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sábado, 31 de dezembro de 2022

Pelé, Pelé, Pelé

Cyro de Mattos              



O sonho no verde,  

um trunfo no tapete,

em solos da bola

de gênio a jogada.

                 

Em forma sonora

pelos pés antevê

o que é ser divino

no gol de placa.

 

Maracanã, Fonte Nova,

Mário Pessoa, os palcos

 em que me vi perplexo  

com a bola encantada.

 

Olhe o que ele apronta,

até o sol sorri, até a lua,

toda ela iluminada, vem

oferecer rosas de prata.

 

O piso apesar do buraco,

Pelé é Pelé, não importa,

a vida na bola que rola

tanto canta como baila,  

 

Os melhores sentidos

Quando há um rei mágico

Não têm incompletude,

A vida se faz de beleza rara.  

 


* Cyro de Mattos
é poeta e ficcionista. Detentor de prêmios literários importantes e, entre eles, o Afonso Arinos da Academia Brasileira de Letras, Associação dos Críticos Literários de São Paulo, Nacional de Poesia Ribeiro Couto (UBE-RJ), Internacional Maestrale Marengo d’Oro, Itália, duas vezes, Menção Honrosa do Jabuti, Nacional Pen Clube do Brasil e Nacional Cidade de Manaus. Publicado em oito idiomas.

* * *

segunda-feira, 26 de dezembro de 2022

Nélida

José Sarney


 

A morte de Nélida Piñón é para mim um golpe pessoal, tão estreita era a nossa amizade e tão profunda a admiração que lhe tinha. A conheci quando ainda estreávamos, eu tentando conciliar vocação e destino e ela com os passos largos que a fizeram rapidamente uma das maiores romancistas da língua portuguesa.

Não é preciso fazer um apanhado de sua obra colossal. Baste lembrar os reconhecimentos com nomes que dizem tudo: Juan Rulfo, Rosalía de Castro e Cervantes; ou que ganhou o maior prêmio da literatura espanhola. Sua obra expande-se do romance à memória, do conto ao ensaio, mas mantém-se vinculada a sua natureza de quase-migrante que a manteve brasileira, mas não a desfez galega, e ao seu profundo amor pela literatura.

Convivemos tantos anos… Sempre encarou a vida de frente, com suas circunstâncias, para citar Ortega y Gasset, sempre tirando delas as lições que sabiamente nos passava em sua obra.

Despedimo-nos dela, Marly e eu, com profunda tristeza, sabendo que deixa um imenso vazio na literatura hispano-americana — seu espaço era maior que o da literatura brasileira —, na Academia Brasileira de Letras e no nosso território afetivo. Saudade imensa!

Portal da ABL, 19/12/2022

 

https://www.academia.org.br/artigos/nelida

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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domingo, 25 de dezembro de 2022

Eu creio nessa manhã

Cyro de Mattos


 (Querido amigo Alfredo Com o poema do anexo, lembrando o querido amigo,  venho desejar-lhe um Natal de paz, saúde, alegria com poesia.

Abraço afetivo. Cyro )



Por que os homens

Amam a droga

E não da abelha

Os favos de mel?

 

Por que os homens

Amam as balas

E não a paz

Sem nenhum fuzil?

 

Por que os homens

Só enxergam o chão

E não a estrela

Em seus caminhos?

 

Por que os homens

Perfuram a rosa

Com a ponta aguda

E mais dura do espinho?

 

Viver amargos, sozinhos,

Viver nos escombros,

Viver na vida desigual,

É do que os homens gostam?

 

Mas eu creio nessa manhã

Anunciada pelo menino

Nascido na manjedoura.

No brilho dessa estrela                     

Espalhando o amor no chão.

 

Eu gosto de ouvir nesta hora

Essa canção que me afaga

Falando duma união geral,

Que viver vale a pena

Quando a vida é uma dança.

 

Com os homens como irmãos

No doce fruto da ternura,

No doce fruto da alegria

Sorrindo como criança.

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Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Um dos idealizadores da Academia de Letras de Itabuna (ALITA).

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Os sonhos de Nélida

Arnaldo Niskier



Foi uma amizade de muitos anos. É grande, pois, a dor sentida pela perda da escritora Nélida Piñon, que faleceu em Portugal, aos 85 anos de vida.

Tive o privilégio de ser o seu vice-presidente, na ABL, em 1997. Quantas ideias criativas e generosas, na primeira gestão de uma mulher à frente da Casa de Machado de Assis. Lembro que as bem sucedidas visitas guiadas nasceram da sua imaginação. E muitas outras profícuas iniciativas.

Autora consagrada de 'A República dos Sonhos', Nélida escreveu mais de 20 livros, todos com bela repercussão inclusive internacional. Doou ao seu amado Instituto Cervantes mais de 7 mil livros e documentos. Hoje, enriquece um belíssimo acervo que fica no bairro de Botafogo.

Ela foi uma intransigente defensora dos direitos humanos, especialmente das mulheres e dos negros. Escreveu sistematicamente sobre isso.

E amou seus cachorrinhos, o primeiro dos quais foi o famoso pinscher Gravetinho Piñon e, depois, vieram a pinscher Susy e a chihuahua Pilara Piñon, com os quais, inclusive, viajou para diversos países. Sua cultura era um poderoso misto de galego e português.

