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domingo, 22 de outubro de 2017

O SARAU - Joaquim Manuel de Macedo

O Sarau

Um sarau é o bocado mais delicioso que temos, de telhados abaixo. Em um sarau todo mundo tem que fazer. O diplomata ajusta, com um copo de champanha na mão, os mais intrincados negócios; todos murmuram, e não há quem deixe de ser murmurado. O velho lembra-se dos minuetes e das cantigas de seu tempo, e o moço goza de todo os regalos de sua época; as moças são no sarau como as estrelas no céu; estão no seu elemento: aqui uma, cantando suave cavatina, eleva-se vaidosa nas asas dos aplausos, por entre os quais surde, às vezes, um bravíssimo inopinado, que solta de lá da sala do jogo o parceiro que acaba de ganhar a sua partida no écarté, mesmo na ocasião em que a moça se espicha completamente, desafinando um sustenido; daí a pouco vão as outras, pelos braços de seus pares, se deslizando pela sala e marchando em seu passeio, mais a compasso que qualquer de nossos batalhões da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que conversam sempre sobre objetos inocentes que movem olhaduras e risadinhas apreciáveis. Outras criticam de uma gorducha vovó, que ensaca nos bolsos meia bandeja de doces que veio para o chá, e que ela levava aos pequenos que, diz, lhe ficaram em casa. Ali vê-se um ataviado dandy que dirige mil finezas a uma senhora idosa, tendo os olhos pregados na sinhá, que senta-se ao lado. Finalmente, no sarau não é essencial ter cabeça nem boca, porque, para alguns, é regra, durante ele, pensar pelos pés e falar pelos olhos.

E o mais é que nós estamos num sarau. Inúmeros batéis conduziram da corte para a ilha de... senhoras e senhores, recomendáveis por caráter e qualidades; alegre, numerosa e escolhida sociedade enche a grande casa, que brilha e mostra em toda parte borbulhar o prazer e o bom gosto.

Entre todas essas elegantes e agradáveis moças, que com aturado empenho se esforçam para ver qual delas vence em graça, encantos e donaires, certo sobrepuja a travessa Moreninha, princesa daquela festa.

 Hábil menina é ela! Nunca seu amor-próprio presidiu com tanto estudo tributo seu toucador e, contudo, dir-se-ia que o gênio da simplicidade a penteara e vestira. Enquanto as outras moças haviam esgotado a paciência de seus cabeleireiros, posto em tributo toda a habilidade das modistas da Rua do Ouvidor e coberto seus colos com as mais ricas e preciosas jóias, D. Carolina dividiu seus cabelos em duas tranças, que deixou cair pelas costas: não quis ornar o pescoço com seu adereço de brilhantes, nem com seu lindo colar de esmeraldas; vestiu um finíssimo, mas simples vestido de garça, que até pecava contra a moda reinante, por não ser sobejamente comprido. E vindo assim aparecer na sala, arrebatou todas as vistas e atenções.

Porém, se um atento observador a estudasse, descobriria que ela adrede se mostrava assim, para ostentar as longas e ondeadas madeixas negras, em belo contraste com a alvura do seu vestido branco, para mostrar, todo nu, o elevado colo de alabastro, que tanto a aformoseia, e que seu pecado contra a moda reinante não era senão um meio sutil de que aproveitara para deixar ver o pezinho mais bem feito e mais pequeno que se pode imaginar.

Sobre ela estão conversando agora mesmo Fabrício e Leopoldo. Terminam sem dúvida a sua prática. Não importa; vamos ouvi-los.

- Está na verdade encantadora!... repetiu pela quarta vez aquele.

- Dança com ela? perguntou Leopoldo.

- Não, já estava engajada para doze quadrilhas.

- Oh! lá vai ter com ela o nosso Augusto. Vamos apreciá-lo.

Os dois estudantes aproximaram-se de Augusto, que acabava de rogar à linda Moreninha a mercê da terceira quadrilha.

- Leva de tábua, disse Fabrício ao ouvido de Leopoldo... é a mesma que eu lhe havia pedido.

