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quarta-feira, 14 de junho de 2017

MAIS DE MIL BEIJOS - Zuenir Ventura


Mais de mil beijos 


Felizmente, não acompanhei a encenação do Tribunal Superior Eleitoral para absolver a chapa Dilma-Temer. Foi um dos espetáculos mais caros e dispensáveis promovidos pela Justiça brasileira. Dispensável e custoso porque já se anunciava por antecipação o resultado e, portanto, não era preciso pronunciar tantas palavras inúteis e jogar fora tanto dinheiro nosso: durante os quatro dias de apresentações foram gastos mais de R$ 20 milhões, já que, de acordo com a ONG Contas Abertas, o TSE — também conhecido como Tribunal Superior de Egos — custa aos cofres públicos inacreditáveis R$ 5,4 milhões por dia ou R$ 2 bilhões por ano.

Eu estava em outro país, onde pessoas se dedicam a preparar um futuro diferente. Com mais quatro escritores — Nélida Piñon, Verissimo, Lya Luft e Loyola Brandão — participamos do projeto Combinando Palavras, da 17ª Feira Nacional do Livro de Ribeirão Preto, uma iniciativa que envolve na leitura 5.500 estudantes da rede pública estadual. Durante meses e sob a orientação e o estímulo de dedicadas professoras, esses jovens mergulharam na obra dos cinco, interpretando-as e produzindo textos a partir do que leram: crônicas, poemas, além de desenhos e caricaturas. 

Depois, lotando completamente um teatro, 1.100 deles se encontraram cada dia com um escritor (como Lya não pôde viajar, participou por videoconferência). Pelo que me contaram Nélida e Verissimo, eles sentiram o que senti: a certeza de que nem tudo está perdido. Ao contrário. A experiência que vivemos ali desmente os estereótipos negativos — que a juventude não gosta de ler, que só quer saber de internet, que jovens só se juntam para fazer bagunça. Isso existe, claro, mas, como ensinou a professora Adriana Silva, presidente da Fundação do Livro e Leitura de RP, “não podemos transformar fatos ruins em realidade eterna”.

Durante umas duas horas, a conduta civilizada desses adolescentes do ensino médio serviu de contraponto às desagradáveis cenas ocorridas no TSE. Atentos, interessados, com intervenções pertinentes, eles demonstraram pelas perguntas que haviam assimilado criticamente o que tinham lido. E mais: os representantes das várias escolas que subiram ao palco para nos homenagear nos comoveram. No meu dia, fiquei tão emocionado que, sem conseguir palavras, recorri a um gesto, dizendo que gostaria de agradecer dando um beijo em cada um/a da plateia. A ideia foi recebida com entusiasmo e, assim, devo ir para o Livro dos Recordes: distribuí mais de mil beijos e posei para outras tantas selfies numa só manhã. Mesmo para um beijoqueiro como eu, foi um feito inédito.

O Globo, 14/06/2017

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Zuenir Ventura - Sétimo ocupante da Cadeira n.º 32 da ABL. Foi eleito no dia 30 de outubro de 2014, na sucessão do Acadêmico Ariano Suassuna, e recebido no dia 6 de março de 2015, pela Acadêmica Cleonice Berardinell

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CORAÇÃO EM PAZ - Gloria Wendroff

Coração em paz


Se teu coração fosse um oceano, que tipo de oceano gostarias que ele fosse? Agitado, tumultuoso? Tranquilo, sereno?
Conscientemente escolherias o oceano tranquilo, um oceano ideal para um veleiro, suavemente ondulado pela brisa. Não escolherias um oceano tempestuoso, um furacão, um tufão, um ciclone, um redemoinho no mar.

Sabes muito bem que escolherias um oceano calmo. Entretanto, amado, o que tens escolhido com mais frequência? Um coração turbulento.

Quantas vezes por semana te agarras ao teu coração? Quantas vezes por semana ele desaba? Quem é que escolhe para onde teu coração vai?

Mesmo em mares turbulentos, manterias teu equilíbrio. Mas, com teu coração  deixas que aconteça qualquer coisa, que ele vá para qualquer lado; para cima, para baixo, para a extrema esquerda, para a extrema direita, para frente e para trás, deste jeito ou daquele jeito… Fazes uma tormenta do teu coração, mesmo quando ele está seguro no porto.

Teu coração não precisa ser selvagem. Teu coração não precisa ser uma “ópera de sabão”, uma telenovela. Teu coração não precisa ser um navio na tormenta. 

Tem pena do teu coração, e deixa que ele enfrente a vida com calma. Não há nenhuma necessidade de destruíres teu coração. Dizes que queres paz, entretanto o que tens vivido?

Mesmo quando há uma tempestade na vida, não precisas maltratar teu coração. Corações são feitos para o amor, não para perturbação. Corações são destinados a velejar suavemente pela vida. Faz as pazes com teu coração. 

Se teu coração fosse um navio, nem sempre o navegarias a todo vapor. Serias um proprietário mais amável; permitirias que teu coração tivesse momentos de descanso. Sê um mestre gentil para o teu coração. Não o faças passar por acessos de raiva. Sê agradável ao teu coração.

Diga ao teu amigo fiel: Calma, calma, coração. Não precisas viver numa tempestade; fica em águas tranquilas. Providenciarei para que descanses de atividades horríveis. Sou grato a ti. Bates por mim tantas vezes a cada minuto; entretanto, podes tomar fôlego entre uma batida e outra.