Fomos amigos por mais de 30 anos. Ela era formada em jornalismo pela PUC-Rio, com obras espalhadas por cerca de 30 países. Carioca, teve também um grande apreço pela sua descendência espanhola. Costumava se pintar antes de se apresentar e vestir sua melhor roupa. Era um ritual que sempre respeitava, com toda solenidade. Foi uma escritora de vários estilos, como demonstrou no seu clássico 'Vozes do deserto'. Sua paixão pela literatura veio desde cedo. E, assim, ganhou o Prêmio Príncipe de Astúrias, além de dois Prêmios Jabuti.

Pode-se registrar na sua rica biografia uma amizade relevante com famosos escritores como Gabriel Garcia Marques e Mário Vargas Llosa, com os quais costumava sempre se corresponder. Dizia que 'os livros nasceram pra viajar'. E ela ia com eles, espalhando suas ideias pelo mundo.

A perda de Nélida Piñon não é sentida apenas pela ABL, mas pelo país de um modo geral, pois ela foi uma figura muito querida. Sempre demonstrou solidariedade com os que sofrem, especialmente em nosso país.

Site Chumbo Gordo, 23/12/2022

 

https://www.academia.org.br/artigos/os-sonhos-de-nelida

 

Arnaldo Niskier - Sétimo ocupante da Cadeira nº 18 da ABL, eleito em 22 de março de 1984, na sucessão de Peregrino Júnior e recebido em 17 de setembro de 1984 pela acadêmica Rachel de Queiroz. Recebeu os acadêmicos Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Paulo Coelho. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 1998 e 1999

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sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Saudação de Final de Ano - Mensagem do Comandante do Exército Brasileiro

A Zanga e o Sorriso de Papai Noel

                               Cyro de Mattos



Barba branca, cabelos compridos, brilhantes, sedosos. Botas pretas, folgadas, cetim vistoso encarnado no vermelho.
Sorriso, abraço, ritual de arminho inocente, peito venturoso em carícia do velhinho bondoso.  
Saco enorme de brinquedos. Véspera de Natal, o shopping com suas ondas de gente, vindo pra cá, indo pra lá. Escadas rolantes, subindo, descendo. 
A cidade inteira em festa.
Guardador de ternas surpresas, a criançada em volta.
Foto, sorriso gordo, magia branca de velho pacífico.
Sorria, meu bom velhinho, sorria.
O que está acontecendo?
Nada de sorrir. Cansado do mesmo gesto, todos os anos.
Alegria para os outros, para ele não, nada de prometerem um presente para fazê-lo sorrir.
Aprisionado o célebre sorriso, rô, rô, rô...
Sem dar o abraço fraterno, aquecer o pequeno coração.
Rosto abraçado ao rancor.
Uma criança teve medo. Outra chorou. Teve uma que fugiu estabanada.
Até que uma chegou junto. Deu-lhe um abraço, fervoroso.  Um beijo.
Disse:
- Feliz Natal, Papai Noel!
Comovido. Olhos azuis aguados.
Como num berço quente.
Abraçou uma a uma.
Tirou fotos, sorriso sereno.
Rô, rô, rô...
O Natal com cheiro de estábulo.
Retomado nos ares cativantes.
Sorridentes. Festivos.  

 

Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Membro titular da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

Uma Nota Triste

Cyro de Mattos



            Lamento informar o falecimento de meu amigo, um conferencista magnífico, eterno mestre, Professor Hélio Rocha, aos 99 anos e quase nove meses, ocorrido na tarde de ontem. Ele era uma enciclopédia de saber, de tudo falava, e bem, seduzia com suas conferências intercaladas com palmas entusiasmadas da plateia.
           Editor da revista Afirmação, na qual colaborei com João de Goes Berbert, Renato Prata, Orlando Sena, Caetano Veloso, Noênio Spínola, Ildásio Tavares e tantos outros jovens intelectuais que nos idos de 60 frequentavam a Livraria Civilização na Rua Chile, como se comparecessem a um lugar abençoado em busca de verdades nos livros de autores renomados.
Foi professor a vida inteira, não teve outra atividade, amoldou a consciência de várias gerações. Uma pessoa digna do nome intelectual e da denominação de mestre do ensino, um homem simples e prestativo. Participei do documentário sobre sua vida realizado pelo cineasta Cícero Bathomarco. Quanta honra prestar depoimento sobre uma pessoa que muito contribuiu para a minha formação de escritor.
           Aprimorou o sentimento de mundo de várias gerações. Um conferencista iluminado, notável artista da oratória e da escrita, um profissional da inteligência, uma pessoa decentíssima.
 Sobre esse ícone do ensino na Bahia, ficará na memória o seu exercício de professor docente, como se fosse um iluminista contemporâneo. As suas aulas não se limitavam ao adorno da pompa do conhecimento, ao âmbito da mera informação do conteúdo, à limitada e repetitiva transmissão de saberes.  Como se referiu o professor Jorge Portugal, “HÉLIO informava e formava. Fosse nas salas da UFBA e UnB, fosse numa sala de cursinho pré-vestibular.” Falava de literatura, história, política, pintura, música, teatro, e principalmente de filosofia, sempre com profundidade e elegância. Jazz e música clássica foram duas de suas predileções para enriquecer o espírito.
             Ele estará sempre em nosso convívio, os que tiveram a sorte de conhecê-lo e se tornar gente através de seus exemplares ensinamentos.  Nossa amizade nasceu em 1959, a ele devo uma porção de minha formação intelectual. O sepultamento será hoje, às 16 horas, no Cemitério Jardim da Saudade, em Salvador.

