O Legado de Elvira Foeppel
Cyro de Mattos
Como Maura Lopes Cançado, autora de O hospício é Deus (1965), diário, e O
sofredor do ver (1968), contos, Elvira Foeppel deixou um legado literário
pequeno, mas expressivo. Com Chão e poesia, pequeno volume com registros
circunstanciais e anotações existenciais, fez a sua estreia em 1956, quando usa
o diário como forma para exprimir a sua visão pessoal sobre o mundo. Nesses
textos breves, já demonstra ser uma escritora preocupada com o indivíduo na
condição do existir. Comparece ao chão de memórias curtas com pontos de vista
pessoais, fazendo delas articulações agudas que ocupam espaços no sentido
incomum de ambiguidades e ferimentos, entre a introversão e a denúncia de si
mesma feita por um espírito inquieto, participante de uma força nova em nossa
literatura.
Com Círculo do medo, contos, 1960, essa escritora baiana
nascida em Ilhéus é saudada pela crítica
como autora de textos inovadores no corpo da prosa de ficção breve desenvolvida
entre nós. Elvira Foeppel introduz no conto elementos de vanguarda na estrutura
e linguagem. O episódio, a trama, o ambiente, elementos presentes numa prosa ficcional que se delineia
objetiva, dependente de uma geografia humana exterior, em níveis horizontais no
discurso, são abandonados para a construção de uma narrativa comprometida com a
linguagem motivadora de mergulhos no fluxo da vida, da atmosfera e do relevo dos personagens ,
que se aglutinam em torno de profunda percepção existencial, em cujo conteúdo o
indivíduo emerge através dos conflitos universais, perpassados de angústia,
náusea, solidão, amor, ódio e medo.
Em Chão e poesia, a maneira de registrar a vida relaciona-se
no campo expressivo próprio do eu inquietante, que comporta nos interiores
pensamentos, divagações e pequenas percepções do mundo. Circulo do medo é o
mundo ficcionalizado que se converte naquele espaço interior em que entram
sentimentos atordoantes, sugestões que assaltam à mente carregadas de estranha
beleza, além de exibir uma linguagem como instrumento de mergulho existencial
destinado à criação de uma atmosfera, que quase sempre sufoca em sua morbidez.
Observa-se que esse pequeno volume de contos é um repositório de peças de
ficção sem didatismo do narrador onisciente, devaneios inúteis, informações do
cotidiano ou lembranças sequenciadas no tempo sem verticalidades. O que sobressai é o compromisso da autora em
encarar a criação literária sem submissão à razão lógica. Inexiste assim o caso
narrado através dos momentos de princípio, meio e fim, o tema que se impõe como
resultado da recriação do real assentado na memória, no telurismo social ou
nostálgico, no documento que revela a condição humana ligada ao urbano com os
seus dramas diários adstritos à realidade circundante.
Os desajustes, abandonos, desencontros e momentos críticos
das criaturas inventadas por Elvira Foeppel situam-se no plano da poetização de
um clima, armado por quem sabe revestir a vida em torno de uma aura estética
ligada à própria existência humana. O estar no mundo desses personagens com
sentimentos em conflito valoriza-se no que tem de mais profundo pela
sensibilidade da ficcionista e em sua pesquisa da forma discursiva. Esta não se
faz no que pretende sugerir com qualquer concessão ao leitor mediano. Podem ser
destacados em Circulo do medo os contos “O fio metálico do ódio”, “O aleijado”
e “Afinal lá estava ela” como exemplos de mais autêntico mergulho nos
interiores obscuros da criatura humana.
Muro frio, romance publicado em 1962, tem lugar assegurado
em nossa novelística de renovação esteticista, numa época em que a literatura
brasileira converge para procedimentos de vanguarda. Quando então romancistas,
contistas e poetas procuram executar a arte literária no plano da linguagem e
no significado incomum da forma pesquisada, assim como na ficcionalização da
vida apurada pelos fios da sensibilidade, sugestões e pontuação psicológica,
elementos que apresentam com a sua fisionomia bastante impregnada de sentimentos obscuros do mundo. É uma nova literatura que obriga o
leitor a pensar a narrativa como um todo, destituída na sua construção do dizer fácil, fluente e permeado
de lugares comuns. Nesse particular, Elvira Foeppel insere-se em nosso contexto
literário como transgressora de estrutura, numa hora em que a nossa ficção
ainda não era plena de procedimentos proustianos, mansfieldianos, joycianos e
faulknerianos. Justamente quando o nosso corpo literário passa a ser inovado e
acrescido de qualidade estética por romancistas da grandeza de João Guimarães
Rosa, Clarice Lispector, Adonias Filho e do contista Samuel Rawet.
