18/10/2019
Antes de mais nada, é devido expressar reconhecimento e
louvar a trajetória de Vossa Excelência na Suprema Corte, marcada pelo diálogo,
pela moderação e por um devotado empenho no resguardo de nossa Carta Maior,
virtudes que encorajam este manifesto.
Pois bem, momento houve em que Vossa Excelência demonstrou
inclinar-se contrariamente à "prisão em 2ª instância", divergência
com a sábia posição firmada pelo pleno do STF em 2016. Sim, haverá mentes muito
respeitáveis com tal posicionamento. Todavia, é oportuno registrar que um
expressivo número (quiçá, maioria) das grandes mentalidades do Direito
considera imprescindível que o precedente do STF ora em vigência seja mantido,
isto é, que a pena de restrição de liberdade siga sendo aplicada a condenados a
partir da 2ª instância, o que se coaduna plenamente com o preceito
constitucional (como se pretende aqui demonstrar).
Aliás, pela publicização que o assunto adquiriu, esse é
também o anseio da maior parte da população brasileira.
Mas, o que levará doutos juristas a postularem que o
precedente do STF seja preservado? Ora, a motivação iniludível é apenas
assegurar a "efetividade da lei penal". E quais serão os fundamentos?
A isso vamos.
1. A que se destina a lei penal: ser instrumento da chancela
estatal das relações sociais harmônicas (efeito amplo) ou dar garantias àquele
que opta por adotar condutas antissociais (efeito restrito)? Eis a questão
norteadora da presente sustentação, cuja resposta é indissociável dos valores
insculpidos em nossa Carta Maior como justiça, liberdade e convivência social
harmônica. Com efeito, não haverá justiça nem, por conseguinte, harmonia social
sem uma lei penal de inelutável efetividade a garantir a conduta reta e a
inibir o comportamento antissocial dos indivíduos.
2. Máxima cautela convirá para evitar-se a armadilha
retórica que sustenta a insidiosa tese de que só existe "trânsito em
julgado" após a impetração de todo e qualquer recurso admitido no
regramento processual, tese com ares de fundamentalismo, que nega a
Constituição como um "corpus" (que de fato é) para, fragmentando-a,
apegar-se a uma distorção da literalidade do texto.
3. A Constituição, no art. 5º, combinados os incisos LXI e
LVII, estatui: "ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem
escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (...)"; e
"ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença
penal condenatória". É malabarismo retórico, sem qualquer zelo pelo
Direito, afirmar que, no referido dispositivo, a CF proíbe o início da pena de
restrição de liberdade imediatamente ao acórdão da 2ª instância, no qual,
sabe-se bem, ocorre o exaurimento de qualquer dúvida quanto à autoria do crime.
Sendo que, aliás, o texto não faz alusão a "prisão", "restrição
de liberdade", "grau de jurisdição" nem a "cumprimento da
pena".
4. Sabidamente, o "trânsito em julgado" é
imprescindível à "segurança jurídica" (elemento definidor de um
regime democrático). Ora, uma determinada matéria transita em julgado quando se
torna insuscetível de alteração mediante recurso. Agora, é preciso ter em vista
que os autos de um processo contêm diversas matérias, podendo cada qual
transitar em julgado em diferentes momentos. Assim, a "autoria do
crime" é apenas e tão-somente uma entre várias matérias nos autos de um
processo penal; e tem obviamente seu "trânsito" antes e sem prejuízo
doutras que a defesa poderá seguir questionando.
5. Assim, exaurida a matéria da "culpabilidade" (o
que ocorre nas instâncias ordinárias), é teratologia retórica dizer que, ainda
assim, persiste a "presunção de inocência". Vale lembrar o que
prelecionou o saudoso Ministro Teori Zavascki no sábio voto de 2016 (HC
126.292): "(...) tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação
do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância
extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a
própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência
até então observado".