Mas a jovenzinha pensou um momento antes de responder ao pretendente; olhou para Fabrício e com particular mover de lábios pareceu mostrar-se descontente; depois riu-se e respondeu a Augusto:

- Com muito prazer.

- Mas, minha senhora, disse Fabrício, vermelho de despeito e aturdido com um beliscão que lhe dera Leopoldo; há cinco minutos já estava engajada até a duodécima.

- É verdade, tornou D. Carolina; e agora só acabo de ratificar uma promessa: o Sr. Augusto poderá dizer se ontem pediu-me ou não a terceira contradança?

- Juro... balbuciou Augusto.

- Basta! acudiu Fabrício interrompendo-o; é inútil qualquer juramento de homem, depois das palavras de uma senhora.

Fabrício e Leopoldo retiraram-se; D. Carolina, que tinha iludido o primeiro, vendo brilhar o prazer na face de Augusto, e temendo que daquela ocorrência tirasse este alguma explicação lisonjeira demais, quis aplicar um corretivo e, erguendo-se, tomou o braço de Augusto. Aproveitando o passeio, disse:

- Agradeço-lhe a condescendência com que ia tomar parte na minha mentira... foi necessário que eu praticasse assim; quero antes dançar com alguém, do que com aquele seu amigo.

- Ofendeu-lhe, minha senhora?

- Certo que não, mas... diz-me coisas que não quero saber.

- Então... que diz ele?...

- Fala tantas vezes em amor...

- Meu Deus! é um crime que eu tenho estado bem perto de cometer!

- Pois bem, foi esta a única razão.

- Mas eu temo perder a minha contradança... alguns momentos mais e eu serei réu como Fabrício.

- A culpa será de seus lábios.

- Antes dos seus olhos, minha senhora.

- Cuidado, Sr. Augusto! lembre-se da contradança!

- Pois será preciso dizer que a detesto?...

- Basta não dizer que me ama.

- É não dizer o que sinto, eu... não sei mentir.

- Ainda há pouco ia jurar falso...

- Nas palavras de um anjo ou de uma...

- Acabe.

- Tentaçãozinha.

- Perdeu a terceira contradança.

- Misericórdia! eu não falei em amor!...

Neste momento a orquestra assinalou o começo do sarau. É preciso antecipar que nos não vamos dar ao trabalho de descrever este; é um sarau, como todos os outros, basta dizer o seguinte:

Os velhos lembraram-se do passado, os moços aproveitaram o presente, ninguém cuidou do futuro. Os solteiros fizeram por lembrar-se do casamento, os casados trabalharam por esquecer-se dele. Os homens jogaram, falaram em política e requestaram as moças; as senhoras ouviram finezas, trataram de modas e criticaram desapiedadamente umas das outras. As filhas deram carreirinhas ao som da música, as mães, já idosas, receberam cumprimentos por amor daquelas, as avós, por não ter que fazer nem que ouvir, levaram todo o tempo a endireitar as toucas e a comer doces. Tudo esteve debaixo destas regras gerais, só resta dar conta das seguintes particularidades:

D. Carolina sempre dançou a terceira contradança com Augusto, mas, para isso, foi preciso que a Sra. D. Ana empenhasse todo o seu valimento; a tirana princesinha da festa esteve realmente desapiedada; não quis passear com o estudante.

A interessante D. Violante fez o diabo a quatro: tomou doze sorvetes, comeu pão-de-ló, como nenhuma, tocou em todos os doces, obrigou alguns moços a tomá-la por par e até dançou uma valsa de corrupio.

Augusto apaixonou-se por seis senhoras com quem dançou; o rapaz é incorrigível. E assim tudo o mais.

Agora são quatro horas da manhã; o sarau está terminado, os convidados vão retirando-se e nós, entrando na toilette, vamos ouvir quatro belas conhecidas nossas, que conversam com ardor e fogo.
                                                             [...]

(A MORENINHA, capítulo 16)
Joaquim Manuel de Macedo

Fonte:Academia Brasileira de Letras-ABL
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Joaquim Manuel de Macedo - Jornalista, professor, romancista, poeta, teatrólogo e memorialista, nasceu em Itaboraí, RJ, em 24 de junho de 1820, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 11 de abril de 1882. É o patrono da cadeira n. 20, por escolha do fundador Salvador de Mendonça.

