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terça-feira, 15 de agosto de 2017

AVENTURAS DE UMA MENINA BOBA – Helena Borborema

Aventuras de uma menina boba


            A Rua Paulino Vieira mudou muito no seu aspecto com o passar dos anos. Continuando estreita e movimentada, teve, no entanto,  as fachadas de suas casas totalmente remodeladas, calçamento de pedra substituído por asfalto, fundos de casas transformados em lojas e, ultimamente, os passeios uniformizados. Ela já foi preferencialmente uma rua de residências, mas sem nunca deixar de ter movimento comercial. Antigamente, porém, o seu comércio era de feirantes, verdureiros e vendedores outros, que por ela passavam com suas mercadorias, oferecendo-as nas casas de família ou em direção à feira, nos dias de sábado. Por ela passavam também mercadores de carnes nos tabuleiros, carvoeiros, aguadeiros, leiteiros, padeiros, mascates e outros vendedores.

            Senhores importantes a palmilhavam diariamente, pois tinham ali suas residências.

            Por ocasião da safra do cacau, uma parte do seu trecho era tomada por uma grande tropa carregada de sacos do precioso produto, que era despejado num grande armazém do rico cacauicultor Oscar Marinho, também ali residente. A chegada da tropa na rua era uma festa para os meninos. Todos corriam para vê-la. A tropa era enorme. Os animais entravam na rua com a madrinha à frente, uma besta toda enfeitada de fitas de várias cores e um peitoral de metal reluzente tilintando pequenos sinos, indicando o caminho aos outros animais. Os tropeiros, ágeis e suarentos, iam logo descarregando os animais e transportando na cabeça os sacos para dentro do armazém, entulhando-o com a preciosa carga. Não havia empecilho para o trânsito de carros, pois esses ainda eram poucos na cidade.

            As casas da Paulino Vieira foram mudando com o tempo, as suas fachadas transformadas em vitrinas de lojas e butiques elegantes. Os feirantes e mercadores mudaram de caminho, pois as famílias foram saindo com a invasão das lojas. Nessa mudança para um comércio modernizado, algumas casas velhas foram demolidas para ceder lugar a novos prédios. No meio dessas demolições, lá se foi um sobradinho estreito, de um andar, que possuía no térreo um modesto restaurante, sempre aberto aos passantes. Em seu lugar foi erguido, anos depois, um prédio revestido de mármore, para funcionamento do Banco da Bahia, uma esquina entre a Paulino Vieira e a Avenida do Cinquentenário.

            Nesta rua eu, ainda bem menina, no primeiro ano primário, vinha do colégio trazendo na mão uma pasta com os livros e cadernos, após as aulas da manhã. O passeio do pequeno sobrado era o meu caminho diário. Vinha atenta às ordens de não parar no caminho, quando deparei um pequeno grupo de pessoas, talvez empregados ou comensais da pensão, fazendo um certo alvoroço com muitas risadas em torno de um amontoado de pequeninos bichos que se mexiam sem sair do lugar sobre o passeio. Aquilo despertou minha curiosidade que me deteve para perguntar que bichos eram aqueles que eu nunca tinha visto.

            - São  filhos de leão! -, respondeu alguém entre risadas.

            - Filhotes de leão? -, perguntei maravilhada.

            - Sim. Quer levar os três?

            - O senhor me dá?

            Já tinha visto leões no circo e nos livros, todos grandes, os pequeninos assim, miudinhos, nunca.

          Que coisa linda criar três leõezinhos, logo imaginei, brincar com eles e, quando estivessem mais crescidos, mansinhos, andar com eles em casa como se fossem três cachorrinhos! Era bom demais.

            A turma toda olhou para mim e, divertido, um dos homens disse: leve os três.

            Sem ter ideia do que fazia, pois só pensava no brinquedo que iam ser, prontamente, sem nojo, os peguei e os coloquei dentro da pasta, no meio dos cadernos, na maior alegria. Parti para casa feliz, mas logo caí em mim. E meus pais iam deixar que eu ficasse com aquele presente? Como iriam eles receber a novidade? O mais prudente  era mostrar depois do almoço, quando tudo estava mais calmo. Enquanto isso, era preciso guardar os três bichinhos até o momento que achasse bom. Mas onde guardar? Estava difícil encontrar um lugar onde ninguém descobrisse. Mas onde? Almocei quieta, dando tratos à bola. De repente, a ideia chegou. Já sei! Na gaveta do criado-mudo de minha mãe, peça colocada a um canto do quarto onde ela pouco mexia. Terminado o almoço, corri para a pasta escolar, peguei os bichinhos e os coloquei dentro da gaveta. E agora? Fiquei pensando, como alimentá-los? O que iriam eles comer? Valia a pena todo cuidado porque ficariam lindos quando crescessem mansinhos e eu pudesse brincar com eles.

