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sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

DOM BOSCO — um dos maiores santos do século XIX


 31 de janeiro de 2020

No dia 31 de janeiro de 1888 encerrou-se a carreira terrena daquele que assim foi elogiado pelo grande Papa Pio IX: “Em Dom Bosco o sobrenatural havia chegado a ser natural, e o extraordinário, ordinário, e a legenda áurea dos séculos passados, realidade presente”.
·         Plinio Maria Solimeo


 
      Neste artigo nos deteremos apenas em alguns aspectos da vida de São João Bosco, pois em artigos anteriores já apresentamos a magnífica biografia desse ilustre santo e grande taumaturgo. 
        Dom Bosco já em vida gozava de fama de santidade. Sua rica personalidade encheu praticamente todo o século XIX. Como comenta o Cardeal Pedro Maffi, Arcebispo de Pisa, “a vida de Dom Bosco é tão densa, tão variada e tem tão múltiplas facetas que, a quem se acerca para contemplá-la ou estudá-la, sempre lhe ficará na sombra alguma face importante do poliedro”.(1) 
         Mesmo antes de sua canonização, a revista “Civiltà Cattolica”, dos Padres Jesuítas, dele dizia em 1930: “Ao estudar a vida e a obra de Dom Bosco, ficamos tão admirados da grandeza deste gênio, que sua figura se agiganta à medida que nos acercamos de sua pessoa, ouvimos suas palavras e contemplamos de perto e com nossos próprios olhos suas obras de apostolado em suas características mais vivas e pessoais.”(2)
Visão dos grandes empreendimentos
Paramentos usados por Dom Bosco

        João Bosco “vem ao mundo no preciso momento em que se desagrega a construção político-social da Revolução Francesa, que transcendeu todo o orbe, e quando, pelas reações naturais a tão enorme cataclismo, flutuam em todos os ambientes, e fluem em todos os leitos, as correntes muito diversas de doutrinas, opiniões e sistemas que dão origem a movimentos científicos, religiosos e sociais de todo gênero e com características inconfundíveis”.(3)
         Um médico amigo assim descreveu Dom Bosco no seu apogeu: Não é um cerebral; é um homem de coração; mas tem a visão dos grandes empreendimentos, e o empreendimento das grandes visões. Sua única arma é a caridade. Abraça muitas coisas, e todas convergem na unidade superior de uma ideia, e vive para sua ideia (ou, melhor dizendo, ideal). Aqui está seu foco, sua síntese, que recolhe os raios de sua atividade prodigiosa. Temperamento enérgico e fogoso, possui uma excepcional sensibilidade para a percepção de coisas e fatos que nos demais produziriam menor comoção; sensibilidade extrema própria dos gênios mais sublimes.”(4)
         Por isso, todo o apostolado de Dom Bosco voltou-se ao combate dos inúmeros e graves problemas de sua época, dando uma orientação profundamente religiosa aos jovens que seriam o futuro da sociedade. Para ele, como o afirmou em sua História Eclesiástica e na História da Itália, a Igreja é o centro da História, e o Papa, o centro da Igreja.
“Parece-se com Nosso Senhor!”
Num sonho, São João Bosco teve a revelação de que sua imagem estaria acima da estátua de bronze de São Pedro e do medalhão/mosaico do Papa Pio IX. Constrangido com tal glória, ele acordou e o sonho se desfez. Mas hoje, na nave central da Basílica de São Pedro em Roma, essa revelação encontra-se imortalizada em mármore, como se vê nesta foto. A estátua mede 4,80 m e foi realizada pelo famoso escultor Pietro Canonica (1869-1959). [Foto PRC]