Muro frio é um romance articulado com poesia, música e
memória, centrado em uma mulher que retorna à sua cidade para alcançar e ferir,
na sua maneira de ser, pessoas na rua. Exprime pensamentos que atritam com a
existência, sinaliza a dor do nada, constata juízos e preconceitos que fazem
emergir uma angústia consciente, na qual a vida não se justifica nem é
motivada. Romance que, em sua narrativa subjetiva, formada de breves capítulos,
estende na memória um passado que tritura a infância, sentimentos espontâneos e
desejos verdadeiros. Apresenta momentos do presente que apertam o olhar agudo
de Marta no que amplamente vê, nos rumores de tudo que não chega a compreender
e que a desnuda através da agonia e insolência, conduzindo-a dessa forma por
paisagens de subsolo que perturba, espaços ocultos e tortuosos, feitos de
vertigem, verdades oblíquas e ferocidades perigosas.
Romance que fantasia a natureza humana com dolorosos
silêncios que oprimem, desvenda Marta, morta num sonho. Com o seu ritmo poético
faz pulsar um corpo de mulher possuída de ruídos selvagens, enquadrada numa
cidade velha e pequena, repetitiva e enfadonha. Lá, onde a vida qual muro frio
levanta sinais e gritos que não alteram o ritmo do viver. O espetáculo nada
generoso do tempo no relacionamento das pessoas nutre-se de uma atmosfera com
mentiras e excessos.
O estilo sugestivo, que a autora usa para criar o clima
tecido de sensações e percepções amargas, no qual se situa Marta, projeta um
campo metafórico perturbador, que funciona no texto verbal, trabalhado em nível
da forma, como momento singular da nossa emancipação literária no terreno da linguagem.
E isso se dá num corpo com mãos
femininas que tão bem sabem inventar a língua literária, habilmente usá-la na
estilização do drama e do cotidiano, como são exemplos disso Rachel de Queiroz,
Clarice Lispector, Helena Parente Cunha e Lígia Fagundes Telles.
A arte literária de Elvira Foeppel chama a atenção também
por ter a autora nascido no sul da Bahia e em nenhum momento eleger a
civilização cacaueira com o seu modo singular de vida como tema do universo
ficcional, a exemplo do que ocorre com os escritores Jorge Amado, Adonias Filho
e outros com um legado de expressão consistente. Nem sequer funde o regional com o espiritual
em busca de alcançar o universal, nem une poesia e humanismo social para retratar
a vida geograficamente localizada, dependente da realidade exterior. Sua literatura é de construção poemática, por
excelência, seu discurso também conceitua, afirma sem hesitar em seu fundo
existencial, faz com o outro pense a vida em suas verticalidades, enigmas e
abismos. Passa longe de subjetivismos
eleitos para insinuar geografias espirituais, solidões ou sensações frouxas de
nosso ser-estar precário no mundo.
A obra de Elvira Foeppel vem sendo estudada recentemente por
Vanilda Mazzoni, que, juntamente, com Alicia Duhá Lose, resgatou boa parte do
legado disperso, publicado no período de vinte e dois anos, compreendido entre
março de 1950 e 1972, em periódicos de divulgação e amenidades. Esse trabalho
cuidadoso resultou no livro Da sombra à luz, seleção de contos, publicado em
2005, pela Editus, editora da Universidade Estadual de Santa Cruz.
Elvira Foeppel nasceu
em Canavieiras, em 15 de agosto de 1923, mas com dois meses de idade a família
transferiu-se para Ilhéus onde, na cidade de belas praias, passou a infância,
adolescência e exerceu o magistério primário até transferir-se para o Rio de
Janeiro. Foi colaboradora no Rio de Janeiro, com artigos e crônicas, das
revistas “Leitura”, “Cadernos Brasileiros” e, com maior frequência, do
“Suplemento Literário do Jornal do Brasil”, ao lado de José Edson Gomes, Judith
Grossman, Reynaldo Jardim e Assis Brasil.
Seus contos participam de antologias no Brasil. Deixou inédito Íntimos
da Morte, romance. Faleceu no Rio de Janeiro, em 28 de julho de 1998.
Leituras Sugeridas
FOEPPEL, Elvira. Chão e poesia, memórias curtas, Organização
Simões Editora, Rio de Janeiro, 1956.
---------------------- Círculo do medo,
contos, Editora Leitura, Rio de Janeiro, 1960.
----------------------Muro frio, romance, Editora Leitura, Rio de
Janeiro, 1961.
------------------------ Da sombra à luz, contos, seleção de
Vanilda Salignac Mazzoni e Alícia Duhá Lose, Editus, editora da UESC, Ilhéus,
Bahia, 2004.
MAZZONI, Vanilda. A violeta grapiúna, ensaio, Editus,
Editora da UESC, Ilhéus, 2003.
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Cyro de Mattos é escritor e poeta. Membro efetivo das
Academias de Letras da Bahia, de Itabuna e de Ilhéus. Doutor Honoris Causa pela
Universidade Estadual de Santa Cruz.
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