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domingo, 19 de março de 2023

A História na Travessia de Gerações

Cyro de Mattos


 

              A história caminha e avança na sua travessia através de gerações. Conceito importante da História, pode ser considerado como o ponto  em torno do qual  executa seus movimentos e manifestações. Tal geração afirmar-se-á se conseguir formar uma corrente, movimento ou tendência  de pensamento marcante no progresso social, nos costumes civilizacionais, nas políticas culturais ou na educação literária dos indivíduos. O grau de combatividade de uma geração está naturalmente na dependência do estado atual das coisas  com relação ao momento em que se afirma o desejo coletivo de mudança.

         Seja qual for a importância que se atribua ao tema e ao conceito preconizado, a noção de geração pode levar a pressupor, de modo equivocado,  que as gerações se sucedem de forma horizontal no curso da história. Na verdade pertencem à mesma geração, como é comum,  indivíduos nascidos próximos e dotados de afinidades culturais. Pode ocorrer que indivíduos pertençam a várias gerações numa mesma época. Ou acontecer discrepância  de idade e nem por isso  deixam de situar-se  na mesma geração, como no caso de Machado de Assis,  nascido em 1839, e Aluizio Azevedo, em 1857.

           Quando um homem nasce, se vê numa circunstância concreta, em que tem de viver e que é social em uma de suas dimensões, por consequência  histórica. Nos passos de Ortega e Gasset, o filósofo Julián Marias admite  que  a geração não é um conceito biológico e sim histórico porque decisivo não é  a idade biológica que cada homem tem, mas, sim,  sua inserção numa determinada dimensão de mundo. Não se desprezando o fator biológico,  releva-se    a importância do ser histórico correspondendo ao seu lugar e à sua época. Geração seria  um conjunto de indivíduos  pertencente a vários grupos de idade ou não, portadores de conteúdo determinado e cujas atividades, anseios,  tendências, perspectivas  e alcances norteiam-se no sentido de uma afirmação, que é a  sua afirmação geracional.

          

          Conforme Julián Marias:


 O homem está vinculado a uma circunstância determinada, a um aqui e um agora em que lhe coube viver. Sua historicidade é um modo de cativeiro ou servidão; ser é ser isto e não aquilo, viver é estar numa circunstância e nela fazer determinadas  coisas com exclusão de todas as outras. Mas, como no homem atuam as demais circunstâncias em que já esteve e tudo aquilo que lhe aconteceu e que ele fez, só quando se conhece isto  se pode tomar posse de si mesmo, se é dono de si mesmo e por conseguinte se é livre. O homem se evade de sua historicidade mediante  a história como saber, isto é, se afirmando radicalmente nela.”

          

           Adiante, ele acrescenta:

 

          “A história permite ao homem transmigrar hermeneuticamente de sua circunstância para outras, e dessa maneira as fazer suas; só com a história toma inteiramente posse de si mesmo e sai da estreiteza de sua circunstancialidade e das interpretações tradicionais recebidas, para alcançar a própria realidade, além de todas as interpretações. Só com a razão histórica – com a razão que é a própria história – pode o homem dar a razão de si mesmo e projetar livremente sua vida pessoal, a partir de sua realidade originária e irredutível. A história, o órganon da autenticidade. (Introdução à filosofia, p. 342).

 

            A geração seria assim  a unidade concreta da cronologia histórica autêntica.

            Pelo exposto, a realização da vida nos remete a duas faixas  de questões: o horizonte histórico de nosso viver e o fundo pessoal de nós mesmos, configurado pelo fato da vocação. É a travessia com a nossa vocação, idêntica aos que pertencem ao grupo de indivíduos, que incide em nossa afirmação e faz da vida humana individual um acréscimo importantíssimo em nosso destino de seres gregários, entre o pensamento e o sentimento, atributos que são pertencentes a nós mesmos.  

           Na travessia de gerações baianas não se pode deixar de ser considerada a Geração Revista da Bahia. Sucedeu à fulgurante geração de Glauber Rocha, o fundador do Cinema Novo. A órbita de atuação da Geração Revista da Bahia foi a literatura e outros campos do conhecimento humano, como o cinema e as artes plásticas.  

            Com a dispersão da talentosa geração de Glauber Rocha, em 1964, outras gerações iriam despontar nos meios culturais de Salvador. A chamada Geração Revista da Bahia acontece nessa épocados de 1960. Seus jovens integrantes já demonstravam ser possuidores de certo instrumental crítico para a discussão dos temas literários e culturais.

            Este articulista fez parte da Geração Revista da Bahia, ao lado de  Alberto Silva, Marcos Santarrita, Ildásio Tavares, Ricardo Cruz, Adelmo Oliveira, Oleone Coelho Fontes, Fernando Batinga, Fernando Kraychete, o desenhista Nacif Ganem e o artista plástico Francisco Liberato, entre outros. Todos nós, iniciantes no fazer literário e na divulgação da cultura,  liderados pelo crítico e poeta Carlos Falck, o guru espiritual  do grupo, pretendíamos deixar nossa  impressão digital  no contexto literário e cultural da época. Alguns, como Ildasio Tavares e Marcos Santarrita, romperam tempos depois as fronteiras estaduais porque de fato elaboraram  uma obra significativa  no corpo do Brasil literário.   