         Para isso ele contou desde o nascimento com graças e carismas especiais. A Providência “o havia dotado prodigiosamente: pobreza e humildade de berço, mas lar cristianíssimo e amante do trabalho; uma mãe santa; de engenho pronto e vivo, presença agraciada e simpática; memória felicíssima; vontade a toda prova; robustez física invejável, força hercúlea, agilidade pasmosa, sensibilidade delicadíssima, acessível a todo o belo e bom; coração ‘segundo o coração de Deus’ e, posto que haveria de ser ‘pai dos órfãos’, sente o peso da orfandade paterna quando tem dois anos”.(5)
       Ao que acrescenta outro autor: “Largamente pagou-lhe o Senhor! Deu-lhe a irradiação da santidade, e com a irradiação, a influência, mediante uma simpatia mais única que rara. Em seus últimos anos, sobretudo, as pessoas, ao vê-lo, sentiam-se atraídas; e os simples exclamavam: ‘Parece-se com Nosso Senhor!’; e os mais teólogos: ‘Quão bom deve ser Nosso Senhor se Dom Bosco é tão bom!’ As crianças corriam para ele, atraídas como por um imã. E as multidões se aglomeravam para olhá-lo e pedir-lhe uma palavra, um sorriso ou […] um milagre. Porque Nosso Senhor o fez um taumaturgo: o taumaturgo do século XIX. […] Deus Nosso Senhor comprouve-se em fazer dele como um resumo dos carismas que adornaram a vida dos santos nos séculos passados. Porque Dom Bosco curava os enfermos com sua bênção, lia nas consciências e no futuro, multiplicava os pães, as castanhas para seus filhos, as medalhas e estampas para os devotos […] Teve várias vezes o dom da bilocação, ressuscitou três mortos, e os animais obedeciam, submissos a seus mandatos”.(6)
         Escreve seu discípulo e biógrafo Pe. João Lemoyne: “A vida de Dom Bosco é uma trama de sonhos tão maravilhosos, que não se compreende sem a assistência divina direta, sob pena, naturalmente, de que houvesse sido um estulto, um ilusionista, um enganador ou um vaidoso. Os que viveram ao seu lado durante trinta e quarenta anos não viram nunca nele o menor sinal de querer ganhar o apreço dos seus fazendo-se passar por um privilegiado com dons sobrenaturais. Dom Bosco era humilde, e a humildade aborrece a mentira.”(7)
         Pio XI afirmou: “Em Dom Bosco o sobrenatural havia chegado a ser natural, e o extraordinário, ordinário, e a legenda áurea dos séculos passados, realidade presente”.(8)
Entretanto, esses dons sobrenaturais não vinham sem um pesado ônus. Um dos seus —o Pe. Estevão Trione — manifestou-lhe certa vez o desejo de poder operar milagres para converter as almas. Dom Bosco lhe respondeu: “Tu não sabes o terrível que isso é, e as tremendas responsabilidades que acarreta.”(9)
         Mas é preciso apresentar o outro lado da medalha: como todos os santos, Dom Bosco teve muito que sofrer, quer dos homens, quer dos elementos. Sofria com a pobreza de meios para suas obras; sofria com enfermidades que Deus lhe mandava para purificá-lo, apesar de sua saúde robusta; sofria sobretudo pelos ataques do demônio, que o atormentava de mil maneiras, até golpeá-lo fisicamente e rasgar manuscritos que lhe haviam custado anos de meditação e fadiga.
        Outra característica de Dom Bosco era seu ódio ao pecado: “Poucos homens haveria que tenham odiado e combatido tanto o pecado. Tinha até vertigens só em pensar neles; e muitas vezes ouviram-no exclamar que preferia que se queimasse mil vezes o Oratório — que tantos desvelos lhe tinha custado — antes que se cometesse nele um pecado.”(10)
Propósitos na ordenação sacerdotal
Sonho de Dom Bosco no qual Nossa Senhora lhe explica sua vocação: transformar lobos em cordeiros
Dom Bosco tinha uma visão inteiramente sobrenatural do sacerdócio, como o demonstram os propósitos que ele fez na conclusão do retiro espiritual, por ocasião de sua ordenação sacerdotal:
“O sacerdote não vai só ao céu, nem só ao inferno. Se agir bem, irá ao céu com as almas que salvar com seu bom exemplo; se agir mal, se der escândalo, irá à perdição com as almas condenadas por seu escândalo.
Portanto, empenhar-me-ei em guardar os seguintes propósitos:
1º. Não passear nunca, senão por grave necessidade, [tais como] visitas a enfermos etc.
2º. Ocupar rigorosamente bem o tempo.
3º. Padecer, humilhar-me muito, e sempre quando se tratar de salvar almas.
4º. A caridade e a doçura de São Francisco de Sales me guiem em tudo.
5º. Sempre estarei contente com a comida que me apresentarem, contanto que não seja nociva à saúde.
6º. Beberei vinho aguado e só como remédio, quer dizer, só quanto e quando o reclame a saúde.
7º. O trabalho é uma arma poderosa contra os inimigos da alma; por isso não darei ao corpo mais do que cinco horas de sono cada noite. Durante o dia, especialmente depois da comida, não tomarei nenhum descanso. Farei exceção em caso de enfermidade.
8º. Destinarei cada dia algum tempo à meditação e à leitura espiritual. Durante o dia farei uma breve visita ou ao menos uma oração ao Santíssimo Sacramento. Terei ao menos um quarto de hora de preparação e outro quarto de hora de ação de graças pela Santa Missa.
9º. Não conversarei com mulheres, exceto no caso de ouvi-las em confissão ou em alguma outra necessidade espiritual.”(11)
A pobreza de Dom Bosco 
Mamãe Margarida, mãe de São João Bosco

