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quarta-feira, 12 de agosto de 2020

A DESCONHECIDA – Mariano Latorre

 

           O montanhês, um homenzarrão talhado a fio de machado em velhas madeiras indígenas, desembaraça sua carreta serrana, sem responder a pergunta que lhe acaba de dirigir o rapaz de pé perto dele. É um rapaz franzino, em seu rosto magro existe algo de gasto. Seus dedos sujos, se retorcem. Por certo ele teme que o carreiro se vá sem lhe responder a pergunta na qual se aferra todo o seu ser. Então repete com voz trêmula:

            - Que me diz, senhor? Leva-me até Recinto. Peço-lhe por tudo que o senhor mais queira...

            O carreiro responde com ar de troça...

            - É muito pequena a carreta, senhor. Ademais, os bois não comeram nesta caldeira.

            O moço torna à carga. Sua voz agora tem o tom humilde e pedichão dos mendigos.

            - Senhor, não posso dar-lhe mais de dez pesos... Perdi tudo... Nada mais tenho.

            O carreiro mostra o quadrilátero minúsculo de sua carreta:

            - Não vê que é pequena? E vai também a senhora... O senhor não cabe...

            O jovem olha para o semicírculo escuro onde nada vê. Com uma voz débil faz ainda uma última tentativa.

            - Posso ir com o senhor na frente?

            O carreiro sorri compassivo

            - No varal apenas eu me sento...

            E generoso acrescenta, como esmola, um conselho:

            - Amanhã a carreta do Bustamonte segue para Veguilhas, é maior que esta.

            O rapaz responde já convicto: 

            - Obrigado, muito obrigado.

            Uma voz de mulher, de aspereza masculina, entretanto ordena de dentro:

            - Labrego, diz ao cavalheiro que pode ir na carreta.

            Indeciso o viandante aproximou-se da parte posterior:

            - Senhora, se o permite?

            Do interior da carreta veio um murmúrio inarticulado que devia ser de aquiescência. Teve de estender-se ao comprido e estirar-se com cuidado para não molestar a companheira. Não havia folga possível porque a mulher que ia a seu lado era corpulenta. Por sorte, um macio colchão de campo cobria a cama da carreta e sua cabeça descansou em uma almofada comum como em um leito conjugal. Todavia, como uma esposa ofendida, a mulher dera-lhe as costas e ele só via a curva escura de seus quadris e o ângulo de seu ombro. O calor era asfixiante. O rapaz cerrou os olhos. Quem era essa companhia? Será uma doente contagiosa que se oculta para não se envergonhar? Por que não lhe dirige a palavra? É talvez uma aldeã que só se banha por indicação médica... De súbito sentiu mover-se inquieta.

Os estremecimentos de seu corpo eram tão visíveis que no fundo do seu ser ouviu também essa voz ancestral que desperta e ruge sempre que um homem e uma mulher estão próximos um do outro. Em seguida, sentiu um odor de pele limpa que transpira; isto o exasperou até o intraduzível; a mulher, nos movimentos involuntários do sono, se aproximara mais para o seu lado, e parte de seus músculos colavam ao seu joelho e ao seu corpo. O carreteiro, lá fora, cantava:

            Um fazendeiro tinha

            boi de muitas cores...

            malhados e pintados...

            Algo de imprevisto fez com que o rapaz não mais ouvisse a voz do condutor. O corpo da mulher que dormitava ao seu lado, ia-se aproximando paulatinamente do seu. Não era em absoluto, agora o percebia exatamente, a pressão sem malícia de um corpo na inconsciência do sono; sentiu depois, próximo, um cálido alento, abrasador; e uns lábios que buscavam os seus, com essa cegueira que só a morte e a vida dão aos movimentos dos homens.

            E naquela carreta que rodava pela montanha o mundo se deteve um minuto em seu eterno rodar pelos espaços, sobre os lábios de dois seres desconhecidos até então.

            - Quem será esta mulher?

            Cansado, adormeceu.

            Violento solavanco o fez despertar em sobressalto.

            - Levanta, patrão, que já estamos em Recinto, falou o carreiro com voz rouca.

            - Aqui estão os dez pesos.

            O homem ia estender a mão para receber, mas a voz da mulher pronunciou um não imperativo cortando-lhe em seco o gesto.

            A um grito do carreiro, a carreta escorregou silenciosamente sobre a terra vermelha e porosa do caminho. A sua silhueta perdia-se na penumbra do amanhecer. Na memória do jovem ficava apenas o fogo de uma boca ávida sobre seus lábios e a ponta disforme de um sapato de aldeã.

            Esperou ainda que uma mão aparecesse, ao longe, em romântico gesto de adeus. Mas não se notou nenhum movimento. O rapaz dirigiu-se para a estação.

 

(CONTOS DE ALCOVA – Dezembro de 1963)

Compilados por Yves Idílio

 

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MARIANO LATORRE 

          Mariano Latorre é por excelência o estilista da paisagem chilena. Seus livros encerram, por ciclos sucessivos, as regiões e as cidades do Chile, sua pátria.

          Iniciador da prosa “criolista”, mestre do conto descritivo sul-americano, Latorre nos dá nesta sua “A DESCONHECIDA”, uma pequena “vernissage” do seu poder de “conteur” que bem merece uma maior e larga difusão entre os povos de língua latina.

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Mariano Latorre 

(Cobquecura, 1886 - Santiago, 1955) Romancista chileno, principal representante junto com Marta Brunet da corrente crioula no Chile. Mariano Latorre deixou os estudos de direito pela pedagogia e tornou-se professor de espanhol. Posteriormente, deu aulas de literatura na Universidade do Chile, combinando seu trabalho docente com a atividade literária, na qual, além de conceber suas próprias criações, foi frequentemente solicitado a prefaciar obras de outros autores e colaborar em revistas e jornais.

Por trinta anos ele viajou por todo o Chile, documentando-se sobre costumes, paisagens, flora, fauna, vestimenta, entonações de fala, etc. Seu trabalho bebia da observação direta da natureza, um meio que ele conhecia de suas contínuas excursões ao campo. Isso lhe permitiu desenvolver uma literatura que se destacasse por uma presença explícita do naturalismo e do costumbrismo, como já se apreciava em seu primeiro título, Cuentos del Maule (1912), um livro de contos em que o crioulo que prevaleceu ao longo de sua história começou a se definir. Produção.

Outros títulos do mesmo gênero são Cuna de condores (1918), Chilenos del mar (1929), On Panta (1935), Hombres y zorros (1937) e La isla de los rosas (1955). Dentre suas novelas, destaca-se Zurzulita (1920), em que o protagonista é a Cordilheira dos Andes, por onde desfilam uma série de personagens, como camponeses, pobres e marginalizados, vítimas dos poderosos elementos da natureza. Outros romances seus são Ully (1923) e La paquera (póstumo, 1958).

Em 1971 foram publicados seus ensaios, reunidos sob o título de Memórias e Outras Confidências . Em 1944, pelos seus méritos, laboriosidade e grande contribuição para o conhecimento dos costumes, da língua e do quadro patriótico natural, foi galardoado com o Prémio Nacional de Literatura. Um ano depois, foi nomeado acadêmico da Faculdade de Filosofia e Educação da Universidade do Chile. No campo da diplomacia, Mariano Latorre foi adido cultural na Espanha, Argentina, Colômbia e Bolívia.

https://www.biografiasyvidas.com/biografia/l/latorre.htm

 

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