 

Cyro de Mattos - Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro Titular da Academia de Letras da Bahia e do Pen Clube do Brasil. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Um dos idealizadores da Academia de Letras de Itabuna (ALITA).

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terça-feira, 20 de dezembro de 2022

                   Emmo Duarte e Seu 

              Porto de Esperança

                                Cyro de Mattos

 


          Nas antologias Itabuna, Chão de Minhas Raízes, Editora Oficina do Livro, Salvador, 1966, e Ilhéus de Poetas e Prosadores, Edição da Fundação Cultural da Bahia, Coleção Letras da Bahia, Salvador, 1998, incluí os trechos Uma Progressista Cidade e Doutor Corumbá, extraídos do romance Porto de Esperança, de Emmo Duarte. Ambas as antologias têm meu prefácio, notas e seleção de texto. Como o poeta Sosígenes Costa, Emmo Duarte nasceu na cidade de Belmonte, Sul da Bahia, vindo ao mundo em 30 de outubro de 1920. 

          Passou sua infância em Ilhéus, foi homem de imprensa com trânsito por Salvador, Maceió, Recife e Porto Alegre, São Paulo e Rio de Janeiro onde também exerceu a advocacia.  Traduziu ensaios sobre Graham Greene, William Faulkner e o romance Os Donos do Orvalho, do haitiano Jacques Romain, um belo livro de ficção engajada, de fundo telúrico, sem distorções entre o estético e o realismo da vida como ela é, com suas verdades reveladas através de notas pungentes, cruas pinceladas da realidade exterior, tocada pelos quadros formados entre opressores e oprimidos, estes como personagens relegados ao sabor da sorte enquanto seres excluídos pela dura lei da vida.

          Em Porto de Esperança, o belmontino Emmo Duarte mostra em passagens irreverentes a alma lírica da cidade de Ilhéus, conta as histórias inspiradas pelo seu antigo porto exportador de cacau para o mundo.  Em cenário bem construído, faz desfilar personagens que vivem o cotidiano da cidade, movimentada com seus navios chegando e partindo, as longas conversas nos bares, cafés, casas de mulheres e jornais. 

         O romance Porto de Esperança sugere a ambiência realista retratada nos livros A Comédia Humana, de Willian Saroyan, e Winesburg, Ohio, de Sherwood Anderson, a verdade de cada um expressa por tipos grotescos produzidos nas relações advindas do cotidiano. Focado na realidade exterior, o eixo romanesco do livro desdobra-se sem forçar as cenas marcadas de amargura, fixadas nas frustrações flagradas de uma pequena cidade com suas esperanças que se propagam como sonhos nunca alcançados.

          Emmo Duarte deixou inédito o romance O Rei do Cacau e, em andamento, O País de Belmonte.

 

Adendo: quanto ao poeta Jacinta Passos, recomendo consultar o Portal de Poetas Ibero-Americanos editado por Antônio Miranda, que traz uma síntese biográfica da poeta baiana de Cruz das Almas, acompanhada de um conjunto de poesias, que dão uma imagem suficiente de um poeta com o estro apurado, estilo configurado nos moldes modernistas quando então o conteúdo de seus veros reveste-se de assunto do nosso folclore e do cancioneiro popular. 

 

Cyro de Mattos é ficcionista e poeta. Também editado no exterior. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris  Causa da UESC.

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sexta-feira, 9 de dezembro de 2022

República Pinapá do Piripicado 

 novo romance de Cyro de Mattos 





Acaba de ser publicado pela Editora Via Litterarum, o romance transgressivo República Pinapá do Piripicado, de Cyro de mattos, com capa do pintor e escultor Goca Moreno, no qual o autor quebra todas as regras do romance tradicional com a história narrada com princípio, meio e fim, pondo no seu lugar o uso  de uma linguagem gráfico visual mesclada   com o dialogismo extraído do cotidiano com vozes populares que não se calam, no  seu comportamento espontâneo revelam-se na crítica da vida marcada de mazelas, distorções sociais e atitudes políticas absurdas.

O grande personagem é o povo que se define através de vozes nos comentários e mensagens jocosas sobre o cotidiano da vida, nas críticas sobre corrupções de políticos, que fazem do poder fonte inesgotável de sua ganância para o enriquecimento ilícito.  Há aqui cenas de causar pena vividas por uma gente esquecida, relegada na camada inferior da vida, ao sabor da sorte, como as do menino que é roubado no troco, dividido depois, longe de seus olhos, pelo feirante com o guarda. E as do pastor que anda na feira sozinho, cambaleia com sede e fome, carrega no pensamento contrito sua crença em Jesus, o salvador da humanidade, mas que termina por sucumbir ante a indiferença e o repúdio dos outros.


* * *


quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

FLOR DA NOITE - Catulo da Paixão Cearense






É NOITE. Na guarapeira

de João Boiada, um vaqueiro,

(uns bebendo, outros fumando...)

agora estão palestrando:

 

um caçador, um campeiro,

um tangerino, um menino,

e um afamado assassino

de nome – Juca Pampeiro.