      É difícil ter uma ideia da pobreza em que Dom Bosco viveu, principalmente nos seus primeiros anos. Uma carestia sem precedentes abatera-se sobre a Itália no ano de 1817, levando a miséria por toda parte. Milhares de famílias abandonaram os campos, indo procurar alimento nas cidades. Dom Bosco diz em suas memórias “Encontravam-se pessoas mortas nos campos, com a boca cheia de erva, com a qual tinham tentado aquietar sua fome raivosa.”(12)
        Em artigo anterior já tratamos do papel de Mamãe Margarida, não só na formação de São João Bosco, mas também na sua doce influência sobre os rapazes do Oratório.
        Entretanto, cabe aqui pelo menos uma referência a essa mulher excepcional, que durante a carestia tinha que fazer das tripas coração para prover a família com alimentos. Agradecido, narra o filho: “Pode-se imaginar o quanto minha mãe sofreria e se cansaria durante ano tão calamitoso. Mas uma grande economia e o cuidado nas coisas mais miúdas, unidos a um trabalho esgotante, junto com a ajuda verdadeiramente providencial, contribuíram para solucionar aquela crise de alimentos.”(13) Que belo exemplo para tantas famílias que se lastimam da pobreza, que não a sabem suportar com espírito sobrenatural! 
Procurado até mesmo pelos grandes da Terra
O santo anunciou grandes desgraças ao rei da Itália, Vitor Manuel II, por causa das perseguições que ele promoveu contra a Igreja

