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sexta-feira, 7 de abril de 2017

O VASO RACHADO

O vaso rachado


Uma velha chinesa tinha dois grandes vasos, cada um suspenso na extremidade de uma vara que ela carregava nas costas.

Um dos vasos era rachado e outro era perfeito. Todos os dias ela ia ao rio buscar água, e ao fim da longa caminhada do rio até a casa o vaso perfeito chegava sempre cheio de água, enquanto o vaso rachado chegava meio vazio. Naturalmente o vaso perfeito tinha muito orgulho do seu próprio resultado e o pobre vaso rachado tinha vergonha do seu defeito, de conseguir só fazer a metade daquilo que deveria fazer.

Ao fim de dois anos, refletindo sobre sua própria amarga derrota de ser rachado, durante o caminho para o rio o vaso rachado disse à velha:
 - Tenho vergonha de mim mesmo, porque esta rachadura que tenho faz-me perder metade da água até a sua casa...

A velha sorriu:
-  Reparaste que lindas flores há ao teu lado do caminho, somente no teu lado? 

Eu sempre soube do teu defeito e portanto plantei sementes de flores na beira da estrada do teu lado. Todos os dias, enquanto voltávamos do rio, tu as regava.

Foi assim durante dois anos, pude apanhar belas flores para enfeitar a mesa e alegrar o meu jantar. Se tu não fosses como és, não teria tido aquelas maravilhas na minha casa.

Cada um de nós tem seu próprio defeito, mas é o defeito que cada um de nós tem, que faz com que nossa convivência seja interessante e gratificante. É preciso aceitar cada um pelo que é, e descobrir o que há de bom nele!

Ame as pessoas com seus defeitos...

AME apenas AME!


(Autor não mencionado)

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Enviado do meu smartphone Samsung Galaxy.

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QUERO COLOCAR MEU TIJOLO - João Baptista Herkenhoff

Quero colocar meu tijolo 


           Cada pessoa é destinada a colocar um tijolo na construção do mundo. A vocação é essencial em qualquer atividade.

Etimologicamentre, vocação vem de chamar, invocar. Pelo caminho da Etimologia veremos na vocação um chamado.
           
Pode parecer, à primeira vista, que determinadas profissões não exigem vocação, ou seja, podem ser desempenhadas por qualquer pessoa, indiferentemente.

            Não concordo que determinados ofícios sejam excluídos do rol dos que exigem vocação. Vou dar um exemplo muito simples, porém expressivo.

            Observemos a conduta de coveiros no ato de sepultar seres humanos. Chama nossa atenção algumas vezes o ar circunspecto, de profunda interiorização espiritual, revelado na face daquele ser humano que coloca na sepultura o corpo de outro ser humano. Coveiros que testemunham no semblante a importância do que fazem, que emprestam ritual na maneira como realizam sua tarefa têm vocação para o ato de conduzir alguém a sua última morada.

            É relevante o trabalho dos coveiros.

            Imaginemos o transtorno social que uma greve de coveiros causaria. Aliás, uma suposta greve de coveiros foi o tema de um conto premiado do escritor paulista Hildebrando Pafundi. Nesse conto, a greve não ocorreu porque o fim do movimento foi decretado antes de sua deflagração, justo na véspera do dia em que, na pequena cidade onde transcorre o enredo, faleceram cinco pessoas.

            Como muito bem colocou Ingrid Dalila Engel, “Quando o nosso projeto de vida é traçado, um dos pontos mais significativos é a escolha da área profissional.”

            As dificuldades enfrentadas pelos jovens na escolha de uma profissão decorrem, em grande parte, das incertezas do próprio mundo contemporâneo.

            Como bem colocou Sílvia Regina Rocha Brandão:
“A sociedade contemporânea revela muita insegurança e incerteza quanto a valores: não há pontos de referência estáveis. Isto torna muito difícil para o homem atual identificar o que vale a pena.”