          Geração Revista da Bahia. Levava esse nome porque o corpo redacional da  Revista da Bahia, órgão cultural da Imprensa Oficial, era formado pelos jornalistas Alberto Silva e Marcos Santarrita. A revista emprestava seu nome para denominar uma geração de promissores escritores e protagonistas culturais. Recebia em suas páginas colaborações desses novíssimos  intelectuais, contistas, poetas, ensaístas e desenhistas,  que tinham nos ombros o peso de susbstituir a  inquietante geração de Glauber Rocha,  a qual   havia sido dispersa pelo regime  militar de 64.  Era tarefa difícílima a de  uma geração constituída de jovens intelectuais substituir com o mesmo brilho aquela outra liderada pelo criador do Cinema Novo, que deixou pontos elevados na progressão da vida cultural de Salvador de Bahia.   

            Sempre com o apoio dos dois diretores da Imprensa Oficial, Germano Machado e José Curvelo, a Revista da Bahia foi para os artistas da geração 60, segundo Juarez Paraíso, responsável pela direção artística, o que significou os cinco números da revista Cadernos da Bahia, 1948, 1952, para os primeiros modernistas. Com Juarez Paraíso, a revista passou a ter um planejamento gráfico mais solto e moderno. Os números que foram lançados sob a sua responsabilidade artística foram enriquecidos com reproduções e ilustrações dos artistas Antônio Rebouças, Jamison Pedra, Hansen Bahia, Ângelo Roberto, Edsoleda Santos, Nacif Ganem, Manoel Araújo, Leonardo Alencar, Henrique Oswald, Riolan Coutinho, Edízio Coelho, Betty King, Francisco Liberato, Calazans Neto, Juarez Paraíso, José Maria, Sílvio Robatto, Genaro de Carvalho, Carlos Bastos, Raimundo Oliveira e outros.

          Considerando a idade biológica e afinidades culturais, o  elenco de intelectuais que formava a  Geração Revista da Bahia  pode ser ampliado  com os nomes de Luís Carbogini Quaglia, louvado contista do mar, Maria da Conceição Paranhos, poeta e ensaísta, Fernando Ramos e Guido Guerra, promissores romancistas,  José de Oliveira Falcón, o poeta de Canudos,  os cineastas Orlando Sena e Olney São Paulo e  o poeta Capinan.                                                                                                                                                       

            Na visão do ensaísta Cid Seixas, o mais importante lançamento de poesia na Bahia, no período compreendido entre 1964 e 1974, aconteceu com o livro ABC-reobtido, de Maria da Conceição Paranhos. O discurso da jovem poeta, com bases em pesquisa e   atualização estética, rejeitava os limites de certa retórica ornamental. Outro jovem intelectual baiano que desponta nas letras daquele período é Guido Guerra. Escritor de formação jornalística, ele trazia para a sua prosa de ficção os atritos e rupturas do homem cotidiano.

                A geração Revista da Bahia enfraqueceu com a ida de Alberto Silva, moderno crítico de cinema  e jornalista de um texto primoroso, para o Rio de Janeiro, em 1967, e logo a seguir a de Marcos Santarrita. Junta-se a isso o falecimento de Carlos Falk. Fui  para Itabuna onde exerceria a advocacia durante muitos anos. Permaneceram  em Salvador aquelas outras jovens vozes vocacionadas  para fazer da vida um consistente projeto literário e cultural.  

             Os sobreviventes da Geração Revista da Bahia dispersos,  sem contar com a força aglutinadora de Carlos Falck, presenças importantes de Alberto Silva e Marcos Santarrita,  já não tinham a mesma motivação para se encontrar  na Biblioteca Pública, localizada na Praça Tomé de Sousa,  nos botecos e bares da Rua da Ajuda, durante noites de sábado, na livraria Civilização Brasileira, na rua Chile, em final de tarde,  por onde toda a cidade passava na semana. 

            Quando então se discutia as questões de literatura atual, muitas vezes com veemência,  em torno de Kafka, Sartre, Brecht, Pessoa, Proust,  Joyce e Faulkner. Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Adonias Filho. Drummond, Jorge de Lima e Cecília Meireles. Era questionada a problemática social do indivíduo através do pensamento de Ortega y Gasset, Marx e Lukacs. A geopolítica do Brasil através dos estudos de Josué de Castro, a formação da família patriarcal brasileira com Gilberto Freire ou a evolução política do Brasil sob o método dialético marxista de Caio Prado Junior.

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Cyro de Mattos é ficcionista e poeta, publicado em Portugal, Itália, França, Alemanha, Espanha, Dinamarca e Estados Unidos. Premiado no Brasil, Portugal, Itália e México. Membro das Academias de Letra da Bahia, de Ilhéus e de Itabuna. Primeiro Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz.

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