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sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

ORLANDO GOMES: UM JURISTA CRONISTA – Cyro de Mattos

 


Orlando Gomes: um jurista cronista

Cyro de Mattos

 

         Os alunos gostavam de dizer de boca cheia, a expressão feliz no rosto, que aquela era a gloriosa Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia. O prédio ficava na Rua Direita da Piedade, em frente, no diminuto largo, o gesto em bronze do jurista Teixeira de Freitas, a observar os alunos que entravam para a aula na manhã. Os professores eram senhores de vasto saber jurídico. Uns faziam que os alunos respeitassem aquela faculdade de tradição valorosa, outros com a sua maneira de dizer o direito que a amassem. Entre eles, havia Orlando Gomes, professor de Direito Civil. Era um autor respeitável no circuito nacional, à época publicara obras de Direito Civil, que sobressaíam de sua vocação entre os talentosos juristas baianos.      

          O curso de Direito Civil durava quatro anos.  Para cada ano era estudada uma das ramificações desse direito. Não havia aluno que não quisesse estudar Direito Civil com o professor Orlando Gomes durante os quatro anos. Era uma dádiva ser aluno daquele professor elegante, dicção objetiva, poder de síntese e densidade atraentes. Fazia sem esforço que as aulas se tornassem sedutoras, durante o ano ninguém pensava em faltar a uma delas, lamentando quando isso acontecia por motivo alheio à vontade.   

          A razão do moço que veio do interior logo tomou conhecimento que o Direito é uma das maiores conquistas do ser humano. Sem essa hora não existe de fato gente humanizada, o cidadão condigno, mas o regresso na escala biológica onde prevalece o instinto animal na prática invariável dos atos com base na lei do mais forte.

          Havia chegado a hora do professor de Direito Civil se aposentar, guardar suas ferramentas de ensino na gloriosa faculdade. E assim, no veraneio imposto pela passagem da vida, viria acontecer o cronista. De crônica em crônica, publicada no “Jornal da Bahia”, nos anos 1960 e 1970, o estilo não jurídico do autor foi revelando um baiano bom cronista. O autor no final da sua atividade como cronista alcançava a marca de quem havia escrito 140 textos do gênero.

         Crônicas sobre o seu amor à Bahia, a sua história, os seus velhos mestres, o Carnaval ontem e hoje, o racismo, o futebol, a oratória decadente do bolodório, os advogados, a Justiça e o Direito, entre tantas que fluem no estilo sóbrio.  Em algumas fica claro que os homens da geração do cronista tinham dificuldades de entender o mundo, que passava ligeiro, por mais aberto que seja o espírito, mais ansiosa a vontade de compreendê-lo, como pasmo se dizia. 

          Essas crônicas foram reunidas agora no alentado volume Orlando Gomes, o cronista. Percebe-se em algumas que o tempo passageiro é flagrado na Bahia com seu direito de sambar, caminhar por novas ruas do mundo onde foi introduzido o homem audiovisual modelado pela telecomunicação, formatado em seu psiquismo, educação e relações sociais. O cronista com conhecimento de causa toca as faces nostálgicas da velha Salvador, exibe a cidade que não mais existia com a pura alegria de viver de sua boa gente. Ninguém mais queria conhecer o outro por prazer.

          Em “Papo de Folião Aposentado”, no tom consolador, conclui que o carnaval de ontem já era, o corso de automóveis com famílias aplaudindo nas calçadas não passava de evocação de cafonices. Estava convencido de que não foi mesmo o folião aposentado que mudou ao correr da vida. O babado, em seu cometa ululante e feérico, “atrás do qual centenas de foliões pulam por pular e arrastam o que encontram pela frente”, é que era outro.

