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terça-feira, 28 de julho de 2020

CANTIGA GRAPIÚNA, por Jorge Amado


Cantiga Grapiúna

Jorge Amado*

 

Os poemas reunidos em Cantiga Grapiúna**, de Cyro de Mattos, referem-se ao campo e às cidades da região do cacau, no sul da Bahia. Canto de filho amantíssimo, cuja voz se ergue no alto louvor dos pioneiros, “homens domando os ventos”, da mata, “corpo de medo”, das fazendas, “entre o nascer dos verdes e cair dos maduros”, no louvor de todos os elementos desse chão tão rico e de história tão dramática.

Com profunda emoção, Cyro de Mattos canta a cidade de Ilhéus no seu centenário, no magnífico “Poemazul para Ilhéus”, “repetida de azul a cidade anoitece...” Não menos belo é o  poema “Itabunamada”, dedicado à cidade de Itabuna, “minha cidade de metal”, como fala o poeta.

 Cantiga Grapiúna, pequeno grande livro de poemas, do conhecido ficcionista Cyro de Mattos, detentor de vários prêmios brasileiros importantes, é canto construído de ternura e solidariedade. Canto de amor de um escritor que carrega dentro de si, para transformar em literatura, a epopeia e o mistério da terra grapiúna.

 

*Jorge Amado, romancista, in “Dois Livros de Cyro de Mattos”, Revista FESPI, janeiro-dezembro 1983, Ilhéus, Bahia.

**Cantiga Grapiúna, Cyro de Mattos, Edições GRD, capa de Renard, Rio de Janeiro, 1981.


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UM BURGO DE PENETRAÇÃO – Adonias Filho


               Um Burgo de Penetração
Adonias Filho

            Perguntaram-me sobre Itabuna e o que disse me pareceu justo e certo. Itabuna – disse como numa crônica - é uma ilha porque rodovias a cercam por todos os lados. Todos os lados, eu disse. Menos um, que é o lado do Cachoeira, o rio. Lugar que não parou de crescer, no chão baiano do cacau, desde que Severino do Amor Divino, no começo do século passado, abriu o arruado no ventre da selva. E, se em vila não tardou a se tornar, em 1910 já era cidade de tanta fama que servia comércio aos grapiúnas que venciam as matas a fogo e a machado.

            Um burgo de penetração, pois, que nasceu como centro de entradas. E no qual não faltaram, com a graça de Deus, índios camacãs e pataxós da valente raça aimoré. Burgo velho que hoje é cidade grande, de município grande, numa terra grande.

            Não muito longe da praia, precisamente a trinta quilômetros de Ilhéus – onde o Cachoeira, sem barulho e em paz, desemboca nos mares do Atlântico – em Itabuna ainda se pisa areia e no ar se guarda um pouco de maresia. Mas, assim tão perto do oceano, seu povo buscando Olivença que foi vila de fundação indígena bem no começo do século XVIII, e buscando Olivença para os banhos de mar e pesca, de Itabuna se pode dizer que, quando não uma cidade do agreste, pelo menos a porta litorânea para os sertões.

            E por isso mesmo, porque caminho obrigatório dos brabos que chegaram para a conquista da selva e o plantio do cacau – sergipanos, alemães, sírios, polacos – tem folclore particular e tão cheio de heróis, e aventuras e guerras que até parece ter vindo do tempo medieval. Uma região só, naqueles idos. E quando se separou de Ilhéus, virando capital do município com autonomia de padre e juiz, também a sua saga adquiriu independência de cultura e geografia. A selvagem saga do cacau, porém, com muitos daqueles brabos tendo os nomes nas ruas, essa violenta saga parece de séculos frente à cidade moderna que é Itabuna.

            É preciso ver Itabuna hoje, em plena trepidação, para que se saiba como vive uma cidade em plena expansão econômica. A base municipal, com reflexo imediato no comércio, concentra o pequeno mundo rural do interior – outras cidades, os distritos, os arruados e as fazendas – em torno do que é de fato um enorme centro regional. Tudo o que se produz tem aí efetivamente o seu mercado.

          E o que se produz – coco ou piaçava, dendê ou mandioca, principalmente acima de tudo o cacau – mas vem da boa terra o que se produz. E, como é muito o que se produz, parte de tamanha riqueza ao povo se devolve em educação. A rede escolar de tal modo se expandiu nos dois graus de ensino que, somada com a de Ilhéus, exigiu mesmo uma Universidade. Perto, nos limites dos dois municípios, fica essa Universidade, a Universidade de Santa Cruz.

            Tudo isso, pois, é Itabuna.

            E, se a primeira impressão é de muito trabalho, a última percepção é a de que apenas esse trabalho explica a dimensão da cidade. Uma cidade de tamanha vida, em verdade, que, já ultrapassando o velho rio Cachoeira e as rodovias que a cercam, vence a ilha. E a vence, como qualquer um pode observar, para ganhar espaços.

