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domingo, 4 de novembro de 2018

DO TRABUCO À PALAVRA - Cid Seixas


Do trabuco à palavra


          São duas armas, uma é mortal; a outra vislumbra a imortalidade. A escolha se impõe. Vamos ao texto.

          Cyro de Mattos é um dos muitos escritores baianos da região do cacau – e um dos poucos cujo trabalho constante e associado ao necessário talento, é capaz de assegurar-lhe um lugar de destaque no quadro da Literatura Brasileira.

          Sua produção remonta aos emblemáticos anos sessenta, quando publicou Berro de Fogo, seu primeiro livro, ainda marcado por imperfeições e outros traços de início de uma aprendizagem. Consciente da falibilidade do artista, Cyro exclui o livro da sua bibliografia para aproveitar o conto-titulo e publicar, já em plena maturidade, em 1997, pela Editus e Fundação Jorge Amado, uma das suas obras clássicas: Berro de Fogo e Outras Histórias.

          Alceu Amoroso Lima, crítico e pensador dos mais respeitados, que adotou o pseudônimo de Tristão de Ataíde, deu-nos um testemunho essencial para a inclusão do nome do grapiúna no quadro da literatura brasileira do século vinte:

“Extraordinária capacidade de dar aos aspectos mais típicos da realidade nacional, em estilo profundamente impregnado da nossa fala brasileira, a revelação de um escritor visceralmente nosso... admirável ficcionista”.

        Convém lembrar que foi em 1968 que Cyro de Mattos viu seu nome ser incluído entre os bons contistas, quando a narrativa “Inocentes e Selvagens” – selecionada para figurar neste e-book – recebeu o Prêmio Internacional Cervantes, da Casa dos Quixotes, para autores portugueses, africanos e brasileiros de língua comum.

          É ele quem revela, em correspondência de outubro de 2018, ao organizador deste volume:

– “Concorri com mais de 100 autores. Como era um concurso  expressivo na época,  lançou-me como autor de ficção curta no circuito nacional. Eu era desconhecido, estava dando os primeiros passos,  hesitantes, em minhas atividades literárias. Havia publicado Berro de Fogo, contos, livro riscado de minha bibliografia; nasceu imaturo, cheio de vícios.”

          A atitude consciente do contista, rigoroso a ponto de abandonar um livro que não mais respondia ao rigor da sua obra, nos remete ao escritor português Miguel Torga, cujo primeiro volume das suas obras publicadas no Brasil, pela Nova Fronteira, em 1996, tive a oportunidade de fazer uma introdução crítica, por sugestão da família do autor. Como foi observado, não apenas vários contos, mas alguns livros torguianos, na sua forma original, foram reescritos, repetidamente, em novas e constantes reedições. Nesse particular, o nosso Cyro de Mattos adota o procedimento do autor português da geração de presença, diferentemente do que fez o também grapiúna Jorge Amado, fundador e figura de topo do ciclo do cacau na Literatura Brasileira.

          Amado não volta aos seus romances da juventude para reescrevê-los. Ao contrário, deixa essas obras na forma original, mesmo quando revelam uma escrita em processo de amadurecimento ou quando traduzem uma perspectiva ideológica que se modificou ao longo do tempo, especialmente ao descobrir – com traumas e assombro – as incoerências da prática comunista de Stálin, contrárias à sua concepção humanista da socialização dos bens e dos valores.

          Voltando ao juízo feito por Cyro de Mattos das suas narrativas, convém transcrever mais um trecho da já referida correspondência:

– “O conto “Os Recuados”, pungente e denso, é a história de uma mãe miserável, coitada, que mata o filho por amor, pois não suportava mais vê-lo chegar em casa bêbado. Ele bebia muito porque se via rejeitado como um índio pelos humanos, na feira. Deixo que isso seja visto nas entrelinhas.”

          Em 1983, a Editora Tchê, de Porto Alegre, deu a lume o livro Os Recuados, de onde foi retirado o conto título, para compor este livro digital agora publicado na coleção “Teal” da E-Book.Br. Estes dois contos já citados são fundamentais na obra do autor e, coincidentemente, ouvindo-o sobre suas preferências, ele destacou as duas narrativas que ao lado de outras já tínhamos em vista para integrar este volume.

