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sexta-feira, 1 de junho de 2018

MENTES ANALÓGICAS - Merval Pereira


Mentes analógicas


A pouco menos de cinco meses das eleições, não há no horizonte dos candidatos uma perspectiva de solução para os nossos graves problemas. Ao contrário, candidatos e parlamentares procuram se proteger de previsíveis confrontos com a população, irritada com desgovernos sucessivos nos planos  federal, estadual, e municipal, e com os péssimos serviços que são gerados pela alta carga tributária.

Esse ambiente de revolta permanente, como definiu o cientista político Sérgio Abranches, latente desde as manifestações de 2013, gera movimentos reivindicatórios legítimos e outros meramente políticos, e sem um governo para mediar esses conflitos a instabilidade se instala.

O apoio à greve dos caminhoneiros nos primeiros momentos já vai refluindo, e os que apóiam não entendem que serão eles que pagarão a conta das mudanças negociadas por um governo fraco, que não teve condições de impor limites na ação dos grevistas.

O economista Marcos Lisboa diz que regredimos 20 anos em dois, parafraseando o infeliz mote publicitário do governo Temer, “o país voltou, 20 anos em 2”. A vírgula não impediu que o ato falho freudiano fosse compreendido pela população, um tiro que saiu pela culatra, revelando a verdadeira situação do país.

Vivemos nos últimos seis anos com governos cujos incumbentes, Dilma e Temer, dedicaram a maior parte de seus tempos a salvar a própria pele. A petista não conseguiu, foi impedida pelo Congresso. E até mesmo a aberração, com a complacência do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Ricardo Lewandowski, de fazer uma interpretação casuística da Constituição para permitir que a presidente cassada mantivesse seus direitos políticos intactos não lhe serviu de nada. Até o momento nenhuma direção regional do PT a quer como candidata ao Senado, o que demonstra que a realidade sempre se impõe aos arranjos políticos ilegítimos.

O mesmo aconteceu com seu companheiro de chapa, que se safou de duas tentativas de processos por parte da Procuradoria-Geral da República à custa de desgaste político que o transformou em mais que um pato manco, como a ciência política chama os dirigentes que não têm condições de se reeleger e permanecem no cargo como sombras de si mesmos.
  
Temer hoje é um fardo para seus antigos aliados, que o querem longe de seus palanques. A mudança radical do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, que de aliado irrestrito passou a oposicionista virulento, é exemplar desse estado de espírito oportunista.

O mais grave, porém, é que as eleições não prometem uma reversão de expectativas. A maioria dos partidos está mais preocupada em eleger uma bancada forte para se impor ao próximo presidente da República a ser eleito em outubro, seja ele qual for.

E os candidatos a candidatos abrem mão de um diagnóstico realista para tentar viabilizar suas ambições políticas, fingindo que terão condições de governar o país com uma campanha que apenas tangencie os graves problemas que terão pela frente para solucionar.

Nenhum presidente eleito terá apoio para implementar as dolorosas medidas que são necessárias para que não nos transformemos em uma nova Grécia, antes de virarmos um Portugal, sonho de consumo das classes abastadas brasileiras. Portugal, antes de virar o que é hoje, passou por graves problemas financeiros e teve que cortar na própria carne para se recuperar, coisa que nos recusamos a praticar.

 Com o avanço da tecnologia de informação e comunicação, o próximo presidente não terá o primeiro ano com a graça da população para fazer o que tem que ser feito. Terá que convencê-la a aceitar sacrifícios, que serão muito mais difíceis de serem aceitos se a campanha presidencial for feita como se estivéssemos na ilha da fantasia.
  
Até o momento, à exceção de Lula que é um fenômeno político, - o que não o absolve dos crimes que cometeu - apenas os que nada têm a dever à Justiça estão na frente: Bolsonaro, Marina e Ciro Gomes. A maioria dos candidatos, com uma ou outra exceção, tem cabeças analógicas num mundo digital.

Os que entenderam os novos mecanismos, como Bolsonaro, os utilizam para defender um programa retrógrado. Marina, a que mais se aproxima de um modelo de fazer política consentâneo com os novos tempos, não tem estrutura partidária e nem tempo de televisão, além de necessitar convencer o eleitorado de que terá capacidade para montar um governo sem apoio partidário. Ciro Gomes tenta herdar os votos do lulismo com seu estilo populista, o que não se coaduna com as necessidades do país.
  
O Globo, 30/05/2018

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Merval Pereira - Oitavo ocupante da cadeira nº 31 da ABL, eleito em 2 de junho de 2011, na sucessão de Moacyr Scliar, falecido em 27 de fevereiro de 2011, foi recebido em 23 de setembro de 2011, pelo Acadêmico Eduardo Portella.

