Antes de outras providências, iria
para a casa da mãe dele, depois cuidaria da separação judicial. Em casa da mãe
teria que arrumar uma empregada pala lavar pratos, e outros afazeres miúdos.
Dona Elza estava idosa, cansada, cheia de mazelas.
Enquanto tudo isso passava por sua
cabeça, Mildes respirava encolhida a um canto da cama, virada para a parede; o
rosto dele queimava, o miolo se alvoroçava, os nervos rebentando; o telhado
parecia-lhe opressivo, as paredes manchadas lembravam-lhe um quarto de bordel e
Mildes se assemelhava a uma prostituta; até o perfume exalando do corpo dela
lembrava isso; ele sentia o cheiro subindo, ativo, ordinário, diferente do bom
perfume que ela usava sempre. Por uma greta da janela ele sentia a noite clara,
lembrou que era lua cheia.
Recordou do casamento com Mildes,
ela toda de branco, grinalda; a igreja do bairro iluminada a gosto, os
convidados, os amigos, o coral. Mildes havia mudado muito, e agora, com aquela
mania, virou uma peste. Quando aproximava-se a hora de dormir, parecia-lhe um
suplício. “Que devo fazer?” Arriscava uma futucada de leve, cheio de
acanhamento. “Chegue pra lá”, era a reação dela. Andava, virava, ele enchia-se
de resmungos, ficava bruto, pronunciava-se aos berros. Mildes espreguiçava-se,
virava para a parede, e o que seria bom ficava para outra vez.
A partir da constância desse
episódios, ele passou a maldar coisas, chegando à certeza de que estava sendo
traído. Como passaria sem Mildes? Chegavam-lhe ideias absurdas, como a de
praticar um crime. Mataria qualquer sujeito. Depois afastava essa
possibilidade. A separação seria bem melhor, mesmo sabendo difícil suportá-la.
Várias noites nessa angústia, o juízo embaralhado entre hipóteses absurdas.
Lembrava de um punhal antigo que pertencera a um avô de Mildes, guardado como
relíquia. Vez por outra ele via o punhal numa gaveta do guarda-roupas,
prateado, inoxidável, numa bainha de couro bordada a fogo. Numa dessas noites
ele levantou-se cheio de perturbações lembrando do punhal; Mildes, de sono
solto, respirava tranquila, um seio descoberto e branco entre a turvação do
quarto, os olhos fechados às vezes vibrando levemente, a boca ainda com a pintura
de depois do banho. Sem resistir ao quadro, Cecílio passou a farejar os cabelos
dela derramados pelas bordas do travesseiro; o fez receoso temendo que Mildes
se assustasse. Depois, saiu devagar, macio, em direção ao guarda-roupas; apanhou
o punhal na gaveta e lembrou do avô de Mildes que teria sido um sujeito com
bigode de pontas viradas, sisudo, cabelo anelado partido ao meio. Ela
continuava dormindo, respirando tranquila, um peito branco de fora, os cabelos
espalhados pelo travesseiro, exalando perfume ordinário. “Tá ficando doido,
homem, me solta!” Ela exclamou assim num balbucio estridente e confuso, dando
uma cotovelada no peito dele que acordou de supetão, todo embaralhado. “Você
viu onde deixei minha carteira de cigarro?” Disse ele ainda atordoado, e
afastou-se zonzando, conseguindo dormir novamente.
Voltou a sonhar, agora trocando
tiros com um sujeito cabeludo parecido com um tal Miranda, dono de uma academia
de ginástica, que morava em frente e gostava de andar numa moto vermelha. No sonho
o sujeito empunhava um revólver e tinha à cintura um punhal igualzinho ao que
pertencera ao avô de Mildes.
Cecílio passou a noite assim entre
pesadelos medonhos. No dia seguinte teria que resolver sua vida, encostaria
Mildes à parede, decidindo tudo. Não fez isso no dia seguinte nem mais nunca.
Ninguém sabe como ele conseguiu normalizar a situação. O casal reside na mesma
rua, em frente à casa onde morou o dono da academia.
(LINHAS
INTERCALADAS – 2ª Edição, 2004)
Ariston Caldas
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