 

Todos tinham combinado,

n ‘um episódio qualquer,

contar um trecho da vida,

do presente ou do passado,

mas onde entrasse a mulher.

 

JOÃO BOIADA

(Vaqueiro)

 

Para que vocês me pedem

que eu fale do meu passado,

que nada de mais contém?

 

Sou filho de um boiadeiro

das bandas de Macarém.

 

Fale um outro que quiser,

porque só há neste mundo

para mim, uma mulher.

 

Essa mulher adorada

é minha e chama-se Rosa.

 

Rosa, que foi bonitinha,

Rosa, por quem floresci,

foi a mais bela vaquinha

que encontrei entre a boiada

de toda essa caboclada

do sertão em que nasci.

 

Rosa é mãe de nove filhos.

 

Se é rosa um tanto murchada,

inda é rosa e há de ser sempre

rosa, e nada mais que rosa,

rosa murcha, mas cheirosa,

rosa sempre perfumada,

rosa que me coube em sorte,

rosa até depois da morte,

embora rosa esfolhada.

 

Somos um: não somos dois.

 

O mundo p‘ra mim consiste

nesta Rosa, esta roseira,

no roseiral dos meus filhos

e neste rosal de bois.

 

Minha história aqui findou.

 

Aqui ou lá no outro mundo,

se é que Deus já me escutou,

eu hei de ver os meus netos,

meus filhos e meus bisnetos,

vaqueiros, tal qual eu sou.

 

Agora tem a palavra

o Campeiro Zé Maria.

 

 

ZÉ MARIA

(Campeiro)

 

Sou natural da Bahia,

dessa terra abençoada,

que é terra de outro campeiro,

do Ruy, esse cavaleiro,

que com a palavra enfeitiça

a humanidade assombrada,

e campeando o mundo inteiro,

como um Peão da Justiça,

leva a Deus, que é o Fazendeiro,

a rês que anda tresmalhada.

 

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Não conheço o sofrimento

que tem por causa a mulher.

Ame lá quem bem quiser.

 

Neste mundo malfadado,

Deus não fez coisa melhor

que correr atrás do gado.

 

Mulher é a nossa desgraça!

 

Mulher é como a cachaça,

que é em toda parte encontrada!

 

Mas quanto custa encontrar

um batedor de gemada

pra se poder campear?

 

João Boiada: o teu prazer

é só cuidar da boiada

e dos teus, que é a tua Graça!

 

Minha glória é a vaquejada!

 

Meu sonho é uma musicada

num touro novo de raça.

 

Assim vocês me desculpem,

se da mulher não lhes falo.

 

Não há mulher, por mais pura,

que possa ter a candura

do coração de um cavalo.

 

Fale agora o caçador...

 

 

MANUEL COCO

(Caçador)

 

Antes de falar do amor,

digo a vocês que é basteira

a gente andar na carreira,

se estrepando nos espinhos

dos matagais do sertão,

para dar uma mussica

na cauda de um barbatão.

 

Eu só combato de frente!

 

Tanto mato uma serpente,

uma onça impertinente,

como um simples tamatião.

 

Quanto saber é preciso

para cortar num instantinho,

o gorjear de um passarinho,

com um tiro, que, ao mesmo tempo,

destrua o dono e o seu ninho!

 

O espoucar de uma espingarda

leve e boa, como esta,

alegra toda a floresta.

 

Eu juro pelo tinhoso

e Deus, que nos céus está,

que o estrondar de uma garrucha

tem muito mais harmonia

do que a voz de um sabiá!

 

Sou viúvo de uma serrana,

a quem tive muito amor!

Mas a vida soberana,

a vida de um caçador,

não dá tréguas para um homem

preocupar-se com a dor.

 

Inda hoje, meus amigos,

com um tiro cá da comadre,

matei um tamanduá,

um parari, um bauá

e, de quebra, um canguçu.

 

E já que falei em tiro,

atiro agora palavra

pra cima do Brejaú.

 

 

LEOPOLDO BREJAÚ

(Cangaceiro)

 

Sou caçador, como tu,

mas só mato os racionais!

 

Tu matas, porque és ingrato,

os pobres dos animais,

que são os donos do mato.

 

Manuel Coco, é ser cruel,

é ter alma de covarde,

atirar num jumará,

que está saudando a manhã,

e matar uma anaquan,

a sonhadora da tarde!

 

O caçador é um malvado!

 

Eu mato somente o homem,

porque o homem, Manuel Coco,

é o bicho mais desgraçado.

 

Sou cangaceiro!... Que importa!

 

A virtude é coisa morta!...

 

Só a mulher nos conforta!...

 

Eu já tenho no costado

para mais de vinte crimes,

mas não quero que se atente

contra a honra das mulheres,

que as mulheres, Manuel Coco,

são as coisas mais sublimes.

 

Talvez leve a vida inteira

sem ter uma companheira,

porque esta vida guerreira

não deixa que me enraíze

muito tempo num lugar.

 

Mas, se um dia eu me casar,

só há de ser com a Marocas,

a morena mais catita

que anda cá nestas bibocas.

 

Sustente agora o motivo

o seu Vicente Canela.

