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sexta-feira, 14 de junho de 2019

UM FATO INESQUECÍVEL - Sherney Pereira


           Inácio Mendonça chegara para fixar residência no arraial: era um cidadão muito gentil, e de repente passaria a conquistar a amizade de todos. Figura por demais simpática, apesar de ser um sexagenário notava-se que era um homem saudável, e com muita disposição para o trabalho.

            Tinha por companheira dona Laura, uma senhora muito bonita, ainda no esplendor da sua juventude. Em companhia do casal, moravam duas lindas mocinhas: a mais nova chamava-se Ana e era filha do casal; Ângela, a mais velha, embora gozasse do mesmo carinho de Inácio, viera para sua companhia, ainda pequena. Ao chegar ao arraial, ele solicitou de Antônio de Arcanjo, um terreno para construir uma casa, no que foi prontamente atendido, pois o caboclo jamais negara um pedaço de terra alguém.

            Num curto espaço de tempo, construiu uma casa tipo chalé, onde passou a viver, na mais absoluta tranquilidade, com a sua família. Mais tarde, vendo que a tendência natural da fazenda era tornar-se um povoado, sentiu a necessidade de implantar um armazém de secos e molhados, que atenderia aos moradores do lugar, tirando-os do incômodo de terem que fazer as compras em Ilhéus ou Itabuna. Inácio logo modificou o aspecto da sua casa: abriu três   portas de frente, e fez dali um grande ponto comercial.  A partir daquele instante, estava surgindo a primeira casa de negócios na Fazenda Boa Vista, realmente uma grande iniciativa.

            Havíamos chegado naquela localidade, não fazia muito tempo. O meu pai logo tornou-se um dos seus assíduos fregueses, ganhou a credibilidade de Inácio, e passou a comprar fiado no seu armazém. Confesso, saudoso, que eu era fã incondicional do negociante: aos sábados íamos fazer as compras. Eu fazia questão de acompanhar o meu irmão mais velho, porque na verdade eu gostava do seu jeito simples e prestativo; admirava-o pelo zelo com que ele tratava os seus clientes. Havia outro detalhe que me empolgava: era quando ele pegava a sua pena para fazer as devidas anotações. Cidadão assaz instruído, sabia contar e escrever muito bem, o que me deixava boquiaberto pela habilidade com que o fazia, mergulhando intermitentemente a velha pena no tinteiro.

            Tenho certeza de que Inácio também gostava de mim, e digo isso porque, quando eu ia a sua venda, saía de lá com os bolsos cheios de caramelos. Inácio jamais mereceu ser traído, no entanto, qualquer descuido era fatal: eu roubava-lhe as bananas, para comê-las com farinha no caminho de casa, e por sorte minha ele nunca desconfiou. Se porventura ele descobrisse as minhas artimanhas, a nossa amizade estaria rompida para sempre. Seria uma calamidade.

              Vale registrar aqui um episódio, que, se não tem algo de fascinante, no entanto marcou bastante a vida pura e imaculada do arraial, porque esse fato, - para muitos desagradável, - envolveu a família de Inácio Mendonça.

                Lá prás bandas do Japu, - distrito de Ilhéus, - havia um pequeno fazendeiro por nome de José Laudelino. Um jovem simpático, bastante educado, e de família tradicional que, a exemplo de outros posseiros daquela região, escoava o produto da sua fazenda no lombo dos animais, passando pelo arraial da Fazenda Boa Vista. Na época das “cheias”, a coisa tornava-se mais difícil e penosa, poiso o Rio Cachoeira dificultava o comércio dos fazendeiros, e, consequentemente, afetava diretamente os moradores do Salobrinho, que ficavam impedidos de usarem a farinha de mandioca e congêneres. Inácio comprava a farinha e o cacau de José Laudelino, e foi através das negociações, que se tornaram grandes amigos. Tamanhas eram as afinidades, que o rapaz de já tinha acesso livre à sua residência e paralelamente gozava do prestígio e confiança da família. A cada dia que passava, o relacionamento aumentava: eis que num lampejo, o jovem percebera que estava apaixonado pela mulher do amigo e, para maior ilusão, viu também que estava sendo correspondido na sua paixão desenfreada.

