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quinta-feira, 11 de junho de 2020

HISTÓRIA DE MARIA CAMISÃO – Cyro de Mattos

História de Maria Camisão
Cyro de Mattos
      

          A mulher, apelidada de Maria Camisão, andava vestida em uma camisa folgada, mangas compridas, de tão grande batia nos joelhos. Ela era de estatura baixa, os cabelos sempre assanhados, a boca desdentada.  Alguns diziam que guardara como lembrança uma meia dúzia de  camisas  grandes do seu homem, um preto alto e forte.

          Aparecia com a trouxa de roupa na cabeça. Descia o barranco do rio, juntando-se no areal  às outras lavadeiras, algumas  espalhadas pelas pedras pretas. Lavava, esfregava, torcia. Ensaboava, batia com a roupa na pedra. E cantava uma cantiga moída e remoída na  sua voz triste. As outras lavadeiras ouviam em silêncio o que ela cantava, falando de coisas sentidas nas águas do rio da vida.
                               
                           Ó água, água, água,
                           Torce  e escorre
                          Toda minha mágoa.
                          Ó água, água, água,
                          Leva logo pro mar
                         Essa vida amarga.   

           Apesar das marcas doloridas  que guardava no peito e que  pulsavam  quando lembrava da desgraça que fizeram com o seu homem, nunca teve  medo de enfrentar qualquer tipo de trabalho caseiro. Varria os cômodos, lavava  o pátio, limpava  o quintal com a enxada, cuidava da roupa da família.  Com o  dinheiro que ganhava nesses serviços  ia passando a vida. Morava num barraco do bairro mais pobre da cidade, no outro lado do rio.

          Comentava-se que ela havia ficado adoidada depois que o marido amanheceu enforcado na cadeia, dizem que a mando do delegado Ranulfo, que  armara  para ele uma cilada. O delegado mandou que dois soldados  tomassem as caças moqueadas e prendessem o homem chamado Barba Preta.
 
          Os soldados aproximaram-se do homem na sua barraca que vendia na feira, aos sábados, jaca, galinha, ovos  e caça moqueada. Deram a ordem: “- Entregue as caças abatidas e moqueadas, seu criminoso! É pra já!” O homem respondeu: “- Nunca soube que abater bicho do mato fosse proibido  nessas bandas, ainda mais nas matas que são do meu pertence. ” Foi algemado nessa hora de discussão e xingamento.

          Na cadeia,  bateram tanto no homem com o cinturão grosso, deram sopapos  e pontapés seguidos que ele  não suportou  a surra, caindo no chão desacordado.  Depois de preso cinco dias na cadeia, sem direito à visita da mulher, comendo pão dormido e bebendo água imunda,  dormindo no chão de cimento,  amanheceu enforcado, pendurado na cumeeira da cela escura. 
     
          Disseram depois do episódio sinistro que foi o delegado Ranulfo que mandou fazer a desgraceira para se apossar da roça do Barba Preta nas Salteadas.

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Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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