        A santidade e a ação de Dom Bosco se irradiaram por todo o mundo. Assim como o demônio é obrigado por vezes a dizer verdades pela boca dos possessos, assim o líder revolucionário comunista Mao Tsé-Tung colocou este singularíssimo dito entre seus “mandamentos”: “Honrarás a João Bosco, que cuidou dos humildes e educou os operários…”(14)
         O humilde sacerdote é procurado pelos depostos reis de Nápoles e da Sicília. Visitam-no também os pretendentes aos tronos francês e espanhol, respectivamente o conde de Chambord e Carlos VII. “Aos primeiros lhes diz que toda resistência será inútil, pois Deus os afastava do trono por sua tibieza em defender os direitos divinos e a causa das almas. Aos segundos aconselha a não aventurar-se de ligeiro em reivindicações pelas armas, para não se exporem a um derramamento inútil de sangue. E como alegam seus direitos […] ele responde que tudo está muito bem, mas que poderia não ser essa a vontade de Deus. […] A uns e a outros recomenda a santificação por sua submissão à vontade divina e o exercício das boas obras”.(15)
         No ano de 1867, estando em Roma a rainha Maria Teresa, esposa do deposto rei de Nápoles Ferdinando II, ela aspirava ouvir de Dom Bosco que a esperava um futuro glorioso e a volta ao trono. Mas ele respondeu-lhe: “Majestade, doe-me dizer-vos, mas não vereis mais Nápoles”. E a Francisco II, filho de Ferdinando, disse a mesma coisa. E como o rei insistisse em que desse as razões para isso, o santo mostrou-lhe como a Igreja havia sido muito perseguida em Nápoles. O rei procurou justificar-se dando as “razões de Estado” que o haviam obrigado a agir assim. Dom Bosco respondeu-lhe: “Sim, é verdade, mas as causas de tantos males religiosos não podem ser agora removidas.”(16)
         O santo anunciou grandes desgraças ao soberano da Itália, Vitor Manuel II, extensivas à sua família e aos seus sucessores, caso ele persistisse em sua oposição à Igreja. O que se realizou ao pé da letra. 
         Dom Bosco usava a mesma política da verdade com o ministro piemontês, Urbano Rattazzi. Certo dia, aproveitando-se da confiança que tinha com o santo, ele lhe perguntou se incorrera na censura eclesiástica pelo que havia feito contra a Igreja como ministro. Dom Bosco pediu-lhe três dias para pensar. Depois lhe disse: “Excelência, estudei a questão, e a estudei para poder-lhe dizer que não havíeis incorrido na censura; mas não consegui”. Sua honestidade e liberdade agradaram ao ministro, que lhe respondeu: “Estava certo de que Dom Bosco não me teria enganado, por isso quis saber dele. Estou contente pela sua franqueza: recorra sempre a mim, em qualquer necessidade de ajuda para seus meninos.”(17)
“Parecia deificado”
Dom Bosco recebeu do Bem-aventurado Papa Pio IX a ordem de escrever seus sonhos e revelações
         Em seus últimos anos, no dizer de seus contemporâneos, Dom Bosco “parecia deificado”. Seu secretário, João Lemoyne, declara que o viu várias vezes resplandecente e levantado do solo.
        Celebrando a Santa Missa, era comum ele levantar-se do solo com a hóstia nas mãos na hora da elevação, envolto em inefável luz. Isso explica por que ele era já objeto de veneração, visto em vida como um verdadeiro santo e procurado por todo mundo.
        Um exemplo disso ocorreu na sua segunda viagem a Paris, em 1883, que foi uma apoteose contínua, como também o fora por todos os lugares por onde passou.
        Léon Aubineau escreveu no “Univers” de 4 e 5 de maio desse ano: “Paris está atônita por causa da comoção manifestada em seu seio em torno do humilde padre turinense, que não tem nada de atraente aos olhos do mundo. […] O aplauso dos parisienses é quase unânime, e a atração irresistível que agita a multidão tem algo de maravilhoso. Nisto há uma resposta inconsciente, se se quiser, mas direta e enérgica, contra a proclamação de ateísmo que de todas as partes se pretende fazer em nome do povo. É ao homem de Deus que são endereçadas todas essas homenagens; é ao homem de fé e de oração que a multidão quer contemplar. As maiores igrejas — a Madalena, São Sulpício, Santa Clotilde — são pequenas demais para conter os fiéis que querem assistir à Missa de Dom Bosco. Não pedem outra coisa dele. […] Todos desejam que essa bênção desça sobre sua miséria pessoal, ou sobre sua dor particular. O bom padre ouve a todos, interessa-se por todos, invoca sobre todos a proteção de Maria Auxiliadora. Ele não se pertence mais, mas abandona-se a todos que lhe suplicam”.(18)
Os “sonhos” de Dom Bosco
         Sobre os “sonhos” de Dom Bosco, que alcançaram profunda repercussão em todas as suas realizações e apostolado, e que ainda impressionam os fiéis em nossos dias, escreve o Pe. Rodolfo Fierro, salesiano:
“Como ao antigo patriarca José, a vários profetas, a São José, o bendito esposo de Maria e a São Pedro, Deus o ilustrava frequentemente por meio de sonhos. Pode-se dizer que todas suas grandes obras e devoções têm origem em um sonho ou em vários. Que alguns são verdadeiramente sobrenaturais, não cabe dúvida, por seu caráter, por seus resultados, e pelas próprias expressões do Santo. […] O que pensava ele de seus sonhos? No princípio não lhes deu importância, tomando-os por jogos da fantasia, e até chegou a temer que fossem alucinações diabólicas. Mas, vendo que sempre se realizava o sonhado, que [neles] se lhe mandava coisas importantes, que lhe eram dadas missões concretas, consultou seu diretor espiritual, São José Cafasso, e este, examinando tudo, ordenou-lhe que se tranquilizasse e obedecesse. Mas a suprema decisão deu-a Pio IX, mandando-lhe que os escrevesse. […] Mas é um fato inegável e característico dele que muitos de seus sonhos não são sonhos como tais, mas verdadeiras visões de caráter sobrenatural, e sua variedade recorre às três espécies de visões que descrevem Santo Isidoro de Sevilha, São João da Cruz, e Santa Teresa.”(19)
O Bem-aventurado Pio IX ordena-lhe que escreva os sonhos
Túmulo de São João Bosco no Santuário de Maria Auxiliadora, em Turim [Foto FV]