            Assentado que toda profissão requer vocação, o que é a vocação na magistratura?

            A vocação na magistratura é alimentada por uma paixão.

            Ser juiz não é realizar um trabalho burocrático que se resumiria em comparecer ao forum, cumprir um expediente, realizar audiências, voltar para casa levando quase todo dia processos para decidir e, no fim do mês, receber um salário razoável, ou até mesmo um salário que pode ser considerado bom, principalmente em cotejo com os rendimentos da maioria das pessoas, mesmo aquelas portadoras de curso superior.

            Ser juiz é muito mais que isto.

            Vejo o juiz como alguém cujo papel é estar a serviço. Que não ocupe apenas um cargo, mas desempenhe uma missão. Sem prerrogativas e vantagens pessoais.

            Boas leis são importantes para que o país progrida e o povo seja feliz.

            A lei como instrumento de limitação do poder é um avanço da cultura humana.

            Mas da nada valem boas leis nas mãos de maus juízes.

            A tábua de valores de uma sociedade não está apenas na lei.  Está bem mais que isso na substância moral dos aplicadores da lei.

            Como ponderou Lucas Naif Caluri:
 “Vários são os requisitos éticos exigidos dos magistrados, dentre os quais podemos citar: a imparcialidade, a probidade, a isenção, a independência, a vocação, a responsabilidade, a moderação, a coragem, a humildade, dentre outros.”

            Há um elenco de profissões nas quais prepondera o humanismo como horizonte inspirador.

            Se em todas as profissões deve haver traço humano, em algumas profissões o traço humano deve ser a estrela-guia.

            Incluo a Magistratura, ao lado da Medicina, como tarefa na qual o Humanismo é condição sine qua non do exercício profissional.

            Se o Humanismo deve ser o norte a guiar o magistrado, o princípio da dignidade humana deve ser a referência fundamental a orientar os julgamentos. Não há Direito, mas negação do Direito, fora do reconhecimento universal e sem restrições do princípio da dignidade da pessoa humana.

            Somente a Constituição Federal de 1988 abrigou expressamente, no seu texto, o princípio da dignidade da pessoa humana (inciso 3 do artigo primeiro).

            Mas ainda que a Constituição não explicitasse esse princípio, ele teria de ser afirmado, especialmente pelos juízes, porque o princípio da dignidade da pessoa humana está acima da Constituição e das leis. Integra aquele elenco de valores que a doutrina chama de metajurídicos.

            Acho que o zelo pela dignidade humana é a tarefa que melhor singulariza a vocação do magistrado.

            Recuso a fria denominação de partes para denominar as pessoas que buscam a prestação jurisdicional.

            Aqueles que comparecem em Juízo pedindo Justiça não são partes, são pessoas, e como pessoas devem ser compreendidas e ouvidas.

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João Baptista Herkenhoff: Mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. Livre-Docente da Universidade Federal do Espírito Santo. Pós-doutoramentos na Universidade de Wisconsin, Estados Unidos da América, e na Universidade de Rouen, França. Professor do Mestrado em Direito da Universidade Federal do Espírito Santo. Membro da Associação Internacional de Direito Penal (França). Autor de 39 livros e trabalhos publicados ou apresentados no Exterior.



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UM GOL INCRÍVEL - Cyro de Mattos


Um gol incrível
Cyro de Mattos*


            Tinha a pele amarelada, os dentes miúdos, os olhos como dois pequenos caroços nas órbitas fundas. Talvez fosse apelidado de Quebradinho por causa das pernas. Como dois cambitos, tinham dificuldade em sustentar o corpo magro com aquela barriga grande, pesada. Quando andava, as pernas pareciam que podiam quebrar a qualquer instante, uma corrida, até mesmo pequena, era impossível para ele. Suas pernas mal aguentavam andar quanto mais correr.