6. É adequado asseverar-se, pois, que, havendo o tribunal
confirmado a sentença condenatória, tornando-a irrevogável, é uma pretensão
totalmente desprovida de razoabilidade manter em suspenso o cumprimento da pena
de restrição de liberdade sob a alegação de ainda restar, à defesa, pelejar em
instância extraordinária – onde unicamente poderá discutir a legalidade do
processo. Sim, a Suprema Corte acertou, em 2016, ao reconhecer que a presunção
da inocência vigora só até a "confirmação da sentença condenatória em
segundo grau".
7. Cabe indagar: qual seria o risco de injustiça em dar-se
início ao cumprimento da pena a partir da condenação em 2ª instância, quando o
condenado não mais poderá esquivar-se da culpa? Que direito é fraudado, na
hipótese de o condenado estar preso enquanto tramitam recursos em instância
extraordinária? Nenhum! Nenhum! Ao passo que são conhecidos os efeitos
deletérios da impunidade suscitada pelo "instituto da procrastinação".
8. Em artigo publicado no ano de 2011, criticando o
"regime de impunidade" que vedava a "prisão em 2ª
instância" (regime surgido em 2009 por puro casuísmo, sem dizer que, até
1973, a prisão podia dar-se na 1ª instância), o ministro Cezar Peluso, então
presidente do STF, declarou: "O sistema atual produz intoleráveis
problemas, como a 'eternização' dos processos, a sobrecarga do Judiciário e a
morosidade da Justiça."
9. Assegurar, como prevê a Carta Magna, o
"contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela
inerentes" é uma garantia à sociedade.
Contudo, absolutizar este, assim como qualquer outro
princípio constitucional, desequilibra o sistema normativo e acarreta prejuízo
do que é a essência de uma ordem jurídica democrática: uma justiça efetiva e
apta a galvanizar a confiança da sociedade. Haverá, pois, grande dano se, para
desfazer o que foi feito em 2016, for convalidada uma tortuosa exegese do texto
constitucional, eis que o intuito da Carta Maior (vista como sistema normativo
que perfaz uma unidade) é, em síntese, chancelar a justiça, desiderato que se
torna inalcançável sem a efetividade da lei penal.
10. Saliente-se! A posição adotada pelo STF em 2016, cuja
manutenção aqui se está requerendo, não interfere em nenhum dos direitos
garantidos pela Constituição, como as liberdades individuais, o devido processo
legal, a ampla defesa, o tratamento digno do réu. O que fica a utilização dos
recursos para perpetuar processos e evitar o cumprimento das decisões.
Pelas razões ora expostas, vimos perante Vossa Excelência
apelar a que, conservando a chama do judicioso espírito com que exerce a
magistratura, se posicione no sentido de manter o precedente ora em vigência,
rejeitando o insidioso regramento da procrastinação e da impunidade. O processo
penal não pode ser uma espécie de "videogame" que, a jogadores
especiais, ofereça o prêmio da prescrição.
A história recente do Supremo Tribunal Federal, que Vossa
Excelência engrandece com seu magistério, é dignificada por ministros como
Alvaro Ribeiro da Costa, Antônio Gonçalves de Oliveira, Antonio Carlos
Lafayette Andrada e Adauto Lúcio Cardoso, que, postando-se como guardiões da
ordem democrática, tiveram a coragem de enfrentar excessos autoritários do
regime político de sua época. Integram eles uma galeria de vultos notáveis que,
com a visão ampla do estadista que não se deixa ofuscar por aspectos
periféricos - à qual souberam somar a despretensiosa simplicidade dos sábios -,
ajudaram a aprimorar a ordem jurídica nacional, elevando a Constituição como um
farol a orientar a nação, sem distinguir o brasileiro mais humilde do mais
influente.
Pois o espírito republicano, a independência e a coragem de
Vossa Excelência farão que seu nome figure no rol desses grandes luminares
quando, no futuro próximo, a história desta Egrégia Corte for lembrada.
Creia! Em Vossa Excelência deposita-se a confiança de
milhões de brasileiros que, com clara consciência cívica, percebem a gravidade
destes tempos: nossas escolhas e nossos atos determinarão se vamos propulsar ou
atrasar o futuro do Brasil.
Receba a gratidão de seus compatriotas democratas".
Advogado e psicólogo. E-mail do
autor: sentinela.rs@uol.com.br
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