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ANTÔNIO TORRES E SEU QUERIDO CANIBAL - Cyro de Mattos


Antonio Torres e seu Querido Canibal 
Cyro de Mattos

             Antes da chegada do branco europeu  por aqui, os nativos eram os donos desse  Brasil imenso.  Exerciam  um ritual próprio de vida, que aprenderam dos antepassados. Viviam na tribo, cercados pela natureza intacta.   Viviam em liberdade na Baía de Guanabara ou em qualquer praia do Rio de Janeiro, no século XVI, como de resto no vasto  território brasileiro. Na paisagem natural da Baía de Guanabara, as mulheres banhavam-se no rio Carioca,  preparavam uma bebida com o milho ou a mandioca,  o cauim, que a tribo apreciava.  Como os donos  da terra e das águas,  caçavam e pescavam.  Viviam em comunhão com a  natureza, daí serem vistos  no início pelo branco invasor como o modelo do bom homem em seu estado selvagem.

            Em outro momento foram observados como objeto de dupla finalidade da colonização europeia. O europeu colonizador queria tirar proveito econômico do estado selvagem do índio,  aproveitando-o como mão de obra gratuita e necessária, enquanto a catequese desejava  fazê-lo como o novo habitante do  reino cristão, libertando-o do paganismo. O índio servia assim como elemento de observação por gente que vinha de mares nunca antes navegados  e  de crítica no campo literário.

          Na sua famosa Carta de Achamento, o escrivão Pero Vaz  Caminha  inicia toda a série de crônicas e de literatura descritiva, tendo como abordagem um  Brasil nascente em estado primitivo.  Esse primeiro encontro através do  escrivão luso e os nativos   informa sobre uma gente de boa aparência, mansa e atraente  na sua pureza para a conversão.  Ao escrivão da esquadra de Pedro Álvares Cabral, seguiram-se outros cronistas tratando do assunto com  material mais amplo,    e,  entre eles, Gabriel Soares de Sousa, Pero de Magalhães Gandavo,  Pero Lopes de Sousa e Hans Staden.

          O tema do índio em  Meu querido canibal (2000), de Antonio Torres, tem novo significado  e representatividade romanesca  na  literatura brasileira. Se bem que em outro contexto, o texto que resulta deste  romancista consagrado, moderno, de técnica  modelar,  pende para o herói derrotado, e, nessa constatação, em que impera a linguagem acessível  para delinear   a crônica no espaço do descaso histórico com o drama e a   tragédia dos nativos,  mostra o índio como uma criatura  sem saída  em sua heróica atitude guerreira,  transformadora de  sua comunhão com a natureza.  Opera  como  um dos elementos de uma nova concepção de civilização, que resiste ao conquistador, mas que termina por ser exterminado.

          Em José de Alencar, as qualidades do nosso primeiro habitante são  idealizadas e executadas como compensação. Elege-se a exaltação romântica  das virtudes individuais e sociais, os sentimentos de orgulho,  lealdade,  amor à liberdade,   valentia, que o transformam no herói nacional, moldado assim com caracteres próprios, distantes das adaptações europeias.

          Com Adonias Filho, o assunto lembra até certo ponto o índio de José de Alencar no  que diz respeito ao tratamento digno que lhe é conferido, embora  as visões sobre o mesmo tema  se afastem no plano da elaboração e execução ficcionais do mundo porque nascidas em épocas diferentes, contextos distantes, ajustando-se  cada uma delas às suas peculiaridades e metas. No indianismo adoniano,   o herói trágico mostra-se na trama vinculada à selva,  na infância da região cacaueira baiana,  penetrada por forças obsessivas do destino, como elemento da ação ou que impulsiona o episódio. As determinantes coincidentes do  naturalismo situam esse herói à maneira de um percurso imutável, em que o trágico fixa suas garras de horror e infortúnio, tendo como proposta final a catarse, que chega impregnada do alívio. Ou encontra saída na ressurreição, naquela dimensão que não é desta vida.

           Em Antonio Torres,  a personalidade do índio Cunhambepe se faz conhecer através de  própria conduta marcada  no gesto primitivo, entre a naturalidade da existência e a oposição ante o invasor europeu.  Os nativos são vistos pelo autor  através de observações sensatas,  pesquisa ampla   nos estudiosos do assunto, em documentos, revistas e jornais.  A essência dessa personalidade do nativo chega de  zonas críticas,  que se vai formando nas  lembranças do rito,  rastros da desgraça,  nas vozes do embuste e da farsa histórica,  na repercussão  do som e da fúria, que, vinda do passado, está  como vestígios no presente.

          Desde a estreia em 1972,  com o romance  Um cão uivando para a Lua, o  baiano  Antônio Tores chamou a atenção da crítica e leitores do melhor ambiente  literário como um romancista  que chegava para ficar com destaque no corpo das letras brasileiras contemporâneas.  O  consagrado romancista, que nasceu no povoado do Junco, atual município de Sátiro Dias, na Bahia, no início foi jornalista  em São Paulo. Ao longo de sua carreira literária, produziu, entre outros,   os romances Os homens  dos pés redondos ( 1973), Essa Terra (1976), Balada da infância perdida ( 1986), Um táxi para Viena d’Áustria (1991),   O cachorro e o lobo (1997) e Meu querido canibal ((2000).