            Ninguém queria que ele jogasse no time dos meninos lá da rua. Nem para ficar na banheira, na ponta-esquerda, nem para isso servia, era um inútil como jogador de futebol em qualquer posição. Insistia em querer jogar em um dos times formados pelos meninos lá da rua. Achava-se graça do seu pedido e da sua insistência. Não era aceito nem como juiz.

            Era filho adotivo de um abastado fazendeiro e comerciante próspero, com lojas de artigos para campo e cidade instalada na avenida do comércio. Como o fazendeiro e comerciante não tinha filhos, ele recebia do pai adotivo um tratamento especial. Não lhe faltava dinheiro para guloseimas, comprar gibi e guri, comparecer quantas vezes quisesse para se divertir à vontade no parque ou em algum circo que havia chegado à cidade.

            Disse um dia, vocês me pagam, ainda vou ser o dono de um time porreta, uniformizado com calção e camisa com numeração atrás nas costas. Esse time seria chamado de Expressinho do Vasco. Não demorou de cumprir o que apregoara. Apareceu no campinho da Praça Camacã, nas imediações do rio Cachoeira, anunciando que havia comprado o jogo de calção e camisa do Vasco da Gama e uma bola de couro novinha. Acrescentou que queria que o maior número de meninos bons de bola estivesse presente ao campinho da Praça Camacã no sábado quando iria escolher os onze jogadores e mais quatro reservas para compor o Expressinho do Vasco.

            No sábado, os jogadores escolhidos por ele para compor o elenco do Expressinho do Vasco da Gama ouviram assustados o que ele afirmara sério. Quebradinho comunicou que entraria para jogar as partidas como centroavante, aos 30 minutos do segundo tempo, estivesse ganhando ou perdendo o Expressinho do Vasco. Ninguém contestou. Afinal, ele era o dono da bola de couro e do jogo de calção e camisa do Vasco da Gama. E qual o menino que não queria jogar num time de futebol que usasse calção e camisa numerada nas costas, como se estivesse atuando num time verdadeiro de futebol?

            A partida contra o Bangu valeu taça, melhor dizendo, Taça Rio Cachoeira. O Expressinho do Vasco da Gama venceu o Bangu por um a zero, depois de uma partida acirrada até os quarenta e quatro minutos do segundo tempo. No último minuto o gol salvador. Gol de quem? De Quebradinho, a bola chutada da linha de fundo pelo ponta-direita Magrelo raspou na sua barriga e entrou. Foi a sua consagração. Quem poderia imaginar aquele gol incrível por um jogador que mal conseguia andar?
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            *Cyro de Mattos é escritor e poeta. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Pen Clube do Brasil, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Autor premiado no Brasil, Portugal, Itália e México.

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COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ - Ana Maria Machado


Como se não houvesse amanhã


Sem falar no prejuízo descomunal, todos querermos saber: num país onde o Estado babá se mete em tudo e nem permite saleiro em mesa de restaurante por alegações higiênicas, como acontece esse escândalo da carne adulterada? Como esses fiscais são nomeados? Por concurso? Como são controlados? Como há essa promiscuidade com a política e financiadores de campanhas?

Sensacionalismo à parte (e não há como negar que houve nesse caso), quanto mais descobrimos sobre a corrupção, mais constatamos que não nos roubaram só dinheiro. Estão roubando nossos valores. De forma mais evidente, pela mentira — celebrada neste 1º de abril em seu dia internacional. Mas a toda hora vemos que roubam também outros aspectos de nossa dignidade: o respeito pelo próximo, a responsabilidade de cada um se recusar a fazer o mal. O desgaste moral acarreta o menosprezo do outro como indivíduo, por mais que se adote um falso discurso de idealização dos outros como coletivo. Lorota, balela.