          Surpreendentemente, para mim, Cyro de Matos destacou textos por ele intitulados de “contos de gente jovem”. O primeiro deles é “História do Galo Clarim”, que eu não conhecia e creio continuar ainda inédito, e o segundo é “O Menino e o Boi do Menino”, que completam este volume intitulado Nos Tempos do Trabuco. Esse último texto saiu em 2007 como um pequeno livro para os novos leitores infanto-juvenis, através da editora Biruta, de São Paulo.

          Pela qualidade dessa faceta do escritor, a de autor de livros para jovens e crianças, e ainda mais pela natureza das narrativas de múltiplo alcance, isto é, capazes de interessar ao público adulto e a conquistar jovens andarilhos que se aventuram pelos caminhos da leitura, tais inclusões valorizam este e-book..

          Embora apenas os contos “Inocentes e Selvagens” e “Os Recuados” integrem explicitamente a sangrenta temática do ciclo do cacau na Literatura Brasileira, o leitor das obras de Cyro de Mattos tende a situar esses singelos acontecimentos da infância no mesmo cenário geográfico das suas outras narrativas ficcionais, plenas de heroísmo e vilania que marcam a saga do cacau.

          Convém observar que “Inocentes e Selvagens”, além de ter aberto espaço para esse escritor nascido em 1939, na cidade de Itabuna, veio a integrar o livro Duas Narrativas Rústicas, editado no Rio de Janeiro, em 1985, pela editora Cátedra.

          Jorge Amado foi um dos muitos leitores privilegiados da obra desse escritor a deixar patente a admiração pela sua escrita genuinamente brasileira:

“Cyro de Mattos possui uma personalidade vigorosa e original, a condição humana dos personagens que surgem do seu conhecimento e da sua emoção nada tem de artificialismo... O autor de Os Brabos pisa chão verdadeiro, toca a carne e o sangue dos homens, entre sombras e abismos.”

          Diplomado em Direito pela Universidade Federal da Bahia, ele foi atraído pela força e pelo encanto da palavra escrita. Seguindo o caminho da maioria dos escritores brasileiros da região Nordeste, Cyro também se fez retirante, levando seu gibão de couro, cheio de histórias pra contar, até a ex-capital do país, o Rio de Janeiro. Para encontrar audiência, trabalhou como redator do Diário de Notícias, do Jornal do Comércio e de O Jornal, de 1966 a 1971; colaborando ainda com artigos e contos na revista A Cigarra e nos Cadernos Brasileiros e Leitura, além do Suplemento Literário do Jornal do Brasil e d’O Jornal do Escritor.

          Como o bom filho quase sempre retorna à casa paterna, o escritor Cyro de Mattos voltou a morar em Itabuna, onde exerceu a advocacia e também encontrou tranquilidade para fazer frondosa a sua obra de mil e uma facetas.


Cid Seixas é poeta,  ensaísta e Doutor em Letras pela USP. Editor da Editora Digital Universitária. O texto  “Do Trabuco à palavra” é a apresentação do livro “Nos Tempos do Trabuco”, do baiano Cyro de Mattos, publicado pela e-book Editora Digital Universitária, Salvador, 2018.

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PALAVRA DA SALVAÇÃO (103)


31º Domingo do Tempo Comum - Solenidade de todos os Santos – 04/11/2018

Anúncio do Evangelho (Mt 5,1-12a)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Mateus.
— Glória a vós, Senhor.

Naquele tempo, vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-se. Os discípulos aproximaram-se, e Jesus começou a ensiná-los:
“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados.
Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a terra.
Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados.
Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia.
Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus.
Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus.
Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.
Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de mim. Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos céus”.

— Palavra da Salvação.

— Glória a vós, Senhor.


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Ligue o link abaixo e acompanhe a reflexão do Evangelho:

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Amor é o que diz "sim" em nós

 “...amarás o Senhor teu Deus de todo o teu coração... amarás o teu próximo como a ti mesmo” 

Há perguntas que realmente não despertam nada; há perguntas maliciosas e capciosas que só buscam complicar o outro; mas há perguntas essenciais que despertam nosso “eu profundo”. 

