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quinta-feira, 12 de abril de 2018

O DERRETIMENTO DE UM LÍDER POLÍTICO - Jairo José da Silva



Terminado o discurso de Lula não mais olhei pra TV, fui ao concerto, jantar com amigos, pensar em outras coisas. Levei 12 horas pra digerir o que vi.

Que espetáculo! Nem Fellini poderia ter dirigido aquilo! Esses dois dias passarão para a História, não tenham dúvidas.

Vimos hoje, em cima daquele caminhão, o derretimento de um líder político em repulsivo strip-tease moral, uma viagem alucinante ao passado, uma epifania de verdades sob véus de mentiras.

Um homem que ocupou o proscênio da política brasileira por quase quatro décadas, que presidiu o país por oito anos, reduzido ao seu eu mais profundo, um agitador barato de porta de fábrica, um líder estudantil senil, um agente provocador. Discursando embebido de cachaça e ódio, sedento de vingança, conclamando arruaceiros a queimar pneus, invadir propriedades, atacar adversários, num paroxismo autolaudatório de mitomania.

O homem que ocupou a mais alta magistratura na Nação atacando a imprensa e o judiciário como um vulgar porralouca, desrespeitando instituições da democracia que jurou respeitar e defender.

Todo o espetáculo oscilou entre o patético e o ridículo. Uma fauna incrível de puxa-sacos e ratos brigando pelo espólio enfeitada com padres paramentados. Tinha até um bispo. Se eu não tivesse visto não acreditaria. Uma paródia de missa em pretensa homenagem a uma morta, mas toda dedicada ao endeusamento de um muito vivo que mostrava seu sentimento religioso mamando cachaça de uma garrafinha de água (que tentavam tirar da mão dele antes que fosse muito tarde).

Sabendo que aquele era o seu ocaso, poderia ter tido um gesto de grandeza, ter ensaiado sua entrada na História de modo mais digno, mas preferiu mandar trazer cerveja e carvão para o churrasco. Inacreditável!

Lula foi um talento político como poucos, um homem de evidente inteligência prática, mas infelizmente completamente desprovido de princípios éticos. Ele nunca se deu conta de que foi uma marionete nas mãos de oligarquias corruptoras e arcaicas estruturas políticas que o manipularam como quiseram às custas de agrados, mimos, presentes, adulação.

Aliou desonestidade pessoal com a já consagrada desonestidade intelectual e moral das esquerdas. Roubar o Estado lhe parecia uma justa estratégia política, ainda que tivesse que entregá-lo a tubarões exploradores, desde que também pudesse usufruir pessoalmente de algumas migalhas desse banquete de ratos.

Lula terminou sua carreira como começou, como um líder sindicalista. Mas se aquele homem jovem dos anos 80 trazia consigo uma promessa de renovação, o velho fauno de hoje é só uma paródia de si mesmo.

Esse Lula de hoje é o mesmo Lula dos anos 80 e 90, o verdadeiro. O Lulinha paz e amor dos anos 00 e 10 foi uma invenção de Marcelo Odebrecht, que inclusive redigiu o infame Manifesto à Nação que tornou Lula palatável às classes médias. Lula Odebrecht acabou, sobrou um saco vazio recolhido a uma cela.

Lula foi preso e o país não parou, não houve comoção popular, não houve choro e ranger de dentes - o povo preferiu ir aos estádios de futebol - e na frente do sindicato só havia os mesmos fanáticos de sempre.

A montanha pariu um rato.


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OS ESTILHAÇOS DA REALIDADE - Antonio Carlos Secchin


Os estilhaços da realidade


Na capa de Exílio, de Lucas Guimaraens, uma imagem negra se adensa, depois se esvazia, até se configurar em pigmentos estilhaçados. Que melhor representação para o exílio, senão o estilhaço? Pontos nômades, sem centro, submersos no "lago das incertezas", subtítulo deste que é o terceiro livro de poemas do autor.

As 68 páginas do volume são atravessadas pela presença icônica de algumas linhas que menos costuram do que desfazem os nós de uma aventura na linguagem, espraiada em cinco seções que mesclam prosas e poemas. Pena que o volume, de 68 páginas, abertas por epígrafe de Silviano Santigo, e seguidas por arguto ensaio de Edmilson Pereira, não comporte sumário, para que o leitor se informe das etapas que o esperam nesse périplo: "das asas", "ponto", "histórias reais de um carnaval imaginário", "festival" e "do risoto ao Mar Morto".

Tais títulos já indiciam a resoluta opção por trilhas refratárias a compromissos "realistas", confessionais, em prol de uma elocução que investe na espessura da linguagem. A dicção de Lucas deseja-se intensamente poética, ainda que às expensas de maior grau de comunicabilidade. Daí, em algumas peças, a constituição de um mundo imerso no onírico ("se aros de bicicletas rangessem olhos"), em que as palavras, em vez de "explicar" a realidade, terminam por cifrá-la.

Num poema do livro de estreia. Onde (2011), declara Lucas: "poesia é alumbramento/... /é condensação de vertigens". Na segunda obra, 33,333-conexões bilaterais (2015), esmerada produção gráfica numa parceria com as imagens de Fernando Pacheco, o poeta permanece fiel a esse ideário, na busca de "palavras que trepam delírios". E em Exílio, não sem alguma ironia, declara: "você operária do verso coloquial/ permanecerei na órbita lunar/ .../ lerei seus posts ao contrário/ quem sabe me apaixono por você". Poeta lunar, na trilha de seu bisavô Alphonsus? Não exatamente, porque, se Alphonsus celebrava a luz da Lua refletida na Terra, Lucas prefere não aterrissar no planeta pedestre e "coloquial", optando por encetar viagens verbais que o lancem aos "brilhos das estrelas", território livre em que "feridas e sonhos remanejam o invisível".

Uma atmosfera sombria marca a primeira seção da obra. Em "das asas", tanto na prosa do texto inicial quanto nos versos da grande maioria das nove peças subsequentes o desencontro é a tônica, conforme se lê na forte imagem que arremata o poema "exílio": "corrimão de incertezas sob os dedos da saudade". A abertura em prosa, seguida de poemas, é, aliás, um procedimento que se reitera em todas as seções do livro. Um curioso mix de realidade e delírio perpassa os blocos quatro e cinco, em que textos inicialmente "referenciais" - um festival de poesia de que Lucas efetivamente participou, na Turquia, uma viagem à Europa e a Israel - sofrem gradativas interferências e estranhamentos, a ponto de desnortear as balizas de causa e efeito que o leitor, eventualmente, estivesse tentando erguer. Em Lucas, o real surge em fragmentos, e o resultado remete a um conjunto de peças díspares que não propiciam a tranquilidade apaziguadora de um espelho, mas, ao contrário, atiçam a percepção do desencaixe das coisas, afirmando que nada é exatamente o que supomos que seja. Mundo em contínuo deslizamento, espaço de fraturas expostas pelo verbo, eis a fabulação de uma poesia que não nos acalenta, mas provoca e desafia. Contra o bom senso e a previsibilidade, este "exílio", decididamente, nos faz mergulhar no "lago das incertezas".

Estado de Minas, 06/04/2018

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Antonio Carlos Secchin - Sétimo ocupante da Cadeira nº 19 da ABL, eleito em 3 de junho de 2004, na sucessão de Marcos Almir Madeira e recebido em 6 de agosto de 2004 pelo acadêmico Ivan Junqueira.

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