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ECOS DO CAMPO DA DESPORTIVA - Cyro de Mattos

Imagem: Fotomontagem ICAL
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Ecos do campo da desportiva
Cyro de Mattos                      

Recebi e-mail de Florisvaldo Mattos, grapiúna de Uruçuca, antiga Água Preta, jornalista e consagrado  poeta baiano.
Transcrevo abaixo  o que  ele mandou dizer:

            “Vivamente interessado, até curioso e encantado, logo que recebi hoje, bailei (como dizem os argentinos) por toda a extensão de seu O Velho Campo da Desportiva, lembrando de coisas a que assisti, acompanhei, e pessoas, então jovens, com as quais convivi, e até com elas joguei em peladas vespertinas naquele templo de emoções juvenis, em companhia de Vitório e seu irmão, o vitorioso e consagrado no futebol amador, Zequinha Carmo, ambos meus colegas no Ginásio da Divina Providência. Joguei também peladas com mais dois ali, cujos nomes não lembro agora, embora não lhes tenha acompanhado as carreiras vitoriosas, desde que, quando brilharam  na seleção de Itabuna e em clubes, eu já não andava por Itabuna, estava formado e fazendo jornalismo em Salvador. Joguei  também na Desportiva com Santinho e Tombinha.  No entanto, presenciei pelo menos dois eventos daquela saga aqui na capital: quando da conquista do torneio intermunicipal na Fonte Nova, em 1957 (tinha que estar lá por questão de honra e fidelidade a origens adolescentes), e, em 1961, quando a seleção jogava uma partida, no Campo da Graça, então destinado a jogos da divisão de amadores, contra seleção municipal cujo nome não guardo, mas lembro que a vitória pertenceu a Itabuna, com Zequinha Carmo goleador.

            “Suas narrativas me trouxeram novidades interessantes, mas as maiores foram  referentes ao jogador Nandinho (Epaminondas da Silva Moura), que jogou no Flamengo, com muita classe e fama nos anos de 1941, 42 e 43, sendo duas vezes campeão, na avalanche para o tricampeonato de 1944. Primeiro, não sabia que ele era itabunense; nem que era tio do saudoso Santinho. Sabia que jogara no Bahia. Tanta fama conquistou este craque, malabarista da bola e goleador, que talvez seja o único futebolista baiano a figurar em letra de samba, como neste que foi sucesso na época (1941) na voz do grande Moreira da Silva - "Doutor em futebol", samba de Waldemar Pujol e Moacyr Bernardino -, em cuja letra protagonizam dois versos, acentuando a ginga da interpretação, pois, numa tirada de humor malandro, o personagem promete ser "um craque verdadeiro, um perigoso artilheiro, e ser sucessor de Pirilo" (grande goleador daquele Flamengo), para então adiante avisar: "suplantando o sêo Nandinho", no drible de corpo. Fui ver no Google, Nandinho nasceu em 8 de novembro de 1922, não em 1921, mas não encontrei data de falecimento dele. Estará vivo ainda? Como resgate de uma saga esportiva, seu livro é um primor de memória cultural e sentimental. Em tempo: também tive dúvidas quanto ao time em que jogava o craque mineiro Barbatana, um primor de centromédio, hoje meia de ligação, eu vi jogar. Suponho que se chamava Metalusina. Parabéns, grande, e um abraço. Florisvaldo”.

            Já em outro e-mail,  opina o poeta e jornalista  sobre o conteúdo sensibilizado do meu  livro O Velho Campo da Desportiva: “É um livro precioso, para espíritos que se associam a essa lembrança  do passado itabunense recente, ditado pelas vozes do coração e do amor à terra e sua  gente”.