            Os dias passavam, e Inácio continuava indiferente àquele romance, porque sempre acreditou na fidelidade da sua mulher e jamais passaria por sua cabeça que a companheira de tantos anos lhe trocasse por outro homem de uma hora para outra.  Um dia, porém, desconfiado do tratamento delicado e excessivo que Laura dedicava José Laudelino, Inácio pôs-se a duvidar da sua fidelidade. Entre ambos existiria mais do que uma simples amizade, pensou ...

            Assim, depois de uma meticulosa investigação, usando a todo momento a discrição que lhe era peculiar, ele chegou à conclusão de que já não mais havia motivos para duvidar de nada.

            Era uma manhã de sábado. Sob um sol escaldante, José Laudelino chegava do Japu, sem dar demonstrações, mas cheio de saudade da mulher amada. Estava cansado da longa viagem. Fatigado do sol verão, apeou do cavalo, e depois de atrelar os animais ao mourão, subiu célere as escadas do armazém. Sempre sorridente, foi logo saudando os fregueses que ali estavam, e penetrou no lar de Inácio. Com toda serenidade disponível, Inácio atendeu tranquilamente aos seus clientes e, em seguida, foi ter com o “galã”, que àquela altura encontrava-se confortavelmente sentado na sala de espera conversando com Laura.

            Inácio, calmamente, sentou-se ao lado de José Laudelino, passou a mão ainda suja de pó de farinha pelos cabelos e, dando um tapinha amistoso na nas costas do mancebo, disse taxativo: “Zé, sei que estás apaixonado... Farei o teu casamento com Laura”. Surpreso, ante a atitude inusitada do comerciante, Zé ficou estático, fingindo não haver entendido nada que ele dissera. Procurou controlar-se, porque devido ao susto, sentira que havia perdido a fala e, só depois de alguns instantes, quando reunira condições de se pronunciar, foi aproximando-se da porta que dava acesso à rua e, um tanto desconcertado, perguntou em tom desesperador:

            - O que está acontecendo, sêo Inácio? Está ficando maluco?

            - Calma, companheiro! - disse Inácio procurando tranquilizá-lo, - não tenha receio, pois não vejo nisto nenhum absurdo: já estou velho, e seria para mim a maior felicidade, esta união.

            Laudelino, visivelmente nervoso, respirou mais aliviado, e agora, tentando fugir do assunto, aproximou-se do balcão e, esboçando um sorriso sem graça, foi perguntando: quantos sacos de farinha vai querer, ‘sêo’ Inácio? Entendendo o embaraço do Zé, ante tal situação, o velho resolveu deixá-lo à vontade, porque tinha a certeza de que aquela história não terminaria ali.

            Não demorou muito para o dia do casamento. O povo do arraial, ao tomar conhecimento do fato, passou a lançar críticas das mais contundentes em forma de repúdio à atitude daquele homem, e até teciam comentários sobre o seu excesso de calma, e mormente a maneira com que aceitava tamanho escândalo. Ninguém aprovou o comportamento de Inácio, ao entregar, sem nenhuma repulsa, sem qualquer resquício de violência, a sua mulher a um aventureiro qualquer. Aquele era um caso inédito na vida pacata do Salobrinho, e representava um desrespeito, um ato sórdido e covarde para as famílias puritanas dali.

            Foi dessa maneira que Laura deixou a companhia do seu marido, sem constrangimento e sem remorso de ambas as partes. Ele aceitara tudo aquilo com a maior naturalidade, e depois de ter participado do casamento da sua própria mulher, passou a viver sozinho, lutando pela sobrevivência, como se nada tivesse acontecido. Acossado pela doença, viria a falecer, depois de muitos anos, num dos hospitais de Ilhéus. De qualquer forma, Inácio foi uma figura importantíssima no desenvolvimento do Salobrinho, por ter sido um dos seus fundadores. A ele rendamos póstumas homenagens, pelos relevantes serviços prestados à comunidade. Quanto à José Laudelino e dona Laura, eles formaram um casal muito feliz, e atualmente residem no mesmo distrito. A casa que outrora pertenceu a Inácio Mendonça, ainda existe, como reminiscência de um passado que já vai distante. Ressalte-se que esta casa sofreu grande reforma e está atualmente transformada numa moderna residência.

(SALOBRINHO – ENCANTOS E DESENCANTOS DE UM POVOADO)
Sherney Pereira
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Sherney de Souza Pereira nasceu a 11 de outubro de 1948 no eixo Ilhéus/Itabuna, mais precisamente no município de Ilhéus. É cordelista, com vários trabalhos publicados e autor do Hino da Universidade de Santa Cruz, premiado em concurso público por ocasião do 4º aniversário da FESPI.
          