Como se chega a esse ponto? Como tanta gente sem caráter tem poder? Como é que alguém adultera alimentos e corrompe fiscais? Como falsificam remédios e enganam doentes? Como entregam obras de engenharia sem segurança (de ciclovias a barragens)? Como prefeituras fazem vista grossa e permitem que lugares públicos recebam centenas de jovens para se divertir sem lhes dar garantias de poder sair rápido em caso de emergência? Como qualquer um constrói nas encostas com risco de ser levado por enxurradas e deslizamentos? Como não há controle de quem derruba parede ao reformar imóvel, mesmo ao risco de que o prédio desabe ? Como perseguem quem se recusa a entrar no esquema? Como fiscal se vende dessa maneira? Como ninguém dá incertas para fiscalizar fiscais?

Há países em que a fiscalização dos fiscais fica a cargo das seguradoras — as mais interessadas em não ter de pagar indenizações milionárias se houver um desastre. Em outros, contratam-se universidades que recebem e são responsáveis pelo serviço. Mas quando não há risco de punições efetivas, ninguém se preocupa com isso. Sobretudo, em meio a tanta promiscuidade com políticos e seus apoiadores.

Não pode dar certo um país com essa rejeição dos valores morais, esse desprezo pelas consequências da ganância, esse imediatismo egoísta que trata os semelhantes como descartáveis.

Já há uns 13 anos o psicanalista Jurandir Freire Costa detectava os sinais desse processo. Alertou em livros e palestras sobre a corrosão dos valores éticos e da autoridade, definida como um poder que emana do respeito e da reverência, reconhecidos como fonte legítima pelo grupo social. Sem que em momento algum isso se confunda com autoritarismo. Seria encarnada em três instâncias: a justiça, a tradição, as figuras tutelares — como os anciãos de sociedades tribais, em condições de dar orientação ao grupo e servir de exemplo. Comentando quanto a crise moral estava ficando séria, Freire Costa a situou na raiz de nossa desordem e caos, pela falência de valores humanísticos que nos norteassem. De lá para cá, não melhorou.

Há uma percepção de que a Justiça é lenta, burocrática, ausente, serve aos poderosos e não funciona para punir políticos, já que o foro privilegiado protege a corrosão moral. Mesmo assim, ainda é a instância mais forte das esperanças éticas do país, entre o STF, a PGR, a Lava-Jato e diferentes operações policiais. 

A tradição, encarnada na educação, na família, nas religiões, se esfacelou e deixou de dar limites e transmitir modelos. Também deixou de oferecer segurança e proteção, de apontar caminhos e preparar para decisões. Passou a ser vista como algo careta, a ser desrespeitado, criticado e desconsiderado, em discurso que a associa à cultura elitista e a uma execrável exploração econômica, como se houvesse relação direta entre uma coisa e outra. Mas não se execra o ideal do consumismo, a compulsão pela felicidade sensorial ou as condutas predatórias de quem quer se dar bem já, às custas dos outros.

Quanto às figuras tutelares, na sociedade midiática são substituídas por celebridades. Tudo caminha para focar apenas o instante e o imediato, sem medir consequências dos atos, como se não houvesse amanhã. É uma marcha insensata para abolir o tempo e tudo o que a ele se associe: a herança histórica, os corpos com idade, as construções lentas e progressivas, a necessidade do coletivo e gradativo, a compreensão do esforço, a elaboração do consenso, a renúncia tendo em vista um objetivo.

Para isso, a cegueira do imediatismo recusa faxinas e se preocupa em salvar a própria pele com autoanistias. Refuta matemática e se pendura em palavras de ordem e slogans. Nega a razão, combate privatizações e reformas indispensáveis. Prefere que a conta seja paga pelas crianças sem boa escola, ou pelos idosos de amanhã (talvez elas, de novo) ao barrar a viabilidade de sua aposentadoria.

Está doendo na carne, é verdade. Mas se ao menos aprendêssemos alguma coisa com este pesadelo...

O Globo, 01/04/2017

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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 2012 e 2013.

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