            Gratificado por essas ressonâncias que o meu livro causou no jornalista e poeta Florisvaldo Mattos, informo  que   O Velho Campo da Desportiva não tem a pretensão de ser  um livro de história, no qual  se faz necessário relacionar, com precisão e detalhes,  os fatos importantes da vida em determinado lugar,  sequenciando os momentos,  indicando   datas,  apontando eventos e ressaltando o papel de certos personagens envolvidas com o assunto para, assim, em níveis investigativos, documentais e interpretativos,  valorizar o estar no mundo dos seres humanos em sua natureza gregária.
  
            O Velho Campo da Desportiva é um livro de memórias esportivas  de uma cidade do interior. Relata na primeira parte a atuação de dirigentes e jogadores, recria alguns momentos pitorescos na segunda e na terceira  dá estofo literário ao que o autor viveu e sentiu com a alma latejando emoções sobre a vida em determinado lugar de sua terra natal. Não é um livro que objetiva fazer um minucioso inventário histórico do futebol amador de sua terra natal. Não quer trazer do palco da vida  pessoas e fatos para servir de apoio documental a  quem queira dissertar, numa tese, sobre  determinada época esportiva  no interior baiano, em níveis factuais com base na verdade histórica.
 
            Vê-se, sem esforço, que em O Velho Campo da Desportiva circula gente,  jogadores, torcedores, dirigentes e comunicadores. Gente que deu  tantas emoções a quem viveu essa época,  possibilitando ao autor recordações que tocam o coração e que hoje  reavivadas em forma de livro  emergem  do tempo  para transmitir sentimentos às novas gerações.   Com pedaços da vida, o livro busca recuperar até certo ponto a cor e o amor de um tempo perdido,   sem a preocupação de querer  agradar o ego de algumas pessoas, sobreviventes daquela saga. É evidente que em livro desse teor não se pode falar de todos os seus  protagonistas, como alguns certamente gostariam e mereciam.
    
            Quanto ao missivista Florisvaldo Mattos,  poeta renomado, de linguagem cativante, aclamado pela crítica nacional,  resta agradecer comovido suas impressões acerca de  meu livro, Vale lembrar  mais uma vez que as  memórias relatadas de O velho Campo da Desportiva, na primeira parte, têm  como fonte o programa “O Túnel do Tempo”, do radialista  Marcos Soares, já os outros  textos  são crônicas em que se procura perenizar  o efêmero que passa na aventura diária da vida.
 
            Com o melhor abraço, homenagem e afeto, O Velho Campo da Desportiva  é dedicado aos que  fizeram daquele campo de futebol amador  um lugar de encanto, lazer e emoções tantas.  Um templo da bola no pé para guardar no coração.  
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Cyro de Mattos é jornalista, cronista, contista, romancista, poeta e autor de livros para crianças. Publicado em Portugal, Itália, França, Espanha, Alemanha, Rússia, Dinamarca, México e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia, Academia de Letras de Ilhéus e Academia de Letras de Itabuna. Doutor Honoris Causa pela Universidade Estadual de Santa Cruz.

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RELATO DE UM ERRO DE AVALIAÇÃO - Marcello Miller

Mauro Pimentel/Folhapress
O ex-procurador Marcello Miller na sede da Procuradoria Regional da República da 2ª Região, no Rio

22/10/2017  

Em 2003, deixei a carreira diplomática para me juntar ao Ministério Público e ser parte de seu impulso transformador.

No MPF, tive a honra de integrar, de fevereiro de 2015 a julho de 2016, o grupo de trabalho que auxiliava o procurador-geral da República na Operação Lava Jato.

Depois da Lava Jato, que auxiliei pela última vez em outubro de 2016, o mesmo gosto pelo desafio que me levou para o MPF me fez pensar em novos ares. Não fui para a iniciativa privada para ficar rico -e não fiquei. Havia, sim, boa perspectiva financeira. Mas havia, além disso, a oportunidade ímpar de participar de grandes projetos de compliance (conformidade com boas práticas) em escala mundial.

A propósito de carta do senhor presidente da República aos senhores deputados e senadores com referência a meu nome, esclareço os seguintes pontos:

A J&F precisava de remediação urgente, e minha saída do MPF atraiu sua atenção. Mas não deixei o MPF para atendê-la, ou teria aceitado a proposta para ser seu diretor global de compliance.

