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segunda-feira, 21 de março de 2022

MUNDICA PINDONGA – Nelson de Faria



Mundica Pindonga
Nelson de Faria

           A notícia nasceu mofina, desinteressante, naquela casa de porta e janela da Rua dos Sete Pecados. Engatinhou pela rua abaixo e foi crescendo. Disparada, passou ventando pelo Largo da Igreja. Engrossou mais ainda na Rua de Cima e atingiu, já gordota, a Ladeira do Cansa-Cavalos. Aí, na casa do Tonico Salatiel, parou um tiquim – a mó que descansando do esforço da subida. Voltou, desembestada, já arrebentando botões de braguilhas, alargando bocas em gargalhadas descontroladas. Os mais discretos paravam para ouvir os comentários ferinos e seguiam caminho,  de nariz franzido e, à flor dos lábios, um sorriso de incredulidade. Os que não tinham papas na língua comentavam o fato, sem caridade pela desgraça alheia. Outros, numa papeada danada, ouviam com atenção, levantavam os olhos para o céu:

          - Coitado do Joaquim-Mutamba! Homim bom, tá ali, sem fel, sem peçonha, sem nada...

          Na venda do Chico Quirino, um da roda falava alto:

          - Pois, não é que o Quincas-Mutamba se estrepou! Mundica desmoralizou o cujo de uma vez. Também, pra quê se engraçar com uma quenga daquelas?

          Confidenciavam-se, esgravatando-se o caso. Dizia Zé Orestes na botica de Sêo Arrudas, enquanto este suspendia a manipulação de um elixir depurativo:

          - A Mundica desceu as calças do lenheiro, prendeu a cabaça do cujo entre as pernas – nossa, que posição desgraçada, sô – e aplicou, nos traseiros dele, umas boas chineladas. Foi assim que me contaram, nhor sim... e eu estou vendendo o peixe pelo mesmo preço da compra...

          Filogônio Arrudas, o boticário, gostava de eufemismos, empregava palavras de pronúncia difícil, expressões em desuso. Fazia-se de letrado, de prestígio avantajado, abusando desse artifício. Falou, sorrindo:

          - Então, Zé Orestes, o glúteo do Quincas ficou como se fora cara de menino rico, sanguínea e edemática, não é assim?

          Zé Orestes confirmou, com um sorriso canalha na boca desdentada, embora não soubesse o significada daquelas palavras estranhas aos seus ouvidos. Estimulado pela curiosidade que lia na cara do boticário, Zé Orestas descreveu a cena com tanta riqueza de detalhes que Filogônio Arrudas e, logo depois, toda a cidade não tinham mais dúvidas:  Quincas-Mutamba apanhara – e de chinela! – de Raimunda Pindonga, dita Mundica Tomba-Homem, cuia das mais muito faladas do sertão de Cateriangongo. Não era aquela a primeira de suas façanhas comentadas. Diziam que ela já havia tirado a pevide de muito sujeito de pabulagem. Avalentoava-se à toa, a danada. Não deixava a mandioca pubar. Suas amigas mais chegadas falavam que a cuja era inté criatura prestativa, mão-aberta, dadeira sem limites. Mais porém, quando gostava de um homem – coisa não muito frequente – gostava mesmo muito, muito, desse gostar que deixa a gente de siso raleiro, não admitindo conselhos e insinuações. Sentia ciúmes e começava a beber. O pior de tudo era que um dedal de restilo esquentava o sengue dela, e era aquela lazeira. Trepava nos tamancos. Se o cabra não fosse esperto, virava molambo entre as pernas dela. Remanisca, forçuda pra danar, dava logo dois tombos no cujo, prendia-lhe os braços entre as coxas musculosas e se ria, depois, toda ancha, gozando a derrota do espevitado. Se o preferido, porém, era forte, cabra sem belida, de ideias alimpadas, a mulata, primeiro, afrouxava as carnes dele com carinhos de sustança; amolentava-lhe as forças com mixilanga somente dela conhecida e, quando percebia que o sujeito não aguentava mais uma gata pelo rabo, investia. Aplicava-lhe cabeçadas na barriga, jogava-o no chão, arranhava-lhe as bochechas. Despois... bom, despois, sentia remorsos da doidera praticada, passava meizinhas nas feridas do infeliz, chorava, chorava, implorando-lhe perdão. Despachava aquele, curtia jejum de homem dois ou três meses. Por via dessas coisas malucas, foi que o apelido “Tomba-Homem”, que nela se ajustava que nem visgo, pelo sertão se espalhou como azeite que se derrama em riba da água.

