2 de março de 2017
Péricles Capanema
Não é politicamente correto criticar o Carnaval. Na
mitologia corrente, seria quase tão-só a desinibida manifestação da alegria
popular. Nesse rumo desembesta a cobertura da imprensa, maciça, laudatória.
Trilho caminho oposto e invado a contramão. De início, dois pontos.
Primeiro: a maior festa popular do Brasil é o Carnaval. Outra
verdade: a maior parte dos brasileiros quer distância dele.
Mais, não se sente
representada pelo que ali vê e ouve. Um sintoma: as filas sem fim de automóveis
para o litoral e para o interior. Entre 24 de fevereiro e 1º de março, dois
milhões de veículos deixaram São Paulo, fugindo do Carnaval. E a maioria dos
carros não levava só o motorista. O fenômeno se repete país afora. A realidade:
num planalto de indiferença e até de hostilidade, grassam zonas do Carnaval de
grande efervescência, muito trombeteadas, como Salvador e Rio de Janeiro.
Celebração popular, admito sem problema. Nos números, festa de minorias de
representatividade controvertida.
Segundo ponto. Fora das fronteiras, o Carnaval é visto em
geral com lentes deformantes. Ele piora, mais do que ajuda, nosso bom nome no
Exterior. A tal respeito, enterremos ilusões ufanistas, como faz o derreado
folião que na 4ª feira de Cinzas soca na lata de lixo a fantasia rasgada.
Transcrevo pequeno trecho da reportagem da Sputinik France (elucida,
é o tom geral lá fora): “O Carnaval é o acontecimento mais importante do
ano para cada brasileiro, uma festa que representa a alma e a mentalidade do
Brasil. Todos os anos, antes do começo da Quaresma, o Brasil inteiro mergulha
na atmosfera da festa mais marcante da Terra”.
Viu? Faça o teste sincero com você e os seus. O Carnaval
para seus familiares é o fato mais importante do ano? Representa sua alma e
mentalidade? Todos os brasileiros, Oiapoque ao Chuí, mergulham na atmosfera da
festa carnavalesca por cerca de uma semana?
É fácil perceber que estamos agredidos por enorme mentira,
divulgada ano pós ano no mundo inteiro. E, relativo a nós, o que essa mentira
esconde particularmente daninho no bojo? Somos figurados como povo meio
primitivo, em estágio de há muito ultrapassado pelos países mais civilizados,
que celebra enfatuado a libertinagem, leniente com a devassidão moral, a
bebedeira, a blasfêmia, o deboche, a caçoada; enfim, com o total desatarraxo. E
assim, nas horas graves, propende por escolher o irracional, o inconsequente e
o mágico (pelo menos nas eleições, tal juízo depreciativo estaria sempre longe
da verdade?).
Não terei a ingenuidade de negar que existe parte verdadeira
na pintura exagerada esboçada há pouco. Alguns dados evidenciam a “atmosfera”
na qual mergulharia toda a população: o Ministério da Saúde, até o Carnaval
(intensificação no período de festas), distribuiu 77 milhões de preservativos.
Só em Salvador, os órgãos públicos repartiram cinco milhões. A Secretaria
Municipal de Saúde do Rio de Janeiro, 700 mil. Na primeira noite do Carnaval,
em Campo Grande (MS), dez pessoas entraram em coma alcoólico.
Amplie para o
Brasil todo. Pense no aumento, durante o Carnaval, do consumo de drogas,
alcoolismo, homicídios, roubos, estupros, gravidez precoce, desastres nas
estradas, ressacas. O clima de aprovação revela tolerância injustificável com
decorrências devastadoras das festas momescas entre nós. Lazer autêntico?
O europeu, quando mergulhado na atmosfera serena da
civilização cristã, entende o lazer como alegria temperante que restaura as
forças para o trabalho produtivo. É o grande segredo da recreação saudável:
repousa e restaura. As canções e danças populares de várias nações do Velho
Continente expressam tal ambiente, em parte hoje recriado por algumas
apresentações dos musicais de André Rieu. A propósito, a palavra alemã Erholung exprime
a ligação entre recreação e esforço intenso. Erholung significa
recreio, recreação, repouso, descanso. Significa ainda recuperação,
restabelecimento, convalescença, relançamento. Afastado daí está o Carnaval,
com suas sequelas de abatimento e esgotamento; e vamos aqui deixar de lado a
corrupção moral.

Enveredo uma vez mais pelo politicamente incorreto, só que
por outra trilha, desenterrando no caminho tesouros escondidos. Se este artigo
puder ser comparado a uma moeda, falei da cara. Trato a partir de agora da
coroa, o outro lado. O Carnaval brasileiro passa longe da luta de classes.
Existem, artificiais, aqui e ali, manifestações de esquerdismo radicalizado,
nada representativas do clima geral. Paira no ar cordialidade real, um desejo
de ajudar, alimentado por aspiração de convívio harmonioso, em que uma pessoa
compreenda e estimule o que na outra exista de melhor. “Cidade
maravilhosa, coração do meu Brasil, terra que a todos seduz” é uma cidade
ideal, imaginada com delícias por gente que vive áspera realidade quotidiana. A
pobre mocinha desdentada da favela não apenas visualiza uma cidade maravilhosa,
mas quer nela se vestir de princesa, de heroína, para partilhar fugazmente no
sonho um mundo de convívio perfeito, trato elevado e alta cultura. Aqui está um
aspecto positivo pouco ventilado.

Lembrei atrás que o Carnaval mais piora do que ajuda nosso
bom nome. Para equilibrar o quadro, recordo um fato que atrai, a justo título,
admiração no Exterior. Fernand Braudel (1902-1985) [foto ao lado], francês que
para muitos da área reinventou a História, analisando o fenômeno humano
globalmente, viveu como professor em São Paulo entre 1935 e 1937. Dizia ele: “Foi
no Brasil que me tornei inteligente. O espetáculo que tive diante dos olhos era
um tal espetáculo de história, um tal espetáculo de gentileza social, que eu
compreendi a vida de outra maneira. Os mais belos anos de minha vida passei no
Brasil”. Perguntavam-lhe o que quis dizer com o “me tornei inteligente”? Deu
várias respostas: “Fiquei menos banal, eu me tornei o que sou hoje. [Sem
minha estadia lá] não teria feito sobre o Mediterrâneo um livro diferente dos
outros já escritos”. Às vezes, respondia sorrindo: “Talvez seja porque lá
eu aprendi a ser feliz”. Na prática, notou admirado em muitos com quem tratava
um olhar de enorme compreensão, fruto de uma mentalidade. Braudel o entendeu, a
partir daí mudou sua noção da vida, foi instrumento para viver melhor e
alcançar a celebridade intelectual. O espetáculo de gentileza social que
transformou Braudel tem relação com a aspiração da pobre mocinha desdentada da
favela que sonha um dia desfilar como princesa. São valores ricos, formativos,
geradores de cultura e lazer. Diante deles não caminhemos desatentos; imitemos
aqui Fernand Braudel, tido por tantos letrados como o maior historiador e
pensador social do século XX.
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