Nem a orientei a contratar tal ou qual escritório: o trabalho era complexo, especializado e envolvia mais que negociar acordos com autoridades, exigindo investigação interna e revisão geral do programa de compliance. A escolha ia bem além de mim.

Depois de pedir exoneração do MPF, mas antes de seus efeitos, estive múltiplas vezes com executivos da J&F. Essencialmente, recebi informações sobre o grupo. O convite para que me integrasse a ele também foi pauta constante.

Além disso, discutimos o projeto de remediação da J&F. Respondi a perguntas sobre estimativas de prazo, sobrevida empresarial, confiabilidade das instituições e harmonização de tratativas entre jurisdições. Perguntas gerais e respostas abertas, porque era um processo de construção de confiança.

Pelo caráter episódico, preparatório e não remunerado dessa interação, tenho convicção de que não incorri em irregularidade. Consultoria jurídica é atividade profissional remunerada e de escopo definido, com respostas precisas para questões específicas, ou não passaria de um conjunto de palpites.

Minha atuação seria voltada para as pessoas jurídicas, e a face negocial desse trabalho seria o acordo de leniência. Para assessorar seus executivos em colaboração premiada, a J&F contava com criminalistas. Alguma pergunta que me tenha sido feita sobre o assunto não invalida o que precede.

Nunca orientei ninguém, em minha vida profissional, a gravar conversas. O que sempre disse é que relatos de colaboradores devem ser baseados em provas.

Participei de tratativas de colaboração premiada, inclusive na Operação Lava Jato, em que colaboradores, sem apresentar gravações, provaram seus relatos por outros meios. E não participei de acordos em que colaboradores se valeram de gravações, como os de Durval Barbosa, César Romero e Silval Barbosa.

A J&F nunca me ofereceu nem me pagou um centavo. Ofereceu-me um emprego, que não aceitei. Não fui remunerado pelo tempo que passei com seus executivos antes de minha exoneração. Não poderia nem aceitaria ser.

Nunca transmiti informação sigilosa para a J&F nem exerci, no MPF, nenhuma atribuição relativa a ela. Estava com exoneração pedida e divulgada durante os contatos com seus executivos, em férias na maior parte do período e espontaneamente fora de grupos de trocas de mensagens entre procuradores. Corruptos fazem o contrário: procuram inserção e informação, para terem o que vender.

Fala-se, a meu respeito, em "jogo duplo". Mas isso só ocorreria se eu tivesse atuado em duas pontas antagônicas. Não era o caso: nunca atuei na J&F pelo MPF; o que estava fazendo com a empresa era incentivá-la a ficar limpa. Isso é intrinsecamente moral e convergente com qualquer leitura do interesse público. É leviana a hipótese de que eu estivesse atuando pelo MPF ao interagir com a J&F.

Não faria sentido que, já com a exoneração pedida, eu aceitasse desempenhar função para a PGR fora de minhas atribuições ordinárias, como um "agente secreto". Esses contatos tiveram caráter privado, em preparação de atividade que eu viria a desempenhar em favor da empresa.

Quanto às questões que afligem o senhor presidente da República, nunca fui "braço direito" de Rodrigo Janot, muito menos seu auxiliar mais próximo. O Grupo de Trabalho da Lava Jato tinha coordenadores, função que nunca desempenhei; nenhum de seus integrantes podia atuar sozinho; e meu relacionamento com Janot era funcional, com muito pouco convívio social.

A quarentena proíbe ex-membro do MP de advogar perante o juízo do qual se afastou por exoneração. Quando deixei o MPF, tinha lotação e exercício na Procuradoria da República no Rio de Janeiro, com atribuição para quatro Varas Federais Criminais. Não foi nesse âmbito que se negociaram os acordos da J&F.

Percebo, em retrospecto, que foi um grave erro de avaliação participar do projeto de remediação da J&F e, mais ainda, me antecipar, ainda que em caráter preparatório, aos efeitos da exoneração. Isso facilitou percepções equivocadas, hipóteses precipitadas e teses cerebrinas. Peço desculpas.

