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sexta-feira, 2 de julho de 2021

DE CIMA PARA BAIXO – Artur Azevedo

 


De Cima Para Baixo

Artur Azevedo

 

          Naquele dia o ministro chegou de mau humor ao seu gabinete, e imediatamente mandou chamar o diretor-geral da secretaria.

          Este, como se movido fosse por uma pilha elétrica, estava, poucos instantes depois, em presença de sua excelência, que o recebeu com duas pedras na mão.

          - Estou furioso! – exclamou o conselheiro. – Por sua causa passei por uma vergonha diante de sua majestade o imperador!

          - Por minha causa? – perguntou o diretor-geral, abrindo muito os olhos e batendo no peito.

          - O senhor mandou-me na pasta um decreto de nomeação sem o nome do funcionário nomeado!

          - Que me está dizendo, excelentíssimo...?

          E o diretor-geral, que era tão passivo e humilde com os superiores quão arrogante e autoritário com os subalternos, apanhou rapidamente no ar o decreto que o ministro lhe atirou, em risco de lhe bater na cara, e, depois de escanchar a luneta no nariz, confessou em voz sumida:

          É verdade! Passou-me! Não sei como isso foi...!

          - É imperdoável esta falta de cuidado! Deveriam merecer-lhe um pouco mais de atenção aos autos que têm de ser submetidos à assinatura de sua majestade, principalmente agora que, como sabe, está doente o meu oficial de gabinete!

          E, dando um murro sobre a mesa, o ministro prosseguiu:

          - Por sua causa esteve iminente uma crise ministerial; ouvi palavras tão desagradáveis proferidas pelos augustos lábios de sua majestade, que dei a minha demissão!...

          - Oh!...

          - Sua majestade não a aceitou...

          - Naturalmente; fez sua majestade muito bem.

          - Não aceitou porque me considera muito, e sabe que a um ministro ocupado como eu é fácil escapar um decreto mal copiado.

          - Peço mil perdões a vossa excelência – protestou o diretor-geral, terrivelmente impressionado pela palavra demissão. – O acúmulo de serviço fez com que me escapasse tão grave lacuna; mas afirmo a vossa excelência que de agora em diante hei de ter o maior cuidado em que se não reproduzam fatos desta natureza.

          O ministro deu-lhe as costas e encolheu os ombros, dizendo:

          - Bom! Mande reformar essa porcaria!

 

          O diretor-geral saiu, fazendo muitas mesuras, e chegando no seu gabinete, mandou chamar o chefe de 3ª seção que que o encontrou fulo de cólera.

          - Estou furioso! Por sua causa passei por uma vergonha diante do senhor ministro!

          - Por minha causa?

          - O senhor mandou-me na pasta um decreto sem nome do funcionário nomeado!

          -  E atirou-lhe o papel, que caiu no chão.

          O chefe da 3ª seção apanhou-o, atônito, e, depois de se certificar do erro, balbuciou:

          - Queira vossa senhoria desculpar, Sr. Diretor... são coisas que acontecem... havia tanto serviço... e todo tão urgente!...

          - O Sr.  Ministro ficou, e com razão, exasperado! Tratou-me com toda a consideração, com toda a afabilidade, mas notei que estava fora de si!

          - Não era o casa para tanto...

           - Não era caso para tanto? Pois olhe, sua excelência disse-me que eu devia suspender o chefe de seção que me mandou isso na pasta!

          - Eu... Vossa senhoria...

          Não o suspendo; limito-me a fazer-lhe uma simples advertência, de acordo com o regulamento.

          - Eu... vossa senhoria.

          Não me responda! Não faça a menor observação! Retire-se, e mande reformar essa porcaria!

 

          O chefe da 3ª seção retirou-se confundido, e foi ter à mesa um amanuense que tão mal copiara o decreto:

          - Estou furioso, Sr. Godinho por sua causa passei uma vergonha diante do Sr. Diretor Geral!

          - Por minha causa?

          - O senhor é um empregado inepto, desidioso, desmazelado, incorrigível!  Este decreto não tem o nome do funcionário nomeado! E atirou o papel, que bateu no peito do amanuense.

          - Eu devia propor a sua suspensão por quinze dias ou um mês: limito-me a repreende-lo na forma do regulamento! O que eu teria ouvido, se o Sr. Diretor-geral não me tratasse com tanto respeito e consideração!

          O expediente foi tanto, que não tive tempo de reler o que escrevi...

          - Ainda o confessa!

          - Fiei-me em que o senhor chefe passasse os olhos...

          - Cale-se!...  Quem sabe se o senhor pretende ensinar-me quais sejam as minhas atribuições?!...

          - Não, senhor, e peço-lhe que me perdoe essa falta...

          - Cale-se, já lhe disse, e trate de reformar essa porcaria!...

          O amanuense obedeceu.

          Acabado o serviço, tocou a campainha.

          Apareceu um contínuo.

          - Por sua causa passei por uma vergonha diante do chefe de seção!

          - Por minha causa?

          - Sim, por sua causa! Se você ontem não tivesse levado tanto tempo a trazer-me o caderno de papel imperial que lhe pedi, não teria eu passado a limpo este decreto com tanta pressa que comi o nome do nomeado!

          _ Foi porque...

          - Não se desculpe: você é um contínuo muito relaxado!

          Se o chefe não me considerasse tanto, eu estava suspenso, e a culpa seria sua! Retire-se!

          - Mas...

          Retire-se, já lhe disse! E deve dar-se por muito feliz: eu poderia queixar-me de você...

 

          O contínuo saiu dali, e foi vingar-se num servente preto, que cochilava num corredor da secretaria.

          - Estou furioso! Por tua causa passei pela vergonha de ser repreendido por um bigorrilhas!

          - Por minha causa?

          - Sim; quando te mandei ontem buscar na portaria aquele caderno de papel imperial, por que te demoraste tanto?

          Porque...

          - Cala a boca! Isto aqui é andar muito direitinho, entendes?  Porque no dia em que eu me queixar de ti ao porteiro, estás no olho da rua! Serventes não faltam!...

          O preto não redarguiu.

          O pobre diabo não tinha ninguém abaixo de si, em quem pudesse desforrar-se da agressão do contínuo; entretanto, quando depois de jantar, sem vontade, no frege-moscas, entrou no pardieiro em que morava, deu um tremendo pontapé no seu cão.

          O mísero animal que vinha, alegre, dar-lhe as boas-vindas, grunhiu, grunhiu, e voltou a lamber-lhe humildemente os pés.

          O cão pagou pelo servente, pelo contínuo, pelo amanuense, pelo chefe de seção, pelo diretor-geral e pelo ministro.

         

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Artur Azevedo (Artur Nabantino Gonçalves de Azevedo), jornalista e teatrólogo, nasceu em São Luís, MA, em 7 de julho de 1855, e faleceu no Rio de Janeiro, RJ, em 22 de outubro de 1908. Figurou, ao lado do irmão Aluísio Azevedo, no grupo fundador da Academia Brasileira de Letras, onde criou a cadeira nº 29, que tem como patrono Martins Pena.     

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