          Seus livros têm freqüentes reedições.  Um deles, Meu querido canibal ,  já alcança a décima segunda edição. Nestes tempos velozes da tecnologia,  apetência constante  dos  meios eletrônicos, primazia da imagem visual, em que se propala que o romance impresso tem seus dias contados, o caso de Antonio Torres desdiz  a afirmativa das posições unilaterais, precipitadas.   É o testemunho de que não é bem assim. Muda-se o suporte do livro, mas o romance impresso, de boas qualidades literárias,  visibilidade, densidade, rapidez, como quer Italo Calvino, precisão no que pretende dizer,  linguagem acessível, sem ser vulgar, conteúdo rico, imaginário esplêndido,  continua vivo.

            Em Meu querido canibal, numa sacada inteligente,  Antonio Torres reinventa-se em escritor-cronista moderno para, de peito aberto, como um neorromântico, mostrar-se indignado com a memória de um herói verdadeiro,  perdido no tempo, “mesmo tendo demarcado um território e inscrito nele a sua legenda”.   No capítulo 2, alerta que esse herói, de nome Cunhambepe, que quer dizer  homem de fala mansa, era  um guerreiro. Situado no tempo da pedra polida, viveu numa região paradisíaca batizada de Rio de Janeiro. Pertencia à nação tupinambá, que significa Filho do Pai Supremo, povo de Deus,  oriunda do grande tronco tupi-guarani.

       A leitura desse romance em que, desprovido do tom panfletário, gratuito e irresponsável,    denuncia o extermínio do índio brasileiro, eram cerca de seis milhões quando por aqui aportou o português aventureiro, ávido de riquezas, tendo como abono os jesuítas, melhor dizendo, a espada numa mão e a cruz na outra, permite, sem esforço, considerar que Cunhambepe é o primeiro herói de um país cujos rastros terríveis vieram das pegadas truculentas de aventureiros,  degredados, traficantes, corsários,  contrabandistas e corruptos.

     Fácil perceber que a história de Cunhambepe não é do edênico bom selvagem, dono das selvas e das águas,  dos sonhos advindos da natureza em estado puro, vivendo nu como quando se vem ao mundo, na era da pedra lascada,  contemplando-a e tentando adivinhá-la nos seus profundos e assombrosos  mistérios.  Não é a do herói dos brancos e traidor dos índios. É a de quem estava do lado de seu povo, levando-o a lutar  até o último gemido, porque era melhor sucumbir  do que ser submisso ao invasor escravagista. Nisso residia o sentido de quem estava numa guerra estupidamente desigual, entre o canhão avassalador do branco europeu e  a flecha banida  da taba para rolar na mancha das  águas, que  envergonha.

         Com sua biografia restrita a referências mínimas,  sua história reduzida a poucas linhas, mesmo assim entregue ao sabor das traças,  esse querido canibal herói encontra em Antonio Torres uma reconstituição brava e eficaz  resultante da motivação digna do imaginário e da transpiração eficiente na escrita comprometida com  a verdade. Colhida e corrigida  esta em estudiosos do assunto, tantas vezes equivocados, quando dotados    de preconceito e superficialidade   omitem  a figura nativa na galeria dos heróis autênticos da história desse país, porque   em   conluio com  o embuste no tratamento oficial do tema.

         Adorável canibal, esse guerreiro, herói verdadeiro,  encontrado por Antonio Torres para o bem da literatura brasileira,  retirado da nebulosa de nossa história com   traços firmes na escrita ágil e atraente. 
      
 REFERÊNCIAS

TORRES, Antônio. Meu querido canibal, Editora Record, Rio, 2016.
ALMEIDA, José Maurício de. A tradição regionalista no romance brasileiro. Editora Achiamé, Rio de janeiro, 1981.
CÂNDIDO, Antonio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Livraria Martins Editora, 1964, segundo volume.
MATTOS, Cyro de. As criações de Adonias Filho, Publicações da Academia Brasileira de Letras, Rio, 2017.
SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira.  José Olympio Editora, Rio,  1960.

*Cyro de Mattos é contista, poeta, cronista, ensaísta, romancista, organizador de antologia,  autor de livros para crianças e jovens. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia.  Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Tem livro publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha e Dinamarca. Conquistou o Prêmio Internacional de Literatura Maestrale Marengo d’Oro, em Gênova, Itália, o  Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras,   Associação Paulista de Críticos de Arte com “O Menino Camelô”, infantil,  e o Prêmio Nacional Pen Clube do Brasil com o romance “Os Ventos Gemedores.

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