 

 

VICENTE CANELA

(Freteiro)

 

Falarei, sem mais aquela.

 

Tenho noventa e seis anos e até hoje seis mulheres enterrei!!

 

Minha primeira consorte,

cuja morte inda lamento,

me deu tanto sofrimento,

que quase me sepultou!...

 

Mas o tinhoso a levou.

 

A segunda... (oh!!... a segunda!)

foi a mulher mais ciumenta

que Deus no mundo encarnou...

 

Era um anjo de maldade,

uma fera de bondade,

e foi talvez só por isso

que o demônio a carregou.

 

A terceira... Eu lhes confesso:

era perversa e era boa!

 

Mais mansa que uma leoa,

depois de quatro semanas

de casada, foi-se embora

e nunca mais me tornou!

 

A quarta, a Chica Fumaça,

era uma punga de raça!...

Cria de um senhor de Engenho,

foi a minha tentação!

 

Amava-me com paixão!...

 

Mas tinha uma adoração

por uma santa: - a cachaça!

 

A quinta, a Zefa Bodinha,

era viva, engraçadinha,

e feia! Porque negar?

 

Mais mansa que uma criança,

nunca vi mulher mais mansa,

mais mansa pra namorar!

 

Para salvar minha honra,

quantos homens, meus amigos,

não teria de matar?!

 

A  minha sexta mulher

(quem me dera!... oh! Quem me dera!)

era também outra fera,

mas muito bem educada!

 

Sentindo algum azedume,

a fera tinha um perfume

que eu nunca vi neste mundo

numa flor mais perfumada!

 

A mulher não vale nada,

quando não cheira a ciúme!

 

Eu, com vaidade, lhes digo

que aqui neste pobre lombo

já levei muita tronchada,

mas apanhei com bravura.

 

Das águas que nós bebemos,

qual a mais fresca, a mais pura?

É a que nasce porejada

do ventre da pedra dura.

 

Seis mulheres enterrei!...

 

Mas inda não me emendei!

 

Sou noivo, amigos, sabei!

 

A minha noiva é formosa!

É a cabocla mais sestrosa

de toda esta redondela!

 

Ela há de ser meu coveiro

ou eu o coveiro dela,

ou não sou mais o freteiro,

o seu Vicente Canela.

 

Agora vamos ouvir-te,

Mata Brava, ó lenhador!

 

 

MATA BRAVA

(Lenhador)

 

Pois falarei, sim, senhor.

 

Se há glória em vencer um touro,

depois de no chão prostrá-lo;

 

se, montado num cavalo,

conduzir uma boiada

é uma bela e nobre ação;

 

se matar um cidadão

é uma vitória genial;

 

se é mostrar grande coragem

sangrar agora uma onça

e, depois, um cardeal...

 

eu lhes pergunto o que vale

este meu braço possante,

que vence uma perobeira,

qualquer árvore gigante,

só com um ferro, um ferro assim,

como este velho machado,

que repousa ao pé de mim?

 

Só é grande, meus amigos,

quem Deus já grande fizer.

 

Mas... sim... Antes que me esqueça,

eu vou dizer, num momento,

o que penso da mulher.

 

Não creio nem sou incréu...

 

Falo como um tabaréu...

 

Mas acho que todo homem

que casa com a formosura,

tem de cair na esparrela.

 

Ai daquele que procura

amor, na mulher que é bela!

 

Essa cabocla, a Gertrudes,

cabocla dos meus cuidados,

(pois já fez trinta e seis anos

que nós dois somos casados...)

é feia! Ninguém a quer!

 

Mas eu amo essa mulher,

que, por ser feia, é só minha!...

a mulher feia é rainha!

 

A formosura subjuga

e ruge em nossa cabeça,

como um tremendo tufão!

 

A fealdade é formosa,

 é serena, é caridosa

e vive no coração!

 

A mulher quanto mais bela

tanto mais é cobiçada!

 

Poderá ser incensada,

adulada e requestada,

vaidosamente adorada,

mas amada?... Isso é que não!

 

A beleza é uma ilusão!...

 

E eu penso não ser preciso

dizer-vos porque razão.

 

Graças a Deus, seu Vicente,

a minha feia Gertrudes

não tem mais do que um senhor!

 

A noite vai refrescando

e aquela estrela apontando

para o seu Pedro Carreiro,

parece que tem um gesto

um tanto provocador.

 

Ouçamos Pedro Carreiro,

que deve ser traquejado

nas meninices do amor.

 

 

PEDRO CARREIRO

(Carreiro)

 

Porque vens sangrar-me o peito,

Mata Brava, ó lenhador?!

 

A mulher feia ou formosa,

para mim não tem valor.

 

Tudo é carne, meus amigos!...

E a carne veio do barro!...

 

Minha mulher é meu carro

 

Como eu não toco viola,

quando me vou de viagem,

cantando com os meus boizinhos,

ele vai me acompanhando

com os guinchos pelos caminhos.

 

Os guinchos do seu mancar

são muito mais comoventes

que os cantos dos passarinhos!

 

Não há homem cá na terra

que seja mais venturoso

com uma mulher a seu lado,

do que um carreiro, orgulhoso,

quando conduz, presunçoso,

o seu carro idolatrado.

 

Para quem nasceu carreiro,

todo carro é uma mulher,

e o carreiro – um namorado!