          Lírico, observador, reflexivo, opinativo. Cronista que recolhe os estados emotivos da vida em sociedade, extraindo das cenas cotidianas o pretexto que resulta no texto informativo com equilíbrio e devaneio.  Cultiva a crônica com o engenho de ensaísta, que inspirado fere com humor a mudança dos costumes, expede juízo acerca de temas como o amor, a idade avançada como virtude acumulada de saber, o preconceito contra as mulheres, a euforia das domésticas, a utilidade das novelas de televisão, as drogas e a violência. Crônicas para todos os gostos como resultado de uma experiência de vida bem vivida. 

          À sombra das lembranças que acendem o pensamento emotivo, às vezes revelam   a maneira apropriada para se regressar ao passado, reconstruindo-o com pedaços felizes, momentos generosos da cidade de beleza antiga na canção da vida. Com uma conversa simples, pedem atenção para o perene das coisas, pessoas, costumes, situações, logrando trazer para as páginas do livro agora a notícia efêmera que pertence ao jornal. 

          O cronista tem uma visão tranquila de ver o mundo. Distingue-se na escritura que prefere recriar com emoção e razão situações ao invés de recorrer à mera transcrição dos fatos. Assim, ainda que tardio, fez descansar o jurista de saber e ensino notáveis.  Gosta de se apresentar com humor, diverge quando a cena se lhe mostra inconsequente, mas sempre querendo conversar com o mundo, de maneira lúcida, serena, numa condição que lhe é necessária, faz parte de seu caráter revestido das essências da vida. Isso certamente fará com que o leitor comente que em bom momento não ficou o veranista esquecido dentro do jurista.

 

*Orlando Gomes, o cronista, 140 crônicas de Orlando Gomes, prefácio por Otávio Luiz Rodrigues Jr., organizador Rodrigo Moraes, EDUFBA, editora da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

 

**Cyro de Mattos é ficcionista, poeta, ensaísta, cronista, autor de literatura infantojuvenil. Editado e premiado também no exterior. Autor de 55 livros pessoais. Membro da Academia de Letras da Bahia, foi aluno do professor Orlando Gomes, que ocupou a cadeira 16 da instituição.

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MARIA GENEROSA – Nelson de Faria



 Maria Generosa

                                        “...aquele que dentre vós está sem pecado,

                                           Seja o primeiro que lhe atire uma pedra”.



          “É como estou contando, moço. Às brutas, não, porque ninguém sojiga minha vontade. Mais, porém, numa conversa bem conversada a gente topa tudo, sem receber tostão, sem nada, que o dinheiro inté, muitas vezes, sapeca as mãos da gente. Pra quê dinheiro, sô, quando o sujeito é bem-falante, palpitoso, que faz a gente se derreter toda? Pra quê misturar as coisas boas que a vida dá pra gente com essa porcaria de dinheiro, que a gente tem quando não precisa e só carece dele quando a gente não tem? Não gosto de mangar de ninguém, não carrego soberba comigo e nem tenho implicância com os mais. Qualquer vivente, filho de Deus, tem resplandor nas minhas ideias mesmo que seja um tiquim só. Os bichins de Nosso Senhor, os que não fazem mal a ninguém, inté eles todos, são coisas do   meu bem-querer. Borboleta e passarim, pra falar só dos dois, vosmecê já prestou atenção nas bonitezas deles? Quem é que não gosta de coisas assim? Vosmecê se ri, achando que eu sou diferente das outras? Mais, porém, não está me debochando, né mesmo? Muitas das tais que nem eu, que andam por aí especulando a vida dos outros, eu maldo, não vieram ao mundo para a vida desinfeliz que Deus deu pra elas. Estragam o ofício, sujam o nome limpo das famílias delas e querem emporcalhar as companheiras. Caíram na vida por bestagem delas ou sem-vergonheira de homem sem coração. Depois da primeira cabeçada atolam o corpo na sujeira. Não se dão ao respeito, desvalorizam a classe.

