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terça-feira, 29 de maio de 2018

DESALENTADOS E MULTIRRACIAIS - Ana Maria Machado


Artigo em jornal, na página de opinião, tem compromisso com fatos, notícias e acontecimentos. Ao menos, para refletir e analisá-los. É diferente de literatura. Nessa, a primazia absoluta é da linguagem, na exploração de suas possibilidades, para revelar seu poder latente na busca de sentido de se estar no mundo. Ou o encantamento e os impasses da dor diante dele. Carlos Drummond de Andrade, nosso poeta maior, já ensinou: “Não faças versos sobre acontecimentos./ Não há criação nem morte perante a poesia.”

É nas palavras que a poesia vai buscar sua força e poder. Sugere ainda o poeta: “Chega mais perto e contempla as palavras./ Cada uma/ tem mil faces secretas sob a face neutra.”

Mas jornal se faz com fatos. E eles se distribuem por todos os assuntos do mundo e do nosso tempo. Vão das dificuldades geradas pelo preço de combustíveis e protestos dos caminhoneiros à festa do casamento real em Windsor. Da revelação de novas frentes de corrupção no INSS ou na merenda escolar à escalada irrefreável da violência — da Rocinha à Cidade Universitária, da execução de Marielle Franco ao bebê baleado no colo da mãe. Fatos que parecem isolados se arrumam em constelações que lhes dão novos significados. Passam da pré-campanha eleitoral e das idas e vindas de recursos e embargos nos tribunais à divulgação dos mais recentes dados numéricos. Volta e meia, nesse processo, exigem palavras novas.

E elas surgem. Às vezes, em modismos artificiais, “lacrando” agora e destinados a durar pouco. Outras, na rica e original criação popular de potência duradoura. Os meios acadêmicos volta e meia trazem ou tentam impor artificialismos como “empoderamento” — criticado por tantos ouvidos sensíveis e já acusado de ser um “embutido” vocabular ou perversão linguística.

Estes últimos dias nos brindaram com duas contribuições interessantes nesse terreno de reapropriação léxica. Novas faces secretas reveladas sob a face neutra de que falava o poeta, de vocábulos “sós e mudos/ em estado de dicionário.”

Uma delas veio de um órgão que costumamos associar a números e não às letras. Rapidamente ganhou colunas de analistas e relatórios de economistas. Mas já o poeta ensinara que “sob a pele das palavras há cifras e códigos”. O IBGE amplifica o sentido de “desalentados” e mostra que, em quatro anos, subiu quase 200% o número de brasileiros que desistiram de procurar emprego porque chegaram à conclusão de que não vão mesmo encontrar nada. Dentro do estarrecedor descalabro nacional — com seu jovem e crescente contingente nem-nem, que nem estuda nem trabalha —, ganha visibilidade e nome uma imensa parcela de nossa população. É urgente buscarmos saídas racionais, num debate adulto, que não escamoteie os dados e fatos da realidade, nem fique tentando disfarçá-la com retórica oportunista e vazia, cuja única serventia talvez seja adiar soluções necessárias e perpetuar benefícios ou privilégios de quem tem poder.

Outra boa palavra surgida agora, a fazer pensar, brotou na cobertura do casamento na família real britânica. A noiva não se contenta em ser classificada como afrodescendente ou negra, como aconteceu com Barack Obama ao assumir a Presidência americana há alguns anos — sempre a inutilmente tentar lembrar que sua mãe era branca e seu pai, africano. Mezzo a mezzo... A nova duquesa de Sussex, intensamente ciente de cada indício simbólico nos mínimos detalhes da cerimônia, faz questão de se identificar como “birracial”, assumindo a mistura afro-caucasiana. No Brasil, talvez “multirracial” seja uma palavra mais verdadeira para nos descrever, ao incorporar indígenas — sem mistificação, como ainda Drummond aconselhava a recebermos as ordens da vida.