No evangelho deste domingo (31º Dom TC) nos encontramos com alguém sincero que, como outros muitos, se vê enredado em meio a tantos mandamentos e preceitos que já não sabe por onde começar a caminhar. Finalmente, alguém quer pôr as coisas em seu lugar; não quer ficar nos ramos, mas quer ir à raiz, ao verdadeiramente essencial. “Qual é o primeiro de todos os mandamentos”? Jesus também não é daqueles que soluciona os problemas vitais multiplicando mandatos, leis, preceitos. Jesus também vai as raízes da fé. 

Possivelmente é a única vez que Jesus responde diretamente à pergunta, porque a considera interessante e sincera. Significativamente, Jesus não apela aos dez mandamentos, mas à atitude central da experiência religiosa judaica: “Escuta, Israel! Amarás o Senhor teu Deus...” Ele não começa pelo sexto mandamento, nem pelo nono, que são mandamentos fundamentais para a imensa maioria dos cristãos; nem sequer pelo quinto (não matar) ou pelo sétimo (não roubar). 

Jesus entende muito bem o que aquele homem sente. Quando na religião vão se acumulando normas e preceitos, costumes e ritos, é fácil viver dispersos, sem saber exatamente o que é fundamental para orientar a vida de maneira sadia. Algo disto acontece muito entre nós cristãos. Jesus, diante da pergunta do escriba, atreveu-se a ir mais longe: há uma realidade em nossas vidas capaz de fazer emergir o melhor que há em todos nós, e é simplesmente o amor. E não há outra experiência de que mais necessitamos e que mais nos realiza como humanos como essa: “amar e ser amado”.

Comecemos pela experiência básica: no princípio não está o “faça isso”, nem o “amarás”, mas o “escuta”: acolha a voz de Deus! Só a partir dessa “escuta” se pode falar de amor a Deus e ao próximo. “Escuta”: este é o princípio de todo mandamento. No fundo, esta expressão quer dizer: “não te feches, não faças de tua vida um espaço enclausurado, onde só se escutam tuas vozes e as vozes de teu mundo”. Para além do que fazemos ou pensamos, daquilo que desejamos e buscamos, estende-se o amplo campo da manifestação de Deus; abrir-nos à sua voz, manter ativa a atenção à sua presença, ser receptivos frente sua Palavra..., esse é o princípio e sentido do qual brota toda vida e todo mandamento.

Cada ouvinte é um “tu” de Deus, chamado a responder-lhe com amor. Este amor que aqui se pede deve surgir como resposta: não é uma “obra” que o ser humano possa suscitar por si mesmo, mas um dinamismo pleno que brota ali onde cada ser humano acolhe a voz de Deus. Não pode responder quem não escutou; não pode amar quem não entrou no fluxo do amor de Deus, eleito por sua graça. Só porque Deus o chamou e o amou primeiro, é que o ser humano pode lhe responder.

Quando entramos em sintonia e escutamos o verdadeiro Deus, desperta-se naturalmente em nós uma atração para o amor. O “mandamento do Amor” não é propriamente uma ordem ou imposição. É o que brota em nós ao abrir-nos ao Mistério último da vida. “Amarás”. O mandamento do Amor não é lei que se impõe a partir de fora; ele “emana” (mandamento) do nosso próprio interior, pois o Amor tem como Fonte o coração do próprio Deus. Amar Aquele que é a Fonte e a origem da vida é viver amando a vida, a criação e, sobretudo, as pessoas. Jesus fala do amar “com todo o coração, com toda a alma, com todo o ser”: sem mediocridade nem cálculos interesseiros, mas de maneira generosa e confiada.

O importante não é conhecer preceitos e cumpri-los. O decisivo é nos deter a escutar o Deus que nos fala ao coração, ativando a “faísca de amor” que aí está presente. Nesta experiência, não há intermediários religiosos, não há teólogos nem moralistas. Não precisamos que alguém nos diga a partir de fora. Sabemos que o essencial é amar. E isto basta! 