            Mas, apesar dos novos espaços conquistados, canteiros de obras e parques ocupando-os para a indústria e mais trabalho, Itabuna não permite que a urbanização a derrote contra a natureza. O cacau, aliás, de tal maneira é uma agricultura permanente ajustada à natureza – e não depredadora como o café ou o pastoreio desorientado – que a envolve como um manto protetor. O que há de fato é um exemplo de como a urbanização pode se expandir sem violentar a melhor vivência rural.

            E, porque foi o que disse quando me perguntaram sobre Itabuna, o que disse me pareceu justo e certo.


   (CRÔNICA AVULSA)
Adonias Filho
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FONTE: ITABUNA, CHÃO DE MINHAS RAÍZES - Cyro de Mattos
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Adonias Filho - Quinto ocupante da Cadeira 21 da ABL, eleito em 14 de janeiro de 1965, na sucessão de Álvaro Moreyra e recebido em 28 de abril de 1965 pelo Acadêmico Jorge Amado. Recebeu a Acadêmica Rachel de Queiroz e os Acadêmicos Otávio de Faria, Joracy Camargo e Mauro Mota.

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FERNANDO RIELA: UM MITO NA PONTA-ESQUERDA – Cyro de Mattos


Fernando Riela: um mito na ponta-esquerda
                                        Cyro de Mattos

           
             Divorciado, pai de três filhas, o ponta-esquerda Fernando Riela tornou-se um mito na história do futebol amador de Itabuna. Foi disparado o melhor ponta-esquerda que jogou no Campo da Desportiva. Para muitos que conheciam o futebol do Rio e de São Paulo, com seus grandes times, Fernando Riela foi o melhor ponta-esquerda do futebol brasileiro. Pode a afirmação soar como exagero, mas é que naquela época os meios de comunicação eram outros, sem as condições de hoje, não havia televisão, os jornais como O Globo e Estado de São Paulo, bem como A Tarde, de Salvador, não chegavam a Itabuna. As rádios da capital não eram ouvidas também na cidade. Escutava-se apenas a rádio Nacional, do Rio, um pouco a Tupi e Tamoio.

            Essa ausência de comunicação, entre uma cidade do interior da Bahia e os centros mais desenvolvidos do país, fazia com que vários craques do futebol de Itabuna fossem desconhecidos pela imprensa do Rio de Janeiro, São Paulo e até certo ponto de Salvador. Se fosse hoje, tempos de globalização do planeta, não há dúvida que Fernando Riela estaria vestindo a camisa de um grande clube do Brasil e até mesmo da Europa. Futebol de craque aquele inesquecível ponta-esquerda tinha de sobra para isso. É sempre lembrado com admiração e carinho pelos companheiros de geração e torcedores.

            Começou muito cedo, aos 14 anos de idade já jogava no time principal do Fluminense. Jogou também  no Flamengo, mas ao retornar para o Fluminense, de onde nunca mais saiu, sagrou-se campeão em várias temporadas, inclusive invicto em 1960. Para Fernando Riela, o melhor jogador de seu tempo foi Santinho. Um jogador completo. Tombinha, Carlos Riela, Santinho e o goleiro Luís Carlos, qualquer um deles poderia fazer carreira no futebol profissional de hoje, em grandes clubes do Rio ou São Paulo, se tivesse sorte, observou o craque. Fernando contou que Santinho, muito mais do que um amigo, era um de seus ídolos. “Foi ele que me ensinou muita coisa, inclusive a ser uma pessoa correta dentro e fora do campo.” Foi também a Santinho que o pai de Fernando confiou quando ele passou a jogar pelo Fluminense, em sua primeira partida, em Ipiaú, aos 14 anos de idade.

            O time amador daquele tempo treinava na semana, com um programa que devia ser seguido rigorosamente. Mas sempre tinha um ou outro jogador que não se interessava em seguir as regras para que tivesse bom desempenho no campo. Uma coisa era certa, ninguém bebia na semana que ia ter no jogo de domingo. O próprio Fernando contou que ele mesmo só experimentou cerveja pela primeira vez aos 18 anos de idade. “Um exemplo que o atleta de hoje deveria seguir”, declarou, acrescentando que essa disciplina que o jogador mantinha contribuiu para que a seleção do Itabuna fosse campeã do Intermunicipal por seis anos consecutivos.

           Ficou comovido quando se lembrou da seleção de Itabuna e dos bons tempos do futebol amador. Com jogadores como Francisquinho, Zé Maria, Nininho, Santinho e o goleiro Carlito, homens de ouro de um futebol igualmente brilhante, nos anos de 1957 e 1958. Houve um período em que o campeonato amador ficou parado no Campo da Desportiva. Fortes chuvas cortadas por relâmpagos e trovoadas causaram grandes danos no estádio. Derrubaram a parte da arquibancada, o muro e fizeram do campo um grosso lamaçal.