 

Meus senhores, eu lhes juro

que nunca no coração,

nem mesmo quando era jovem,

eu senti o beijo impuro

de qualquer uma ambição.

 

Mas.. digo de coração:

se algum dia eu fosse dono

de incalculável tesouro,

mandava fazer um carro,

todo de ouro, todo de ouro!...

 

Não por vaidades banais,

mas para enche-lo de frutas,

macaxeiras e batatas,

jerimuns, canas, bananas,

de todas essas verduras

colhidas nos meus roçais,

e andar com meu carro de ouro

pelas ricas Avenidas,

dando isso tudo à pobreza

das gentes das Capitais.

 

E basta! Não digo mais.

 

A mulher!?... Ora!... A mulher!

 

Que pensas tu, Pamperino,

dessa feroz jararaca?

 

JUCA PAMPERINO

(Criminoso)

 

 

É que não há neste mundo

mulher que velha uma faca!

 

Meu pai foi o assassino

de nome mais celebrado.

 

Foi também assassinado.

 

Morreu velho, com cem anos,

mas sempre triunfador.

 

Meu avô era um caboclo

valente e duro de umbigo

e que só tinha prazer,

quando encarava o perigo.

 

A todos que o respeitassem,

tratava com cortesia,

mas quem lhe fizesse  alguma,

pagava no mesmo dia.

 

Meus irmãos: a humanidade

nunca teve coração!

 

Deus, que fez todo o animal,

lhe dando à luz da razão,

só negou esse condão

ao homem, - rei da criação,

e à mulher, que é racional,

só por isso, meus amigos:

- por se ter feito rainha

do grande rei bestalhão!!

 

Eu não nasci para amar!...

 

Eu nasci para matar!

 

E, contudo, sou cristão,

pois mato por devoção!

 

Se não me engano, umas dez,

ou, talvez, doze mulheres

já dormem sono profundo

nos carcavões do outro mundo,

porque delas me enfadei.

 

Amigos, meu coração

é desta pernambucana,

que eu amo e sempre amarei!

 

Nessas correntes de palha

do Amor, o grande canalha,

jamais eu me acorrentei!

 

Quando vejo uma chinoca

querer fazer-me um vencido,

para, depois de iludido,

motejar do meu sofrer,

varejo-lhe a mão na boca,

arranco-lhe o coração

e dou aos cães pra comer!

 

Eu nunca matei um bicho

só por prazer bestial,

mas vocês não imaginam

meu prazer, minha alegria,

quando enterro a ponta fria

do meu dengoso punhal,

do meu punhal de assassino,

num coração feminino,

que é fonte de todo o mal.

 

Toda a paixão é funesta!

 

Amor, sem sangue, não presta!

 

Amor? É com o Tangerino,

ali, com aquele menino,

que anda sempre apaixonado,

a cantar, atrás do gado,

constantemente a sonhar!

 

CHICO TANGERINO

(Tangerino)

 

Seu Pamperino!... Eu respeito

o seu modo de pensar.

 

Agora, não me crimine,

se eu lhe disser, francamente,

que eu só nasci para amar.

 

O senhor diz que as mulheres

nasceram predestinadas

para morrer à facadas!

 

E, as mulheres, para mim,

são criaturas celestes,

são fadas abençoadas.

 

O homem de coração

não melindra uma mulher,

porque a mulher é divina!

Se a mulher não tem juízo,

é que a mulher, inda velha,

continua a ser menina!

 

Eu amo uma cafuzinha,

uma flor tão formosinha,

como o senhor nunca viu.

 

É filha de Mecejana...

 

Sua avó é uma serrana,

que lá para aquelas bandas

por muito tempo floriu.

 

Eu não sei se será minha!...

 

Mas já fiz uma promessa

à Virgem Santa das Dores,

que é minha boa madrinha.

 

Já me disseram maldosos

que ela gosta de um mocinho

de nome – Antonio Mangaba,

que é muito rico e formoso,

e que vive a tanger porcos

lá pra os sertões de Aguapaba.

 

Não sei que será de mim!

 

Mas se eu souber algum dia

que a mulher que é minha eleita

vive alegre e satisfeita

por ser muito bem casada,

pedirei à Santa Virgem,

que vive por muitos anos

com o tangedor da porcada.

 

Fale agora o Zé Mateus,

esse aclamado ancião,

que já tem mais de cem anos,

que foi o maior sambeiro

das festas deste sertão.

 

ZÉ MATEUS

(Sambador)

 

Fui sambador, Tangerino!

 Fui sambador, meu menino!

E sambador sem rivais!

 

Estas pernas, hoje bambas,

foram rainhas de sambas,

em noites que não vêm mais.

 

Que importa que os cantadores

cantassem lá seus amores

nos seus pinhos gemedores

e nas violas “cruéis”,

se eu, debaixo destas solas,

trazia duas violas,

a soluçar nos meus pés?!

 

Ai, noites de São João!

 

Noites do Santo dos Santos!

 

Alma das cordas e cantos

e das fogueiras do amor!

Mãe dos abraços e beijos,

dos inocentes desejos

dos foliões sertanejos

e deste teu sambador!

 

Foi n’uma das tuas noites

que eu vi a Chica dos Patos,

que era a fada destes matos,

- a terra natal de Deus!

