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quinta-feira, 27 de julho de 2017

O PINCE-NEZ DE MACHADO - Nélida Piñon


O pince-nez de Machado

 

Dispomos de livros, quadros e objetos de origem pessoal, procedentes de acadêmicos como Olavo Bilac e Manuel Bandeira.

Cada objeto viveu à sombra do dono até o seu desenlace. Inanimados, despediram-se das casas onde foram seguramente felizes, e transferidos para a Academia Brasileira de Letras. Aqui ajudam a revelar que vida tiveram antes.
Espalham-se pelas bibliotecas e pelas salas. Ao vê-los inertes na aparência, compunjo-me, procuro saber que arrebato se escondeu em cada um deles. O quadro de Marília de Dirceu, a mulher amada pelo poeta da Inconfidência Mineira, pintado por Manuel Santiago, foi doado pelo acadêmico Getúlio Vargas na sessão do dia 24 de agosto de 1944. Nada sei do vínculo havido entre o presidente da República e a dama circundada por uma aura de mistério.
Estranho é ter-se instalado nas nossas dependências, sem explicação satisfatória, a chave da casa da mesma Marília. Destaco a lembrança mundana do cardápio do banquete oferecido a Machado de Assis em 1889, a evidência palpável de um festim do qual o autor se absteve quase de frequentar no futuro. 
Machado tinha afeição pelo lar. Ou o amor era para Carolina? O fato é que embelezou as paredes do Cosme Velho com razoável coleção de quadros que lhe iam sendo regalados. E indago, curiosa, o que motivou o presidente possuir uma litografia com o rosto de Flaubert.
Aqui está o quadro a óleo que Bernardinelli pintou do autor em 1905, três anos antes de sua morte. Nele estampa-se a severidade de um brasileiro que ascendeu ao firmamento e se descuidou da vida após a morte recente da esposa.
A Sala Machado de Assis, no primeiro andar do Petit Trianon, registra como o fundador da Academia Brasileira de Letras, de origem modesta, soube absorver as excelências de outras artes além da escrita. Exemplo deste apreço são os pertences que ainda restaram dele, à margem do verbo poderoso, que, observados, ganham transcendência. 
O pince-nez de uso diário, ali exposto após sua morte em 1908, perturba a quem se iluda em enxergar o mundo através dos olhos que o autor lhe empreste.
Observo o pince-nez e sofro o impulso de limpar os cristais. A amada peça com a qual Machado escrevia esmiuçando com ironia e perspicácia a besta humana. Talvez tendo a seus pés o cachorrinho que amava. O mesmo pince-nez com o qual apreciava os muitos quadros seus que tinham a mulher como tema, em geral com pose nada beatífica. 
Este pince-nez arfa na Academia Brasileira de Letras. Felizmente alguém o retirou do seu rosto, salvando-o de seguir com Machado de Assis para a eternidade.
O Globo, 25/07/2017


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Nélida Piñon - Quinta ocupante da Cadeira 30 da ABL, eleita em 27 de julho de 1989, na sucessão de Aurélio Buarque de Holanda e recebida em 3 de maio de 1990 pelo Acadêmico Lêdo Ivo. Em 1996-1997 tornou-se a primeira mulher, em 100 anos, a presidir a Academia Brasileira de Letras, no ano do seu I Centenário.

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FLIP 2017: 1º DEBATE EXALTA LITERATURA AFRODESCEDENTE E ESCRITOR SAÚDA ESCRAVOS

Poeta e ensaísta, Edimilson de Almeida Pereira lembrou 'ancestrais' que construíram a Igreja Matriz de Paraty. Obra de Lima Barreto foi tema do encontro.


Por Cauê Muraro, G1, Paraty
27/07/2017
O poeta, ensaísta e professor Edimilson de Almeida Pereira e a crítica e professora Beatriz Resende no primeiro debate da Flip 2017, nesta quinta-feira (27) (Foto: Divulgação/Flip)

Ao saudar e pedir licença aos escravos que "construíram este templo" (no caso, a Igreja Matriz de Paraty) e exaltar a literatura afrodescendente, o poeta, ensaísta e professor Edimilson de Almeida Pereira foi aplaudido no primeiro debate da 15ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip).

Já em sua primeira fala, Pereira afirmou que o espaço que recebe a programação principal do evento "remete a trabalhos de escravos do século XVII", a quem se referiu como "ancestrais".

Mais tarde, ao falar sobre o cânone afrodescendente (ou afro-brasileiro) – que difere do cânone brasileiro convencional, estruturado "a partir da Europa" – , afirmou que ele "não é novo, já está aqui desde que o primeiro escravo pisou nesta terra".

Concluiu dizendo, sob novos aplausos: "O que esse cânone tem de fundamental é uma proposta crítica na qual as vozes dos excluídos demonstram o que elas têm a dizer em relação as várias esferas da vida social". Nomeou como exemplo de "excluídos" os descendentes de indígenas.

E falou ainda que "o cânone afrodescendente pressupõe um espaço importantíssimo para a autoria feminina – de modo geral, o cânone [convencional] exclui mulheres".

"É essa literatura que chamo de estrangeira", disse, citando que ela "tem chegado pouquíssimo na universidade", "o silêncio pesado do racismo e a herança escravocrata". "A questão é: estamos preparados para a sua emergência?"

Homenagem (meio vazia) a Lima Barreto

O tema da mesa foi o homenageado da edição, Lima Barreto. Na noite anterior, ele já havia sido "protagonista" da abertura, em perfomance emocionada do ator Lázaro Ramos e "aula biográfica" da historiadora e escritora Lilia Scwharcz.

Chamado de "Arqueologia de um autor", o encontro reuniu, além de Edimilson Pereira de Almeida, outros dois convidados: a crítica literária e professora Beatriz Resende e o professor de literatura Felipe Botelho Corrêa.

Este primeiro debate da Flip 2017 não estava cheio. No interior da Igreja Matriz, que sedia a programação principal do evento, dava para contar pelo menos 50 cadeiras vazias, das 450 disponíveis. Na fila de entrada, minutos antes de a conversa começar, uma frequentadora gritava ofecerendo um ingresso que tinha sobrando nas mãos.

Lima Barreto militante

Beatriz Resende disse que "custou para vir a homenagem" a Lima Barreto na Flip. "Este é o momento ideal. Estamos precisndo, hoje no Brasil retomar, as críticas de Lima Barreto", afirmou, especificando textos do autor que condenavam "a República, o Congresso incompetente e omisso, os deputados que praticam nepotismo com a maior facilidade".

Professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), foi aplaudida lembrar "colegas meus da Uerj [Universidade Estadual do Rio de Janeiro] que há quatro meses não recebem salário". "Essa é penalizada por ser a primeira a abrir vagas de cotas e dar bolsas a cotistas. Porque costistas, como precisam de passagem para sair de lugares distantes, como Lima Precisava."

Já Felipe Botelho Corrêa comentou a "literatura militante" do homenageado, que escreveu numa época em que "a literatura começa a ser mais popular aos recém alfabetizados". "Ele tinha um projeto literário muito claro de falar para o maior número possível de gente."

Para o professor, a militância de Lima Barreto era "muito mais desse lado intelectual de usar esse meio de comunicação de massa para levar a literatura a um novo público". Ao se dirigir àquela nova classe, em geral ocupante do subúrbio do Rio, o escritor passou a "falar de uma coisa mais leve, clara, oral".




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