            Vou contar uma coisa pra vosmecê: foi Sêo Cantídio, cometa afiançado, rapaz de muitas letras e muitas falas bonitas – o homem mais senhor que já vi na minha vida – quem me explicou muitas dessas coisas do mundo. A gente se embelecava com o cujo, logo na primeira hora, sem dar fé do que estava acontecendo, sem acreditar que se amarrava ao danado. Sêo Cantídio protegia e alteava a criatura que andasse com ele. No fim, a gente virava escrava, só ouvindo a boniteza do palavreado dele. Pra mostrar que a vida que a gente leva não é assim tão condenável, contava casos acontecidos com princesas e rainhas de outras eras, criaturas das terras dos gringos e outras da nossa terra também.  De uma ensinança de invejar professoras, mostrava, nos livros, retratos de muitas mulheres e falava de suas sem-vergonhezas, seus feitiços, mandando e desmandando nos homens que imperavam antigamente. Quer saber de uma coisa, moço? Umas eram bonitas, de verdade, que nem cromos; outras, que nem nós mesmas... Vosmecê não quer tirar uma fumacinha, aqui, no meu cigarro? Diz que faz mal, porque sofre dos peitos, é? Me desculpe. Como estava contando: decorei o nome de muitas que estão nos livros e sei as malucagens que elas fizeram pra dominar reis e imperadores. Me diga, agora, vosmecê: essas criaturas, feias ou bonitas, são ou não são que nem a gente? Sêo Cantídio me mostrou um livro, desses de capa preta, grandão, pesado, abriu ele e leu para nós, para mim e Celestina – a Celeste, que amaridou com Sêo Zé Tertuliano, minha amiga mais chegada – uma porção de estórias, adonde a vida  e criaturas que nem eu e Celeste é inté engrandecida. A tal Rainha de Sabá,  para exemplo, fez coisas com o rei Salomão... Bem, nem é bom se recordar. Sêo Cantídio  leu os versos que o tal Rei escreveu, louvando pra danar o corpo dela, não foi assim? O rei explicava tudo tão direitinho, tão bem explicado mesmo, que a gente ficava maginando, sentindo uma gastura dos diabos remordendo dentro da gente. Inté nossos olhos ficavam marejando...

          E aquelas estórias das “noites mil”? Vosmecê diz que estou errando no nome, que é Mil e Uma Noites? Pois seja! Vosmecê já leu coisas mais doidas do que aquelas? E a tal de Salomé, que mandou cortar a cabeça do santo? E as tais Lucrécia e Messalina? Virge, que criaturas desapiedadas! E as madamas, imperadoras da França, monarcas de Roma? E aquela danadinha lá do Egito, que deu os peitos pra cobra morder? Já se viu?! Vosmecê não aceita mesmo um cigarrinho? Uma tragadinha só, toma, não vai fazer tanto mal... Que nem Sêo Cantídio, lhe juro, sem agravar os mais outros homens, nunca vi igual! Ele fez nós duas, eu e Celeste, descobrir o valor do nosso ofício e provou que nós espanamos do mundo as doideiras dos homens. Jurava que, sem a gente, o número de malucos seria mais grande do que é; e que também, no meio das famílias, as desgraças seriam mais desgraçadas do que essas desgraças que aí estão, e que a gente sabe delas por ouvir dizer...

          Acho que Sêo Cantídio tinha razão. Quando a gente duvidava do que ele dizia, ficava assim, do olhos pregados na nossa cara, naquele jeitão de quem sabe muito bem o que falava. Se ria todo e perguntava, com a cara mais lavada: “Como foi, então, que o mundo se encheu de tanta gente, se, no começo dele, era só um casal? Me responda, anda!” É... pensando bem, ele tinha razão. Por exemplo: numa cidade porqueira que nem esta nossa, se não fosse eu e Celeste – pra não falar de umas quatro mais, que fazem lá os seus benefícios particulares, às escondidas – como é, pergunto, que os homens se desapertavam, os viúvos se consolavam, os pelancos apendiam? Me diga.