 

A Chica que está tão feia!

 

Ela que era uma sereia!

E é hoje a minha candeia,

mãe dos doze filhos meus!

 

Foi n’uma das tuas noites,

das tuas noites gloriosas,

quando, n’um monte de rosas,

com estes pés beijava o chão,

que eu perdi, n’uma umbigada,

(vinha rompendo a alvorada!)

peito e alma e coração!

 

(Como se perde, São João,

meu São João, meu santo amigo,

o pobre do coração

n’uma pancada de umbigo?!)

 

Tudo passa neste mundo!

 

Só a saudade é que fica!

 

Coitada da pobre Chica!

 

Com que dor vejo os seus olhos,

pela idade emurchecidos,

seus cabelos branquecidos,

seus braços encarquilhados!

 

E aqueles frutos do seio,

que já foram tão viçosos,

e que parecem, saudosos,

dois ninhos abandonados!

 

Amigos! Sejamos francos!

 

Viver de cabelos brancos,

a relembrar o passado,

que inda morto, nos conforta,

pode ter muita poesia,

mas é sentir a agonia

da mocidade, já morta!

 

Mocidade... Ó mocidade!

Tu me deixaste!... És ingrata!

Eu tanto por ti chorei,

tanto por ti solucei,

que, afinal, me conformei

com a velhice, a enfermidade,

que lentamente me mata!

 

Agora, o que me maltrata,

não és tu! Mas a saudade 

de ti, minha mocidade!

Esta saudade infinita!

 

Esta serpente maldita,

que se enrosca dentro d’alma,

só para roubar a calma

de um pobre velho vencido,

pela angústia encanecido,

com as suas forças quebradas

e um par de pernas inchadas,

que mal se podem mover,

pernas que já não são minhas,

mas que já foram rainhas,

e já fizeram, vaidosas,

muitas morenas dengosas,

muitas caboclas mimosas

por elas endoidecer!!

 

Mas, não!! Saudade bendita!

 

Não me deixes! Ressuscita

os meus triunfos de amores

daqueles sambas de então,

em que estes pés sedutores,

hoje tão cheios de dores,

já foram dois beija-flores,

voejando sobre o papogo

das rosas embraseadas

dessas roseiras de fogo,

dessas rosadas fogueiras

das noites de São João!

 

Amigos!... Por caridade,

demos um “morra” à Velhice

e outro “morra” à Enfermidade,

essas duas cascavéis,

e afinem vossas violas,

vossas violas revéis,

gritando todos comigo,

para que a dor nos conforte:

Viva a Vida e morra a Morte,

e bebamos, recordando

o tempo dos seresteiros,

em que, eu, o rei dos sambeiros,

rodopiando nos terreiros

das choças dos menestréis,

trazia, n’um pé de alferes,

a alma inteira do samba,

a ternura das violas,

a inspiração dos violeiros,

e o coração das mulheres,

debaixo destes meus pés!!!

 

Sim! Cantemos a saudade,

pois que tanto bem nos quer!

 

Mas, agora, meus senhores,

quem vai falar da mulher

é o grande rei dos cantores,

Flor da Noite!... O Trovador!

 

                   ---------------

 

Dada a palavra ao violeiro

pelo grande sambador,

no recanto do terreiro

abriu as flores cheirosas

um cheiroso jasmineiro.

 

Até parece que Deus,

que a prima também consola,

para escutar a viola

tinha descido dos céus!

 

Pela sua descensão,

um galo de voz castiça

rezou a primeira missa

no grande altar do sertão.

 

Tudo em silêncio ficou!...

 

Foi quando o rei dos violeiros,

com a viola levantando,

foi a garganta afinando

pelo gemido da prima,

e pelo canto do galo,

que n’um soluço vibrou.

 

E foram estes os versos

que o caboclo improvisou:

 

“Não sei se posso dizer-vos,

com todo o ardor e paixão,

os versos que eu sinto agora

palpitando na sonora

viola do coração.

 

Vou consultar a vontade

desta de pinho – a Senhora,

que, às vezes, quer e outras vezes,

voluntariosa, não quer!

 

Não lhe estranho esses caprichos,

porque a viola é uma mulher.

 

O céu, todo rendilhado,

de estrela apavonado,

agora que a terra dorme

nestas horas mais desertas,

parece as asas abertas

de uma borboleta enorme,

voando em busca de Deus!

 

Pois bem: ouvi-me o que eu penso

dos homens e das mulheres,

nestes simples versos meus.

 

“Q sol é homem! É firme!

A lua é mulher – Varia!

O sol tem sangue de fogo!

A lua, calma e dolente,

tem sangue de gelo!... É fria!

 

De manhã, heroicamente,

vibrando um canto de guerra,

na crista daquela serra,

vê-se o sol enrubescer!

 

E a lua, com os seus caprichos,

que anda sempre com as estrelas

comadreando em cochichos,

não tem hora de nascer!

 

Finda a missão da jornada,

o sol, à hora aprazada,

vai-se numa apoteose

de azul e de rosicler!

 

A lua, sempre aluada,

sempre e sempre irrefletida,

não tem hora de partida!

Segundo a sua nevrose,

vai-se embora, quando quer!

 

O sol, que é o sol, (sempre o mesmo!)

na severa austeridade,

como o emblema da verdade,

caminha com impavidez!