       As relações de São João Bosco com o imortal Bem-aventurado Papa Pio IX foram as mais amistosas e mais íntimas que se possa imaginar. O santo Pontífice interessava-se pelos seus “birichinni” (meninos), pelas suas publicações, e inclusive pelos seus sonhos.
         Com efeito, já na segunda audiência que Dom Bosco teve com Pio IX, este intuiu que, para fazer tantas e tão santas obras, ele deveria ser movido por um impulso divino. Pediu-lhe então que lhe contasse detalhadamente tudo o que em sua vida tivesse qualquer aparência de sobrenatural. “Narrei-lhe quanto se havia apresentado à minha fantasia em sonhos extraordinários, que em parte já se haviam verificado, começando pelo primeiro, quando tinha nove anos”, diz Dom Bosco.
        O Papa, que o ouvia atentamente, disse-lhe: “Ouvi, Dom Bosco, desejo que escrevais tudo o que me dissestes, e com detalhes. Conservai-o como patrimônio para vossa Congregação, como herança para sua edificação e alento, e como norma para vossos filhos.”(20)
         O Pontífice revelou então sua intenção de nomeá-lo seu camareiro secreto com o título de monsenhor. Dom Bosco respondeu-lhe: “Santidade, que bela figura faria eu, sendo monsenhor, diante de meus rapazes! Os pobrezinhos não saberiam reconhecer-me. Nem se atreveriam a acercar-se de mim, e levar-me daqui para lá, como o fazem agora. E logo… com este título, o mundo me creria rico, e eu mesmo não teria valor para apresentar-me pedindo esmola para nossas obras. Ó Padre Santo! O melhor é que eu seja sempre o pobre Dom Bosco.” Pio IX não insistiu.(21)
Catecismo para a Igreja universal
Quando foi recebido em audiência por Pio IX, Dom Bosco falou-lhe da necessidade de introduzir na Igreja universal “um catecismo breve que eliminasse a multidão dos que corriam em cada diocese, e que contivesse, de modo simples e claro, os elementos da doutrina cristã que professam todos os católicos. […] A ideia agradou ao Papa, como também a insinuação de que este catecismo universal, único e obrigatório, deveria ser promulgado pela Santa Sé, tanto mais que [Dom Bosco] assegurou que a maior parte dos Padres do concílio [Vaticano I] dariam seu voto favorável”.(22)
         Infelizmente, apesar de aprovada por esmagadora maioria dos Bispos na votação preliminar, a ideia não pôde concretizar-se devido à brusca interrupção do Concílio pela ímpia invasão de Roma pelas tropas de Vitor Emanuel II, do Piemonte.
 Visão das catástrofes que cairiam sobre a Europa 
Altar-mor do Santuário de Maria Auxiliadora, construído por São João Bosco em Turim [foto FV]