Mas reafirmo: não delinqui; não fui ímprobo; não traí a instituição a que tanto dei de mim. Por todo o tempo em que dialoguei com a J&F, tive presentes as regras que sempre regeram minha atuação e minha vida. Estou seguro de que as preservei.

MARCELLO MILLER é advogado e ex-procurador da República



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PALAVRA DA SALVAÇÃO (49)

29º Domingo do Tempo Comum - 22 de Outubro de 2017

Evangelho - Mt 22,15-21
Dai, pois, a César o que é de
César e a Deus o que é de Deus.

+ Proclamação do Evangelho de Jesus Cristo segundo Mateus 22,15-21
- Glória a vós, Senhor

Naquele tempo:
Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra.
Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes, para dizerem a Jesus:
'Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus.
Não te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências.
Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?'
Jesus percebeu a maldade deles e disse: 'Hipócritas! Por que me preparais uma armadilha? Mostrai-me a moeda do imposto!'
Trouxeram-lhe então a moeda.
E Jesus disse:
'De quem é a figura e a inscrição desta moeda?'
Eles responderam: 'De César.'
Jesus então lhes disse:
'Dai pois a César o que é de César,
e a Deus o que é de Deus.'

Palavra da Salvação.
Glória a vós, Senhor!


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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a reflexão do  Pe. Roger Araújo:
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DEUS ou CÉSAR: a partir de onde e de quem nós vivemos?

“Devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” (Mt 22,21)
               
Jesus sempre foi presença desconcertante; sua vida desconcertava a todos; seu modo de falar e de agir, sua liberdade de espírito desconcertava sobretudo aqueles que eram investidos de “poder religioso”.

Os fariseus mandam seus discípulos fazerem uma pergunta maldosa a Jesus; eles não têm coragem de olhar Jesus de frente e por isso mandam outros. Duas atitudes inautênticas: aqueles que mandam, porque não tem coragem de fazer a pergunta e ouvir o que não querem; e aqueles que são “mandados”, sem personalidade própria, fazem o que os outros dizem para fazer... 

Parece que Jesus era um mestre em desativar perguntas com intencionalidade enganosa e desmascarar criativamente aqueles que urdiam armadilhas com a única finalidade de enredá-lo nelas. Isso já ocorrera em outras situações; mas o evangelho de hoje trata de uma questão particularmente sensível para um povo dominado pelo império romano e submetido a uma agravante pressão através do pagamento escorchante dos impostos. Aqui os fariseus revelam uma confusão de “poderes” ao dirigirem uma capciosa pergunta a Jesus sobre a licitude ou não em pagar o imposto a César.  Mas Jesus não só desmascara a incoerência daqueles que estendem a armadilha, senão que introduz uma afirmação carregada de consequências, que transcende por completo a questão apresentada: “Devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus”.

Jesus, que não vivia a serviço do imperador de Roma, senão “buscando o Reino de Deus e sua justiça”, acrescenta uma grave advertência sobre algo que ninguém lhe perguntou: “devolvei a Deus, o que é de Deus”. A moeda, que representa o Imperador César, tem um valor relativo, mas o ser humano tem um valor absoluto, porque é imagem e semelhança de Deus. A moeda traz a “imagem” de Tibério, mas o ser humano é “imagem” de Deus: pertence só a Deus. As pessoas nunca podem ser sacrificadas a nenhum poder. Jesus não põe Deus e César no mesmo nível, senão que toma partido por Deus. César se impõe (imposto) pelo poder, que oprime e exclui; Deus não se impõe (não é imposto); faz-se dom, se esvazia de todo poder e se aproxima de nós, se faz comunhão. Por isso, o relacionamento entre o ser humano e Deus dá-se na esfera da mais pura liberdade, lá onde as decisões são ditadas pelo amor.

Normalmente utiliza-se a frase “devolvei a César o que é de César e a Deus, o que é de Deus” para justificar o poder. Se algo está claro no evangelho é que todo poder é nefasto porque massacra o ser humano. Ouvimos repetir com insistência que todo poder vem de Deus. Pois bem, segundo o Evangelho, nenhum poder pode vir de Deus, nem o político nem o religioso. Em toda organização humana, quem está à frente, está ali para servir aos outros, não para dominá-los ou submetê-los.  Porque, o que a resposta de Jesus faz é desativar por completo toda absolutização do poder. Ninguém nem nada pode atribuir a si um poder absoluto. Só Deus é Deus.