Já abandonamos o rico termo “favela” por “comunidade”, palavra que acentua laços importantes e força coletiva, mas traz perdas conceituais, ao relegar ao esquecimento uma série de conquistas culturais e um tecido histórico substancial, em prol de terminologia mais abstrata, mais ligada a uma classificação de capilaridade social americana. Já estamos fazendo campanhas para substituir a palavra “escravo” por “escravizado”, como se o número maior de sílabas e o aspecto de particípio passado, ao se afastar do substantivo concreto, mudasse o horror, o sofrimento e a vergonha do sistema escravocrata que nos fez como país e a que foram submetidos povos inteiros no correr da História. E assim seguimos, mesmo desalentados e multirraciais, a patrulhar palavras, discutindo o supérfluo e acessório, e deixando de encarar o essencial.

Pode parecer uma bobagem, mas acho que, se conseguirmos nos pensar como birraciais e multirraciais, estaremos mais próximos de ver quem somos e entender o imenso valor que tem essa identidade, os caminhos que ela pode nos abrir em meio às dobras do racismo persistente. Mais uma vez, com Drummond, podemos constatar que há calma e frescura na superfície intacta das palavras. “Com seu poder de palavra/ e seu poder de silêncio”.

O Globo, 26/05/2018

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Ana Maria Machado - Sexta ocupante da Cadeira nº 1 da ABL, eleita em 24 de abril de 2003, na sucessão de Evandro Lins e Silva e recebida em 29 de agosto de 2003 pelo acadêmico Tarcísio Padilha. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 2012 e 2013.

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TRÊS GRANDES PERDAS – Rodrigo Constantino


25/maio/18
No espaço de poucos dias tivemos três grandes perdas. No dia 14, morreu o escritor Tom Wolfe. Seu refinamento, visão conservadora e elegância, além da forma como retratava a hipocrisia e vaidade das elites “progressistas”, deixarão saudades. Seu radical chic foi influência direta em meu Esquerda Caviar, enquanto seus divertidos ataques aos modismos da “arte contemporânea me renderam boas risadas.

Um de seus últimos livros, Sangue nas Veias fala do caldeirão étnico e cultural repleto de latino-americanos e com poucos americanos “legítimos” em Miami. Morando há três anos nesse ambiente, tenho que constatar que Tom Wolfe é cruel na medida certa com nossas elites vaidosas e abobalhadas. Mesmo com todas as suas qualidades, de “América Latina que deu certo”, convenhamos: Miami, com uma das maiores quantidades de “breguice” por metro quadrado, é um prato cheio para o autor tripudiar dessa classe de nouveau riche, não é mesmo?

A segunda grande perda foi do historiador Richard Pipes, que faleceu no dia 17. Sua especialidade era a história russa, e isso lhe deu uma visão privilegiada do comunismo. Em Propriedade e Liberdade, Pipes resume bem o problema: “A história da Rússia oferece um excelente exemplo do papel que a propriedade desempenha no desenvolvimento dos direitos civis e políticos, demonstrando como a sua ausência torna possível a manutenção de um governo arbitrário e despótico”. Abolir a propriedade privada? Eis o caminho do inferno!

Richard Pipes conclui que “a experiência da Rússia indica que a liberdade não pode ser legislada; ela precisa crescer gradualmente, em forte associação com a propriedade e a lei”. Infelizmente para os russos, a propriedade privada nunca fincou suas raízes por lá, onde o poder sempre esteve arbitrariamente concentrado no Estado. Parece um país que conhecemos bem.

Por fim, morreu no dia 23 o escritor Philip Roth. Gosto muito de seu estilo, da força de suas palavras, sempre econômicas. Também sou atravessado pelo tema recorrente de seus livros: o poder de estrago do imprevisível, a mudança repentina na vida das pessoas por acontecimentos inesperados, o encontro com o “real”, como diria um psicanalista, as contingências do destino. Tudo parece certinho, ordenado, bem ao gosto de um típico obsessivo, quando de repente o mundo desaba, o chão desaparece, tudo fica nebuloso. É angustiante. Mas é realista. É a vida.

E por isso mesmo temos que valorizar a nossa, reconhecendo, com humildade, que não estamos em seu total controle, e que a precariedade de nossa existência é a norma, o que nos demanda coragem e fé. A morte, afinal, chega para todos, e quase sempre sem aviso. Importa, porém, aquilo que fica. No caso desses três gigantes, uma incrível obra como legado.


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