        No dia 5 de janeiro de 1870, vigília da Epifania, estando em Roma para acompanhar o Concílio, Dom Bosco teve um sonho ou visão sobre as grandes catástrofes que ameaçavam a Europa. 
         Por isso, na conversa que se seguiu com o Sumo Pontífice, ele se sentiu no dever de consciência de colocá-lo a par da situação catastrófica que se delineava no horizonte. “Falou-lhe sobre a guerra entre a França e a Prússia, que já todos criam inevitável, do abandono em que Napoleão III deixaria Roma, da queda do império napoleônico, e dos terríveis açoites que cairiam sobre a França e, em especial sobre Paris.”(23) Tudo isso vira nesse sonho.
         Aproveitando então da grande bondade com que Pio IX o ouvia, o santo narrou-lhe o sonho que tivera, mas só a parte que se referia ao Pontífice:
Agora, a voz do céu se dirige ao Pastor dos pastores. Tu estás na grande conferência com teus assessores; mas o inimigo do bem não se dá um momento de repouso; estuda e põe em prática contra ti todas suas artes. Semeará discórdias entre teus assessores; suscitará inimigos entre meus filhos. As potências do século vomitarão fogo e quereriam que as palavras fossem sufocadas na garganta dos defensores de minha lei. Isto não será. Farão o mal, mas a si mesmos. Tu, apressa-te; se as dificuldades não se resolvem, trunca-as. Se te achas em apuros, não te detenhas; continua até que se tenha cortado a cabeça da hidra do erro. Este golpe fará tremer a terra e o inferno, mas o mundo estará a salvo, e todos os bons se alegrarão. […] Os dias correm velozes; teus anos se acercam do número determinado, mas a grande Rainha será sempre tua ajuda, e nos tempos passados como no porvir, será magnum et singulare in Ecclesia praesidium”.(24)
         Ante tão trágico panorama, Pio IX cortou-lhe comovido a palavra, dizendo: “Basta, basta; se não esta noite não poderei dormir”. Mas no dia seguinte mandou chamar Dom Bosco para ouvir o resto do sonho. Entretanto, o santo já havia tomado o trem para Florença. Mais tarde ele fará chegar às mãos do Pontífice o relato completo do sonho.
O desenrolar dos acontecimentos confirma o sonho