Vou afrouxar as rédeas e deixar que caminhes numa pulsação tranquila. Isto é o mínimo que posso fazer por ti. 

Não te farei trabalhar tão duro de agora em diante. Vou te conduzir às águas serenas. Vou te mostrar como remar ao longo da vida como se estivesses numa canoa sobre águas cantantes.

Vou acalmar-te e abençoar-te. Permitirei que vivas em paz e tranquilidade. Não vou mais aborrecer-te. Seja o que for que aconteça, não vou mais chicotear-te.

Não vou deixar-te irritado, nem acelerado nem aborrecido. Deixarei que sejas o coração que Deus me deu; não vou mais permitir que te agites.

Peço que me desculpes, meu coração, por toda perturbação que tenho causado a ti. Tens sido um coração bom, fiel e esforçado, e não mais o farei trabalhar tão duro. De agora em diante, vou ser uma bênção para ti.

Nós – eu e tu, querido coração – velejaremos para cima e para baixo pelos Altos Mares do Amor, e isto é o que nos ocupará.

Ouço tua batida, meu coração, e ela é firme e uniforme. Obrigado por permaneceres junto a mim e por me mostrares como suavizar as ondas da vida.
Faz as pazes com teu coração.


 Gloria Wendroff


Enviado por: " Gotas de Crystal" <gotasdecrystal@gmail.com>

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JUNHO – MÊS DE MACHADO DE ASSIS (VIII)

1888
19 de maio
Bons Dias!



Eu pertenço a uma família de profetas après coup, post factum, depois do gato morto, ou como melhor nome tenha em holandês. Por isso digo juro se necessário for, que toda a história desta lei de 13 de maio estava por mim prevista, tanto que na segunda-feira, antes mesmo dos debates, tratei de alforriar um molecote que tinha, pessoa de seus dezoito anos, mais ou menos. 

Alforriá-lo era nada; entendi que, perdido por mil, perdido por mil e quinhentos, e dei um jantar.

Nesse jantar, a que meus amigos deram o nome de banquete, em falta de outro melhor, reuni umas cinco pessoas, conquanto as notícias dissessem trinta e três (anos de Cristo), no intuito de lhe dar um aspecto simbólico.

No golpe do meio (coupe do milieu, mas eu prefiro falar a minha língua) levantei-me eu com a taça de champanha e declarei que acompanhando as idéias pregadas por Cristo, há dezoito séculos restituía a liberdade ao meu escravo Pancrácio; que entendia a que a nação inteira devia acompanhar as mesmas idéias e imitar o meu exemplo; finalmente, que a liberdade era um dom de Deus que os homens não podiam roubar sem pecado.

Pancrácio, que estava à espreita, entrou na sala, como um furacão, e veio abraçar-me os pés. Um dos meus amigos (creio que é ainda meu sobrinho) pegou de outra taça e pediu à ilustre assembéia que correspondesse ao ato que acabava de publicar brindando ao primeiro dos cariocas. Ouvi cabisbaixo: fiz outro discurso agradecendo, e entreguei a carta ao molecote. Todos os lenços comovidos apanharam as lágrimas de admiração. Caí na cadeira e não vi mais nada. De noite, recebi muitos cartões. Creio que estão pintando o meu retrato, e suponho que a óleo.

No dia seguinte, chamei o Pancrácio e disse-lhe com rara franqueza:
— Tu és livre, podes ir para onde quiseres. Aqui tens casa amiga, já conhecida e tens mais um ordenado, um ordenado que...

— Oh! meu senhô! Fico.

— Um ordenado pequeno, mas que há de crescer. Tudo cresce neste mundo: tu cresceste imensamente. Quando nasceste eras um pirralho deste tamanho; hoje estás mais alto que eu. Deixa ver; olha, és mais alto quatro dedos...

— Artura não qué dizê nada, não, senhô...

— Pequeno ordenado, repito, uns seis mil-réis: mas é de grão em grão que a galinha enche o seu papo. Tu vales muito mais que uma galinha.

— Eu vaio um galo, sim, senhô.

— Justamente. Pois seis mil-réis. No fim de um ano, se andares bem, conta com oito. Oito ou sete.

Pancrácio aceitou tudo: aceitou até um peteleco que lhe dei no dia seguinte, por me não escovar bem as botas; efeitos da liberdade. Mas eu expliquei-lhe que o peteleco, sendo um impulso natural, não podia anular o direito civil adquirido por um título que lhe dei. Ele continuava livre, eu de mau humor; eram dois estados naturais, quase divinos.

Tudo compreendeu o meu bom Pancrácio: daí para cá, tenho-lhe despedido alguns pontapés, um ou outro puxão de orelhas, e chamo-lhe besta quando lhe não chamo filho do diabo; cousas todas que ele recebe humildemente, e (Deus me perdoe!) creio que até alegre.

O meu plano está feito; quero ser deputado, e, na circular que mandarei aos meus eleitores, direi que, antes, muito antes de abolição legal, já eu em casa, na modéstia da família, libertava um escravo, ato que comoveu a toda a gente que dele teve notícia; que esse escravo, tendo aprendido a ler, escrever e contar, (simples suposição) é então professor de filosofia no Rio das Cobras: que os homens puros, grandes e verdadeiramente políticos, não são os que obedecem à lei, mas os que se antecipam a ela, dizendo ao escravo: és livre, antes que o digam os poderes públicos, sempre retardatários, trôpegos e incapazes de restaurar a justiça na terra, para satisfação do céu.

Boas noites
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