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segunda-feira, 4 de novembro de 2019

UM IDOSO NA FILA - Zuenir Ventura


Quando a gente percebe que entrou na ‘terceira idade’ Por ZUENIR VENTURA

  
          “O senhor aqui é idoso”, gritava a senhora para o guarda, no meio da confusão, apontando com o dedo o tal “senhor”. Como ninguém protestasse, o policial abriu caminho para que o velhinho, aprovado no exame de vista, enfim passasse à frente de todo mundo para buscar a sua carteira de motorista. O “idoso” que a dama solidária queria proteger do empurra-empurra não era outro senão eu.

            Até hoje não me refiz do choque. Sim, eu, que já tinha me acostumado a vários e traumáticos ritos de passagem para a maturidade: dos 40, quando, em crise, se entra pela primeira vez nos enta; dos 50 , quando, deprimido, se sente que jamais vai se fazer outros 50  (a gente acha que pode chegar aos 80, mas aos 100?); e dos 60, quando um eufemismo diz que a gente entrou na “terceira idade”. Nunca passou pela minha cabeça que houvesse uma outra passagem aos 65 anos. E, muito menos, nunca achei que viesse a ser chamado, tão cedo, de “idoso”, ainda mais numa fila para carteira de motorista.

            Na hora, tive vontade de pedir a tal senhora que falasse mais baixo. Na verdade, tive vontade de dizer: “Idoso é o senhor seu pai.” O que mais irritava era a ausência total de hesitação ou dúvida. Como é que tinha tanta certeza? Que ousadia! Quem lhe garantia que eu tinha 65 anos, se nem pediu para ver minha identidade? E o guarda, por que não criou um caso, exigindo prova e documentos? será que era tão evidente assim?

            Como, além de idoso, eu era um recém-operado, acabei aceitando ser colocado pela porta adentro. Mas confesso que furei a fila sonhando com a massa gritando, revoltada: “Esse coroa tá furando a fila! Ele não é idoso! Manda ele lá pro fim!” Mas que nada, nem um pio.

            O silêncio de aprovação aumentava o sentimento de que eu era ao mesmo tempo privilegiado e vítima - do tempo. Lembrei-me da manhã em que acordei fazendo 60 anos: “Eu não mereço”, disse a mim mesmo. Há poucos dias, ao revelar minha idade, uma jovem universitária reagira assim: “Mas ninguém lhe dá isso”. Respondi que, em matéria de idade, o triste é que ninguém precisa dar para você ter. De qualquer maneira, era um gentil consolo da linda jovem. Ali na fila nem isso, nenhuma alma caridosa para me dar um pouco menos.

            A mocinha da mesa de informações apontou para os balcões 15 e 16, onde havia um cartaz avisando: “gestantes, deficientes físicos e pessoas idosas.” Hesitei um pouco e ela, já impaciente, perguntou: “O senhor não tem mais de 65 anos? Não é idoso?”

            “Não, sou gestante”, tive vontade de responder, mas percebi que não carregava nenhum sinal aparente de que tinha amamentado ou estava prestes a amamentar alguém. Saí resmungando: “não tenho mais, tenho só 65 anos.”

“CRÔNICAS DE UM FIM DE SÉCULO”. 1999 ZUENIR VENTURA. EDITORA OBJETIVA, RIO DE JANEIRO.


  (Reader’s Digest SELEÇÕES. Abril de 2000)

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