Jesus não busca defender os interesses de Deus frente aos interesses de César, senão defender o ser humano de toda escravidão; Ele não está propondo uma dupla tarefa para os humanos, mas a única tarefa que lhe pode levar à sua plenitude: servir ao outro. Jesus deixa muito claro que César não é Deus, mas, muitas vezes, nós nos apressamos em converter a Deus em um César. É preciso ter clara consciência que Deus não é um César superior e que nem atua como César. Quando alguém atua com poder, atua como um César.

A frase do Evangelho também foi entendida, muitas vezes, da seguinte forma: é preciso estar mais dependente do “césar religioso” do que do “césar civil”. Nenhum exercício do poder é evangélico. Não há nada mais contrário à mensagem de Jesus que o poder. Nenhum ser humano é mais que outro nem está acima do outro. “Não chameis a ninguém de pai, não chameis a ninguém chefe, não chameis a ninguém senhor, porque todos vós sois irmãos”. A única autoridade que Jesus admite é o serviço.

Aqui não se trata de dividir atribuições, nem sequer com vantagens para Deus. Deus não compete com nenhum poder terreno, simplesmente porque Deus não atua a partir da categoria de poder. Além disso, todo aquele que procura atuar com o poder de Deus, está se enganando. Jesus nunca defendeu o poder senão as pessoas, sobretudo àqueles que mais precisam de defesa: marginalizados, explorados, excluídos...

A única maneira de entender todo o alcance da mensagem de hoje(29º Dom TC) é superar a imagem de Deus que estamos arrastando há muito tempo. Deus, ao criar, não se separa da criação. A Criação é o transbordamento do coração de Deus. Não há nada que não seja de Deus, porque nada há fora d’Ele. O ser humano é o grau máximo da presença de Deus na Criação. Somos criaturas de Deus, só a Ele pertencemos totalmente.

A palavra de Jesus, portanto, aponta para um modo de se viver; ou, mais exatamente, questiona sobre o “a partir de onde e de quem” nós vivemos: a partir do nível do relativo (césar) ou a partir do nível profundo (Deus)? Alimentamos diferentes “césares” em nosso coração, aos quais nos fazemos submissos: instinto de posse, busca de poder e prestígio, consumismo, obsessão por um bem-estar material sempre maior, o espírito de competição... Quando é “césar’ que determina nossa vida, sua influência envenena nossa relação com Deus, deforma nossa verdadeira identidade e rompe nossa comunhão com os outros; nós nos desumanizamos. Como seguidores de Jesus, devemos buscar n’Ele a inspiração e o alento para viver de maneira livre e solidária.

O Deus que Jesus nos revelou é o Deus que se faz presente no pequeno, no simples, naqueles que não tem voz e nem vez neste mundo. Não é o Deus do poder absoluto, nem o Deus que exige obediência e submissão àqueles que se apresentam como “representantes” do divino.

O Deus de Jesus é o Deus que responde e corresponde aos anseios de respeito, dignidade e felicidade, que todos trazem inscritos no sangue de suas vidas e nos sentimentos mais autênticos e nobres. O Deus Misericordioso não impulsiona ninguém a desejar poderes, por mais nobres que possam parecer. Ele é o Deus que só legitima a identificação e até a fusão com o destino das vítimas deste mundo.

Esta foi a principal fonte de conflitos de Jesus com os fariseus e sacerdotes que, em nome de Deus, exerciam o poder e a dominação sobre as pessoas e sobre o mais íntimo que há em cada um: sua consciência e sua liberdade para tomar decisões na vida e expressar sua fé em Deus. 

Texto bíblico:  Mt. 22,15-21

Na oração:  Quem é o “senhor” que move seu coração?
- Deixar Deus desalojar os “césares” que carrega em seu interior.

Pe. Adroaldo Palaoro sj


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