     O desenrolar dos acontecimentos confirmou o sonho de Dom Bosco. No dia 18 de julho desse ano de 1870, fora finalmente proclamado com grande solenidade o dogma da infalibilidade pontifícia, contra o desejo dos Bispos liberais. Mas eis o resultado imediato: “A Áustria aboliu a concordata e rompeu as relações com a Santa Sé. A Baviera sustentava Dollinger na proclamação do cisma dos ‘velhos católicos’. O novo reino da Itália ordenava aos magistrados a vigilância sobre os bispos e párocos, e o encarceramento dos que publicaram a constituição dogmática sobre a infalibilidade pontifícia. A França retirou sua guarnição de Civitavecchia; a Prússia autorizava Vitor Emanuel a entrar em Roma”.(25) 
         À vista de todos esses acontecimentos, vários membros da Corte Pontifícia aconselharam o Papa a abandonar Roma e buscar refúgio em outra parte. Pio IX vacilava. Eles pressionavam. Então o Pontífice lhes disse que havia mandado consultar Dom Bosco, e esperava a resposta. Esta veio nestas palavras: “O sentinela, o anjo de Israel, permaneça em seu posto, guardando a rocha de Deus e a arca santa”. Pio IX permaneceu em Roma.(26)
          Acrescentamos que Pio IX entregou sua alma a Deus no dia 8 de fevereiro de 1878, dia e hora previstos por Dom Bosco. Até seus últimos momentos, o Papa lembrava-se do santo. Os que o assistiam no último transe ouviram-no balbuciar: “Dom Bosco! Dom Bosco! É um homem prodigioso. Eu o estimo e quero muito”.(27)
 Morte e glorificação
         Dez anos depois, no dia 31 de janeiro de 1888, era a vez de Dom Bosco encerrar sua carreira terrena. Chamado misteriosamente, seu discípulo João Cagliero, então bispo missionário, veio da Argentina para assisti-lo. Pouco antes de expirar, Dom Bosco exclamou “Jesus! Maria!… Jesus e Maria, eu vos dou o meu coração e a minha alma… In manus tuas, Domine, commendo spiritum meum… Ó Mãe! Mãe!… abri-me a porta do paraíso”.(28)
          O “Osservatore Romano” desse dia afirma: “A morte de Dom Bosco é um luto para a Igreja e para a Humanidade. No ocaso do século XIX, em meio às convulsões dos povos e transformações políticas, soube, com o ascendente da palavra e do exemplo, suscitar uma maravilhosa corrente de caridade e atrair a si os espíritos ainda mais rebeldes, à doçura serena da fé.”(29)
         Multidões participaram do cortejo, levando o corpo do santo à última morada. Descreve o jornal vaticano: “Naquela multidão silenciosa e pia, via-se gente do povo e senhores, peregrinos franceses, suíços, alemães, camponeses, sacerdotes, nobres — toda a escala social — e todos louvavam a obra e a virtude modesta e santa do defunto. Muitos, vindos por curiosidade, permaneciam tocados com aquele espetáculo novo e solene, e diziam também ‘que ele era um grande santo’. Muitos armazéns tinham fechado suas portas em sinal de luto, do mesmo modo que empresas tinham dado liberdade aos seus operários para que fossem acrescer o significado desta solene demonstração.”(30)
         Em junho de 1907 São Pio X reconheceu a heroicidade das virtudes de Dom Bosco e o declarou Venerável. Em 2 de junho de 1929 Pio XI o beatificou. Finalmente, no Domingo de Páscoa, 1º de abril de 1934, no encerramento do Ano Santo extraordinário, o mesmo pontífice o canonizou solenemente.
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Notas:
1.      Cardeal Pedro Maffi, arcebispo de Pisa, in Rodolfo Fierro, S.D.B., Introduccion GeneralBiografia y Escritos de San Juan Bosco, Biblioteca de Autores Cristianos (BAC), Madri, 1967, p. 3.
2.      Apud Fierro, op.cit., p. 44.
3.      Fierro, op.cit., p. 3.
4.      Fierro, op.cit., p. 10.
5.      Fierro, op.cit., p. 5.
6.      Fierro, op.cit., p. 8.
7.      Memorias del Oratorio, in Biografia y Escritos de San Juan Bosco, BAC, p. 76, nota 16.
8.      Discurso de 3 de abril de 1932, in Biografia y Escritos de San Juan Bosco, p. 11.
9.      Fierro, op.cit., p. 45.
10.  Fierro, op.cit., p. 45.
11.  Memórias del Oratorio, p. 131, nota 65.
12.  Memórias del Oratorio, p. 74.
13.  Memórias del Oratorio, p. 75.
14.  Fierro, op.cit., p. 11.
15.  Fierro, op.cit., p. 9.
16.  Pe. G.B. Lemoyne, Vita di San Giovanni Bosco, Società Editrice Internazionale, Torino, 1975, p. 394.
17.  Lemoyne, op. cit., p. 391.
18.  Lemoyne, op. cit., pp. 512-513.
19.  Fierro, op.cit., pp. 54-55.
20.  Memorias del Oratorio, p. 293.
21.  Memorias del Oratorio, p. 293.
22.  Memorias del Oratorio, pp. 374-375.
23.  Memórias del Oratorio, p. 375.
24.  Memorias del Oratorio, pp. 366-367.
25.  Memorias del Oratorio, p. 376.
26.  Memorias del Oratorio, p.378.
27.  Memorias del Oratorio, p. 400, nota 20.
28.  Lemoyne, op.cit., p. 654.
29.  Lemoyne, op.cit., p. 660.
30.  Lemoyne, op.cit., p. 666.



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quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

CHEGADA DO NAVIO - Gibran Khalil Gibran



             Al-Mustafa, o Eleito e o Bem-Amado, que era uma aurora em seu próprio dia, esperava havia doze anos, na cidade de Orphalese, o regresso de seu navio, que o levaria de volta à ilha onde nascera.

            E no ano décimo segundo, ao sétimo dia de Ailul, o mês da colheita, galgou o monte fora da cidade e olhou para o mar; e deparou com seu navio chegando com a névoa.