            Fiquei sem entender o porquê do inesperado. Como pôde acontecer aquela coisa horrível que eu jamais pensara? Estava tudo calmo, eu esperando que meu pai saísse às duas horas, como fazia sempre, e minha mãe se ocupasse com alguma coisa, para eu poder, tranquilamente, olhar os meus três leõezinhos.

            Aguardava pacientemente a grande oportunidade, quando ouvi um grito partindo do quarto de minha mãe, a sua voz alterada, a chegada de uma empregada e uma enorme confusão. Três ratinhos recém-nascidos tinham sido encontrados. Como apareceram ali dentro daquela gaveta? Procurei me esconder, mas fui chamada às falas. Acho que a minha cara me denunciou ou alguma atitude suspeita me traiu. O certo é que o meu pai, que ainda não tinha saído, foi convocado, as empregadas se juntaram e eu, na maior vergonha de uma confissão pública, diante do interrogatório a que me submeteram, desembuchei toda a história. Como podia uma menina crescida, na escola, trocar filhos de ratos por leões, pegar naquela porcaria, receber coisas das mãos de estranhos, parar na rua desobedecendo ordens e trazer presente escondido para casa? Foi um rosário de culpas que minha mãe desfiou para mim, além de me mostrar o seu chinelo que iria funcionar na primeira ocasião que eu aprontasse outra armação.

            Além do conhecido chinelo, minha mãe tinha com frequência à mão, uma sola larga que ela mandava buscar na sapataria de seu Zé Gomes, que ficava perto de casa. Não adiantava eu dar sumiço na malfadada sola, porque seu Zé Gomes renovava sempre os pedidos feitos. Ele já sabia qual a finalidade, e parecia a mim que ele tinha prazer em atender os pedidos de minha mãe, pois nunca recusava. Por isso eu o odiava. A sola não funcionava realmente, mas intimidava com a presença.

            Passaram-se os anos. Eu, adulta, formada. Um dia fui convidada por seu Zé Gomes para ser madrinha de batismo de sua filha caçula. Aceitei o convite com muito prazer, com estima. Tornamo-nos compadres e eu já então agradecida, porque talvez as solas que ele forneceu tenham ajudado um bocado na eficiente pedagogia de minha mãe.

            Essa história dos ratos, além da decepção que me causou pelo logro em que caí, me ficou na lembrança e me faz recordá-la, sempre que passo pelo fundo do antigo Banco da Bahia, no passeio da Paulino Vieira. Parece que vejo gravado na parede de mármore branco: Por aqui passou um dia uma menina boba.


(RETALHOS)
Helena Borborema
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HELENA BORBOREMA -  Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município. (A autora)

Conhecida professora itabunense, filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’.  

(Cyro de Mattos)

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SÉRIE “MPB NA ABL” DE AGOSTO APRESENTA O SHOW “HAMILTON DE HOLANDA – BANDOLINS”

A série “MPB na ABL” de agosto apresentou, na Academia Brasileira de Letras, o show “Hamilton de Holanda – Bandolins”. A produção foi de Didu Nogueira: “Virtuoso, brilhante e único são alguns dos adjetivos na vida deste músico, que contagia plateias em turnês por todo o mundo, construindo uma carreira de inúmeros prêmios”, afirmou o produtor.

De acordo com Didu Nogueira, Hamilton de Holanda, 41 anos, 36 anos de música, carrega na bagagem a fusão do incentivo familiar com o Bacharelado em Composição pela Universidade de Brasília e a prática das rodas de choro e samba. “Essa identidade permite que ele transite com tranquilidade pelas mais diferentes formações (solo, duo, quarteto, quinteto, orquestra), consolidando, assim, uma maneira de expor ideias musicais e impressões sobre a vida com o coração na ponta dos dedos”.

Atualmente, depois de adicionar duas cordas extras – 10 no total –, Hamilton de Holanda reinventou o bandolim e libertou o emblemático instrumento brasileiro do legado de algumas de suas influências e gêneros, segundo os produtores do show. “O aumento do número de cordas, aliado à velocidade de solos e improvisos, inspira uma nova geração a se aproximar do bandolim e de conceber formações com uma nova instrumentação. Se é jazz, samba, rock, pop, lundu ou choro, não mais importa. Nos EUA, a imprensa logo o apelidou de Jimmy Hendrix do bandolim”.

07/08/2017

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