          Despois que Sêo Cantídio leu para nós o que escrivinharam nos livros, carrego minha cabeça bem alevantada, bem nos altos. Não abaixo meu cangote pra ninguém montar nele. Celeste, hoje, é também que nem eu. Ela já foi moça-de-padre – sabe? – No Calhau, logo depois que ela saiu de casa. Os ignorantes boquejam que ela vira mula-sem-cabeça, quando chega a coresma. Vira nada! Tudo inzona das bobas, que nem á-bê-cê soletram direito. Ela morou comigo um par de anos. Nunca vi nada que condenasse minha amiga. Ela me disse, um dia, sem remorsos naquela cara bonita: “Que mal faz gostar a gente de padre, se eles são homens também que nem os outros?”

          Eu não rezo na mesma cartilha, nhor não. Tenho cá pra mim que isso não é direito, não por medo de virar mula-sem-cabeça, não. Mais, porém, porque, no mundo, tem bastante dos outros homens desimpedidos. A gente não carece usar os proibidos, né mesmo? Não condeno minha amiga porque ela gosta de esquisitar nosso ofício, isso não. O que é do gosto regala a vida, diz o vulgo, e eu acho que tá certo. Para acalmar minhas dúvidas, perguntei, uma vez, ao Doutor Minervino, o juiz de direito – quando a dona dele andou de resguardo -, se Celeste era criminosa porque apreciava aquilo. Ele se riu da indagação, e falou: “Não, Generosa, a lei não fala dessas coisas; e, quando a lei não escogita – penso que ele falou assim mesmo, es-co-gi-ta - palavra danada de difícil! – é porque o ato não é criminoso”. E o Doutor Minervino é homem sem, porém, de muita sabença. Mioludo que nem Sêo Cantídio. Fala por aí – as donas sem caridade no coração delas – que a gente é de vida fácil... Vida fácil, pois sim! Bestagem delas, pura bestagem.

          Digo e confirmo pra vosmecê: já andei nos braços de homem pobre, inté de criaturas desvalidas, de pé no chão e camisa rasgada, mais, porém, de corpo limpo. Vosmecê me pergunta se foi de graça? Nhor sim, de graça! Porque achei que era caridade que eu fazia. Abraços e boquinhas de sujeitos ricos, posudos, desses que acham que a gente, por ser uma das tais, é obrigada a aceitar qualquer um, desses fulanos sem coração, já repeli muitos.  Sem malquerença, sem agravar os cujos, tiro o corpo fora com desculpa de doenças, e o mais. Vosmecê, vê-se logo, não é desses, sei que não. Conheço vosmecê de vista, em desde que aqui chegou. Não desconheço que é doutor formado em medição de terras. A família de sua dona, conheço ela toda, porque é gente daqui mesmo. Me contaram que vosmecê não é moço de riquezas, que nem seu sogro. Cochicham por aí que vosmecê inté já cuspiu vermelho, por via de doença-do-peito. Que é que a gente não sabe nesta terra pequenina? Vosmecê vai me relevar a pergunta, que deixa a gente meio desacertada: me contaram que sua dona tem medo de tísica, e é por isso que vosmecê vive assim, desarvorado, é mesmo? Pois assunta, nêgo: bota sua cabeça, aqui, no meu ombro, estala as bicotas que quiser nos cabelos, no rosto, no meu cangote. Não! Na boca, não, por via do entojo que me dá´...”

  

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)

Nelson de Faria

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O escritor NELSON DE FARIA

Julgado pela crítica brasileira:

 

“Não conheço na moderna literatura regionalista brasileira nada melhor do que a prosa desse mineiro. As narrativas são de um escritor plenamente realizado na arte do conto, dramático, poético ou pitoresco, apresentando os “fatos” e os tipos com uma segurança e um sabor que fazem o encanto da leitura.”

RAUL LIMA       

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