          Ora, muito que bem. Quincas-Mutamba era sujeito estimável. Magro, pacato, pequeno de corpo, viúvo sem filhos, ganhava a vida fornecendo lenha às cozinhas da Rua dos Sete Pecados. Madrugadinha, no coice de dois jegues, ia longe, légua e meia ou mais, voltando à tarde. Entregava um feixe aqui, umas achas acolá. Recebia magros tostões, passava na venda do Nicácio, fazia suprimento de boca, engrossava uns dois martelos de pinga, saía meio troviscado. Desencilhava os jegues, examinava-lhes as cernelhas maceradas. Entendia-se melhor com eles do que com o resto dos mortais. Naquela vidinha de pobre, vivendo no seu canto, sem malquerença com os mais, não fedia nem cheirava. Daí a surpresa que causou a todos aquela notícia estuporada. Nem a cidade suspeitava de suas ligações amorosas com Mundica Pindonga. Daquele dia em diante, passou ele a viver numa consumição dos diabos. Inté os meninos da rua se riam dele. Quincas-Mutamba não teve mais sossego. Embezerrou-se. Não saía mais da venda do Nicácio, não deu mais palavra a ninguém. Quando o último tostão foi jogado sobre o balcão e o martelo de restilo lhe tremeu nas mãos incertas, Quincas-Mutamba esquisitou-se. Fechou o punho, esmurrou o balcão, berrou um nome safado.

          - É hoje, porqueira! Espandongo aquela peste!

          Voltou-se para o vendeiro, os olhos faiscando de ira:

          - Quero mais um trago, mais porém, não quero fiado, nhor não. Pra pagar ele, dou pra vosmecê o jegue ruano, bichin bom de carga pra danar.

          Surpreso, Nicácio falou, com brandura:

          - Não carece vosmecê se desfazer do bicho por via de uma talagada, nhor não. Boto na conta. Vosmecê merece mais...

          Quincas interrompeu-o, decidido:

          - Mais, porém, se eu morrer na empreitada? Gardecido, Sêo Nicácio, gardecido. Não lhe ofendo se não aceitar, ofendo?

          Nicácio retornou, conciliador:

          - Ainda que mal lhe pergunte, por que é que vosmecê está assim, meio animoso? Figuro que vosmecê não tá à revelia com alguém, ou tá?

          Quincas-Mutamba tomou fôlego, abaixou a cabeça, murmurou:

          - Quero exemplar aquela diaba!

          - Figuro que não é gente de sua estimação...

          - É de muita estimação, nhor sim. Mais porém...

          O resto da frase perdeu-se no ar, porque Quincas já estava na rua, trocando pernas.

 

          No FUNDO DO QUINTAL, ensaboando panos, Mundica cantava. Quincas-Mutamba nem salvou a pobre. Parou na frente dela – que lhe sorria um largo sorriso de boas-vindas – e foi insultando:

          - Vagabunda! Se é valentia que corre no tutano do seu braço, porqueira, prove agora, cuia sem-vergonha!

          Mundica sorria, encalistrada.

          - Que bicho foi que te mordeu, nêgo? Espiritou? Tu andou bebendo, não andou? Não sou de brigar assim, sem mais nem menos. A frio, brigo não. Se tu botar inflamação no meu sangue, te esbagaço o esqueleto todo!

          Acorreu gente, ouvindo a xirimbambada.

          Quincas não conversou. Fechou a mão, levantou o braço, desfechou o golpe. Apanhou o ouvido da mulher, e ela caiu estatelada. Animosamente, ela se levantava, quando recebeu outro trompaço, no mesmo lugar da primeira pancada. Aí, afocinhou de uma vez. Quincas pabulou:

          - Conheceu, porqueira? – Sorriu para a assistência, afrouxou o correão, puxou da faca. – Só queria exemplar a danada. Se quisesse sangrar a bicha, tava na hora. Não sou esmiolado para fazer uma coisa dessas. E o homem que é macho, mesmo, não mata mulher. Bate nela, só pra exemplar. – E, como para justificar-se, arrematou: - Esta porqueira me achou escornado, me tolheu os braços, me arranhou a cara toda e saiu por aí, boquejando que me bateu. Ora, já se viu despropósito igual? Podia eu lá viver nessa consumição desgraçada, que me esquisitava inté? Podia? – Agachou-se, sungou a mulata pelos sovacos, ajudou-a a se levantar, passou o braço na cintura dela, segredou-lhe: - Te machuquei muito, nêga? Vamos pra dentro, anda.

          E ela, toda chorosa, ainda estonteada:

          - Ocê é ruim que nem cobra, nêgo. Pra quê fazer uma coisa destas na frente de tanta gente?

 

(BAZÉ – ESTÓRIAS SERTANEJAS)

Nelson de Faria

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