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AQUELE MEU BRASIL - Guilherme Félix de Sousa Martins


14 de junho de 2019
Profetas do Aleijadinho, em Congonhas do Campo [Foto: L.G. Arroyave]

Guilherme Félix de Sousa Martins

É possível sentir saudade de uma época na qual não se viveu?

Talvez os especialistas se aferrem à resposta negativa, mas certo mal-estar que por vezes tem me assaltado pode muito bem ser decorrente de saudade como essa. Devo esclarecer que não se trata de um mal-estar qualquer, é de fato um grande mal-estar. E não é só meu, como já tive oportunidade de comprovar fartamente, embora eu talvez possa considerar-me um dos poucos que ousa desabafar. Compartilho o problema com uma vasta multidão contaminada por verdadeira saudade epidêmica. Uma epidemia salutar — perdoe-me mais este paradoxo.

A grande mídia não pôde ignorar um brado constante nas manifestações multitudinárias de anos recentes: “Quero o meu Brasil de volta!” [foto abaixo] A voz altissonante de uma numerosa ala jovem se incorporava a esse coro efusivo, em protesto contra um estado de coisas esclerosado, indesejável, incômodo. No entanto, é bem verdade que a grande maioria desses jovens viveu boa parte da vida nesse estado de coisas. Põe-se então a pergunta: Querem a volta de qual Brasil, se não viveram em outro?

Que Brasil é esse que tanta falta lhes faz? Seria o Brasil dos governos imediatamente anteriores à vitória eleitoral da seita vermelha, cujos tentáculos o estrangularam até impor o desastre quase completo? Não, não pode ser aquele Brasil tão próximo do atual, pois durante esse período a hidra esquerdista parecia controlada, mas nas profundidades já caminhara e se estabelecera em grande medida.* Não apenas lhe haviam sido abertos os caminhos da política, mas em profundidade os valores tão caros aos brasileiros autênticos foram sendo persistentemente cerceados e vitimados por um constrangimento constante e avassalador.

Permita-me voltar ao meu desabafo. Por mais que me inspire grande esperança, o rumo novo que vem tomando o País (em boa medida, algo semelhante ocorre em todo o Ocidente) não tem o condão de me tranquilizar. Transformações políticas são um bom começo; mas o caminho é longo, e os males a debelar são de origem muito profunda.

Meu Brasil — o mesmo Brasil que a imensa maioria dos bons brasileiros deseja — não é o do tecnicismo sem barreiras, despreocupado da dignidade do próprio homem e destruidor de seus sentimentos. Também não é o império da extravagância, nem o da imitação de modas alienígenas. Não é de tais “libertações” que necessito. Meu Brasil não combina também com o gozo debochado, nem com orgias ostentadoras da luxúria, aliada agora ao satanismo.

De tanto desabafar, parece-me que vou conseguindo explicitar as causas da minha saudade nostálgica. Não sinto falta de planos econômicos bem-sucedidos, de sistemas de educação ou saúde eficientes. Necessito de segurança, é claro, mas não essa de cuja falta tanto se fala. Refiro-me à segurança trazida pela solidez das instituições, pelas relações humanas bem estabelecidas, pelo alto padrão da formação psicológica. O pressuposto óbvio, o elemento fundamental de tudo disso é a Fé — sim, com letra maiúscula, na sua integridade, sem respeito humano. Refiro-me a essa Fé que nos vem sendo roubada – por vezes até dentro do templo sagrado, dói dizê-lo – por aqueles que deveriam ser seus próprios guardiães. Única Fé capaz de moldar ou refundar toda uma civilização.

Civilização cristã! Palavras sonoras, fecundas, benditas. Só a conheço pelo estudo atento da História, mas inegavelmente é disso que sinto saudades… Um passado não vivido por mim, mas que renascerá ainda mais belo no Brasil do Imaculado Coração de Maria, depois do seu triunfo! O Brasil da Senhora Aparecida. O Brasil Terra de Santa Cruz!

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* Cf. Manifesto O Brasil em Histórica Encruzilhada, de 29 de março de 2016. Disponível em: https://ipco.org.br/wp-content/uploads/2016/03/IPCO-O-Brasil-em-hist%C3%B3rica-encruzilhada.pdf


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