De fato, só merece o nome de Amor aquele que brota a partir da mais profunda liberdade e sem outra motivação que a atração desse mesmo amor. “Palavra grande, realidade maior”, dizia S. Agostinho a respeito do amor. 

Nas duas tradições, judaica e cristã, o centro da pessoa é o coração. Amar é fazer tudo com o coração. Falamos do Amor Ágape que transborda, que nada pede em troca, que ama sem ter nada de particular para amar. É amor de pura gratuidade, como dom total de si mesmo. Não é motivado pelo valor do outro, ou pela recompensa que o outra possa trazer. Com efeito, neste caso não se ama o outro porque ele é bom, mas para que seja bom, já que o amor quer o bem do amado. “O amor é comunicação mútua de dons” (S. Inácio) 

O amor ágape é expansivo: nos alarga através dos nossos membros, mãos e pés. O Amor Ágape não é o amor que sacia nossa sede, pois ele não nasce da nossa sede, mas ele nasce da nossa fonte que corre. Não é o amor da falta, da carência, mas é o amor da plenitude. 

Podemos dizer que o amor tem mãos e pés: mãos que cuidam, curam, abençoam... e pés que nos arrancam de nossos lugares rotineiros e nos deslocam para as margens, junto aos mais excluídos. Uma das maiores razões para o Amor ser uma experiência de expansão se deve à sensação de imortalidade e eternidade que nos proporciona. Quem ama vê o tempo se alargar e a vida ganhar mais sentido.  Em outras palavras, o Amor traz em si a marca da eternidade, pois se trata da “faísca de Javé” colocado por Ele no coração do ser humano, impregnando toda a sua vida. 

Quando o Amor nos habita tudo se torna sagrado. Não há “Terra Santa”, há uma maneira santa de caminhar sobre a terra. “O amor é o que diz sim, em nós”: sim à vida, sim ao compromisso, sim à compaixão... É preciso encontrar dentro de nós este estado de “sim” ao que é. É necessário que descubramos em nosso interior, o sim mais profundo que se faz visível no amor oblativo. 

Quando o amor nos habita, tudo se torna sagrado; nossos olhos se tornam contemplativos, ou seja, o olhar que libera o que há de melhor em nós e nos outros. Transformamo-nos naquilo que olhamos e tornamo-nos aquilo que amamos. O amor é uma irradiação do nosso ser. 

A originalidade de Jesus é a de nos revelar um amor horizontal no qual o movimento do eu em direção ao outro é reprodução e prolongamento do movimento de Deus em direção ao ser humano. Este amor a Deus é inseparável do amor ao próximo. Só se pode amar a Deus amando o próximo; do contrário, o amor a Deus é falso. Como vamos amar o Pai sem amar os seus filhos e filhas?

O texto de hoje não só reafirma o amor ao próximo, mas, ao mesmo tempo, realça sua modalidade: “ame a seu próximo como a si mesmo”. O que significa amar o próximo “como a si mesmo”? É como se dissesse: “ame seu próximo, é você mesmo”; “esse amor ao próximo é você mesmo”; “ame o seu próximo, tudo isso é você mesmo”; “ame o seu próximo, porque o seu próximo é justamente como você mesmo”. 

A medida do amor de Deus é não ter medida, ou seja, experiência de abertura infinita, pois Deus ultrapassa os limites e normas da humanidade. “Como a ti mesmo”: a medida do amor ao próximo é agora a do próprio amor: amar o outro como a mim mesmo, ou seja, senti-lo como “outro eu” a meu lado, fazendo de sua vida espaço e centro de minha própria vida. 

Texto bíblico:  Mc. 12,28-34 

Na oração:

- entoar um hino de louvor e gratidão a Deus pelo Seu “amor em excesso” que se revela no cotidiano da vida;

 - ter sempre presente na memória que fomos criados para viver em relação de amor e solidariedade com todos;

- considere que toda a Criação saiu das mãos do Criador como presente especial e gratuito, como uma mensagem de Amor a cada um de nós.

Pe. Adroaldo Palaoro sj

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