           Durante anos, a cidade ia ficando com ares sombrios pela tarde, sem os jogos de futebol que aconteciam aos domingos no velho Campo da Desportiva. Até que o empresário  Veloso e o pecuarista Rebouças decidiram recuperar o Campo da Desportiva, contando com a ajuda de alguns desportistas, comerciantes e fazendeiros de cacau. A velha Desportiva voltou a funcionar como o palco de grandes partidas de futebol pelo campeonato amador. Para soerguer o interesse pelo futebol, times do Rio eram contratados para jogar na Desportiva contra o Bahia de Salvador. Numa dessas partidas amistosas, o Bahia venceu de dois a um o Flamengo. Veio primeiro o Fluminense, depois o Flamengo,  América,  Bangu,  Vasco e  Botafogo.

            Fernando criticou a construção do Centro de Cultura Adonias Filho no terreno onde existia o Campo da Desportiva. A ideia do prefeito Ubaldo Dantas foi boa quando quis dotar a cidade de um centro cultural, mas que deveria ser construído em outro lugar. E o pior de tudo foi que prometeu construir um novo estádio para times amadores e nunca isso aconteceu.  Fernando ressaltou que o América, um time tradicional de Minas Gerais, tem um estádio no centro de Belo Horizonte, um pouco maior do que era a Desportiva, mas nem por isso foi demolido para dar lugar a um prédio com finalidade cultural ou pública. Continuava até hoje no mesmo lugar, servindo para jogos do campeonato juvenil mineiro, sendo preservado como patrimônio esportivo da cidade.

           Em sua época, Itabuna contava com mais de dez campos de várzea. Ele citou, entre eles,  os campos no bairro Banco Raso, Fátima, Fuminho, Borboleta, o de Melquiades e o da Rua de Palha, no distrito de Ferradas. Tinha campo até no cemitério. A garotada fazia suas peladas nos terrenos baldios espalhados pela cidade, na beira do rio e na praça Camacã, antes que se tornasse um jardim com o nome de Otávio Mangabeira. Nessa época, as cidades de Ibicaraí, Buerarema, Camacã, Coaraci, Uruçuca e Itajuípe não tinham o campeonato local. Ubaitaba, Ilhéus e Itabuna eram as praças esportivas onde se praticava o futebol amador mais animado da região cacaueira. Os jogadores que se revelavam como bons naquelas cidades circunvizinhas sonhavam jogar um dia no futebol de Itabuna.

            Fernando também foi um dos fundadores do time profissional do Itabuna. Ele contou que, quando a Federação Baiana de Futebol acabou com o Intermunicipal para descentralizar o campeonato profissional, realizado somente com times de Salvador, o futebol amador ficou meio sem graça. Perdeu o brilho e o espírito competitivo entre os clubes da cidade. Ilhéus decidiu participar do campeonato baiano de futebol profissional com três clubes: Flamengo, Colo-Colo e Vitória. Foi aí que um grupo de desportistas locais reuniu-se na Cooperativa Rural e fundou o Itabuna Esporte Clube como um time profissional,  aproveitando a maioria dos jogadores da seleção amadora.

            Ele participou desse grupo de fundadores, que teve o pecuarista Zelito Fontes como uma figura importante para que a iniciativa se tornasse realidade. Esse dirigente de futebol deu três mil cruzeiros para cobrir as despesas da inscrição do time na federação baiana, em Salvador. Nove amadores da seleção amadora de Itabuna foram jogar no Itabuna profissional A primeira partida foi contra o São Cristóvão, vencida por um a zero. A segunda lotou o Campo da Desportiva. O Itabuna empatou de dois a dois com o Galícia. A renda alcançou doze mil cruzeiros, uma enorme soma de dinheiro na época.

            Muitas pessoas passam na vida e deixam boas lembranças nos outros, que jamais se apagam. Algumas dessas pessoas permanecem em cada um de nós pela sua humildade ou dedicação ao que fazem. Como esquecer Arnaldo, o roupeiro da seleção; Alfredo, o enfermeiro, Gil Néri, o técnico, o médico John Leahy e Gerson Souza, o Marechal da Vitória? – ele perguntou e ficou sem saber como responder sobre a razão de que tudo na vida é uma passagem sem retorno.

             Ele, o craque inesquecível do futebol amador sul baiano, com suas investidas fulminantes, dribles rápidos e desconcertantes, deixou-nos e sua querida Itabuna no último dia 22, quarta-feira, e foi jogar futebol nos campos do eterno. Quem o viu jogar, sente-se um torcedor privilegiado, nunca é demais lembrar.


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Cyro de Mattos, escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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