamos em nosso interior: nossas paixões, nossos traumas, nossas feridas, nossos instintos, nossa impotência e fragilidade... É a “sombra” que vamos arrastando, e que continua nos assustando enquanto não a reconhecemos e a abraçamos abertamente em sua totalidade.

Os “anjos” são os consolos – externos e internos – que aparecem em nosso caminho, em forma de paz, de luz, compreensão, de fortaleza, de amor...

“Animais selvagens e anjos” cumprem seu papel, pois nos “obrigam” a avançar para nossa verdade profunda, tirando-nos da superfície de nós mesmos, ou talvez da “zona de conforto” na qual tínhamos nos instalado, conformando-nos com uma vida “normótica” e sem criatividade.

O amadurecimento humano implica abraçar toda nossa verdade, também aquela que nos aparece sob disfarces temerosos, como o medo, a solidão, a tristeza, a angústia... Lidar com tais “feras” requer capacidade de olhá-las de frente, com compreensão, paciência e muito afeto. A espiritualidade cristã nos mostra que exatamente em nossas feridas nós descobrimos o tesouro do nosso verdadeiro “eu”, escondido no fundo de nosso coração.

Tradicionalmente, fomos coagidos a viver uma espiritualidade que nos ensinou a prender os “animais selvagens” e a levantar junto deles um edifício de “grandes ideais”. E com isto, passamos a viver constantemente com medo de que as feras pudessem fugir e nos devorar.

Sabemos que tudo quanto nós reprimimos nos faz falta à nossa vida. Os “animais selvagens” tem muita força. Quando os prendemos, fica nos faltando a sua força, de que temos necessidade para o nosso caminho para Deus, para nós mesmos e para os outros. Somos obrigados a fugir de nós mesmos, ficamos com medo de olhar para dentro de nós, pois poderíamos correr o risco de nos deparar com as feras perigosas.

Quando, graças à presença dos “anjos”, deixarmos de rejeitar e de resistir aos “animais selvagens”, iremos tomando consciência como a luz e a fortaleza vão se expandindo em nosso interior; nós nos perceberemos mais unificados e harmoniosos. E assim, estaremos mais preparados para a “travessia” em direção à Páscoa.

Texto bíblico:  Mc 1,12-15

Na oração: Cuidamos da interioridade quando nos questionamos sobre o modo como olhamos a vida, como atuamos diante das situações, como nos relacionamos com os outros, como vivemos nossas convicções e crenças; e, sobretudo, quando nos exercitamos em determinadas “atividades espirituais” que podem nos ajudar a des-velar o nosso “eu original”, como o silêncio, os momentos de oração, o encontro com a Palavra, a partilha em grupo...
- Quê mediações você vai ativar durante a Quaresma para ajudar a des-velar sua própria interioridade?

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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