 

A lua, se é hoje inteira,

amanhã vem por metade,

e, assim, vai escasseando...

vai minguando... vai minguando...,

até sumir-se de vez!

 

O sol fecunda as sementes

com os jorros incandescentes

dos raios embraseados!

 

A lua, essa alcoviteira,

só fecunda a sementeira

dos corações namorados!

 

O sol, sempre obediente

às ordens do Onipotente,

(com toda a sua energia),

nunca teve a ousadia,

de invadir a uma só noite

as plagas celestiais!

 

Mas quem já não viu a lua

deixar a noite, que é sua,

para andar no céu de dia,

desrespeitando a harmonia

das próprias leis naturais?!

 

Mesmo em nuvens empanado,

o sol, másculo e fecundo,

desde o princípio do mundo,

não deixou de iluminá-lo

com o facho do seu clarão!

 

A lua, se tem vontade,

nos brinda com a claridade,

para depois, sem piedade,

deixar-nos noites e noites

em completa escuridão!

 

                ----------

 

Mas se o sol, o sol radioso,

se o sol é um pão luminoso,

um cérebro em combustão,

a lua magnificente

há de ser, eternamente,

a hóstia do coração.

 

Se o sol morre combatendo,

em sangue rubro fervendo,

no meio de um fogaréu,

a lua sempre falece

rezando triste uma prece

e com saudades do céu!

 

O sol, desde que alvorece,

chama os grandes lutadores

para viver e lutar!...

 

A lua, quando anoitece,

surgindo em seus resplendores,

vai chamando os sonhadores

para com ela sonhar!

 

O sol, em perpétuo anseio,

sem escrúpulo, sem receio,

com a sua luz vigorosa,

com o seu fulgor requeimante,

descobre tudo o que é feio

e tudo que é repugnante!...

 

A lua, mais caridosa,

com a sua doce meiguice,

com a sua alma nazarena

e o coração lacrimal,

consola toda velhice,

toda lágrima queixosa,

porque é mulher e tem pena

da miséria universal!

 

Se o rei do dia, acordando,

abre a corola dos ninhos,

despertando os passarinhos,

para fazê-los cantar,

quando a rainha da noite

perlustra as plagas sidéreas,

remexe até nas artérias

do cérebro azul do mar!

 

Desde o instante em que transmonta,

sem repousar um momento,

a mourejar, solitário,

o sol, o eterno operário,

vai varrendo o firmamento

das infindas amplidões,

para, depois, vir a lua,

 rodeada de escravas de ouro,

ostentar todo o tesouro

das suas constelações!

 

O sol, que é o pai das queimadas,

das plantas carbonizadas

faz as grandes adubadas,

para com o sangue das cinzas

reverdecer o sertão!

 

Depois é que vem a lua,

como irmã de caridade,

com o seu óleo de piedade,

refrescar as queimaduras

da pobre vegetação.

 

O sol, o químico eterno,

que todos nós veneramos,

faz da terra, que habitamos,

um grande laboratório,

para a vida eternizar:

mas basta que a lua esponte

e os círios de ouro estelares

acenda nos seus altares,

onde começa a rezar,

 para que logo transforme

o céu, n’um zimbório enorme,

o espaço, n’um templo augusto,

e a Terra, n’um grande altar.

 

Mas para dizer-vos tudo

o que me vem à lembrança,

 nestes versos que improviso,

segundo a vossa vontade,

eu vos direi, finalmente,

que o sol é sempre a Esperança,

e a lua é sempre a Saudade!”

 

         ***

 

Nesse instante, muito longe,

na crista verde da serra,

o azul do céu desmaiou!

 

Um galo alegre e saudoso,

batendo as asas, nervoso,

no seu clarim, clarinou!

 

Então o rei dos cantores,

com os olhos postos ao longe,

refinando a garganta

pela nota cristalina

do galo que além cantou,

 

“Companheiros”, exclamou:

 

“É a lua que se anuncia!

É a noiva do rei do dia!

A Sagrada Eucaristia

da mulher, Mãe de Jesus,

porque ela é o seio da noite

que nutrifica as saudades

de todas as orfandades,

com o leite da sua luz!

 

E para que fique eterna

a Saudade desta noite,

desta palestra assistida

pela presença de Deus,

como o velho Zé Mateus,

para que a dor nos conforte,

 

afinem vossas violas,

a Jesus Cristo louvemos,

e n’um só grito, gritemos:

Viva a Vida e morra a Morte.”

 

Quando o verso derradeiro

saiu do peito altaneiro

de Flor da Noite, o violeiro,

ao terminar a canção,

houve uma salva de palmas

de todas aquelas almas,

vibrantes de comoção,

porque, meigamente nua,

vinha despontando a lua,

em plena ressurreição!!

 

(POEMAS BRAVIOS)

Catulo da Paixão Cearense


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“Catulo Cearense é a flor máxima da flora sertaneja. A sua obra é obra de arte e não de artifício. Não é a poesia anônima dos quadros do sertão, , onde a beleza é um relâmpago fugitivo. O seu livro é essa beleza captada, acarinhada, penetrada. É o relâmpago prisioneiro, pelas páginas em fora, como uma esteira de luz.”

                                                         

Amoroso Lima - Tristão de Athayde

(da Academia de Letras)


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