            Então, as portas de seu coração abriram-se, e sua alegria voou longe sobre o mar. E, fechando os olhos, orou no silêncio de sua alma.

            Mas ao descer o monte, foi invadido pela tristeza, e pensou no seu coração:
  
            “Como poderei ir-me em paz e sem pena? Não, não será sem um ferimento na alma que deixarei esta cidade.

            Longos foram os dias de amargura que passei dentro de suas muralhas, e longas as noites de solidão; e quem pode despedir-se sem tristeza de sua amargura e de sua solidão?

            Muitos foram os pedaços de minha alma que espalhei nestas ruas, e muitos são os filhos de minha ansiedade que caminham, desnudos, entre estas colinas, e não posso abandoná-los sem me sentir oprimido e entristecido.

            Não é uma simples vestimenta que dispo hoje, mas a própria epiderme que arranco com minhas mãos.

            Nem é um mero pensamento que deixo atrás de mim, mas um coração enternecido pela fome e a sede.

            Contudo, não posso demorar-me por mais tempo.

            O mar, que chama a si todas as coisas, está me chamando, e devo embarcar.

            Pois permanecer aqui, enquanto as horas queimam-se na noite, seria congelar-me e cristalizar-me num molde.

            De bom grado levaria comigo tudo o que está aqui. Mas como fazê-lo?

            A voz não leva consigo a língua e os lábios que lhe deram asas.

            É isolada que deve procurar o éter.

            É também só e sem ninho que a águia rumará rumo ao sol.”

            E quando atingiu o pé da colina, virou-se novamente para o mar e viu seu navio aportar e, no convés, agruparem-se os marinheiros, os homens de sua terra Natal.

            E sua alma gritou-lhes e lhes disse:
             
            “Filhos de minha velha mãe, que correis na crista das vagas impetuosas,

            Quantas vezes navegastes nos meus sonhos. E agora chegais ao meu despertar, que é meu sonho mais profundo.

            Disposto me encontrais a partir, e minha impaciência, de velas desfraldadas, está à espera do vento.

            Tomarei apenas mais um hausto de ar neste ambiente sereno, volverei para trás somente mais um olhar afetuoso.

            E, logo após, juntar-me-ei a vós, marujo entre marujos.

            E tu, vasto mar, mãe sempre acordada,

            Que, sozinho, és paz e liberdade para o rio e o regato,

            Uma só volta fará ainda esta corrente, um só murmúrio sussurrará ainda nesta clareira,

            Depois, virei a ti, gota ilimitada a um oceano ilimitado.”

            E enquanto caminhava, viu homens e mulheres abandonarem suas hortas e vinhedos e apressarem-se rumo às portas da cidade.

            E ouviu suas vozes chamarem seu nome, e anunciarem de campo a campo, um para o outro, a chegada de seu navio.

            E disse consigo mesmo:
    
            “Será acaso, o dia da separação o dia do encontro?

            E será dito que meu anoitecer era, na verdade, minha aurora?

            E o que oferecerei àquele que deixou seu arado no meio do rego, e àquele que imobilizou a roda de seu lagar?

            Converter-se-á meu coração numa árvore de abundantes frutos que colherei e lhes distribuirei?

            E correrão meus desejos como um manancial onde lhes encherei os copos?

            Sou, acaso, uma harpa para que em mim toque a mão do Onipotente, ou uma flauta para que Seu sopro me atravesse?

            Um ser em procura de silêncios, eis o que sou, e que tesouros tenho descoberto nos meus silêncios que possa distribuir com segurança?

            Se esse é o dia de minha colheita, em que campos plantei a semente, e em que estações esquecidas?

            Se esta é, na verdade, a hora de levantar minha lanterna, a chama que nela brilhará não será minha.

            Vazia e apagada erguerei minha lâmpada.

            E o guardião da noite a abastecerá de azeita e a acenderá também.”
  
            Essas coisas, ele expressou em palavras. Mas muitas outras, permaneceram inexpressas no seu coração. Pois nem ele podia externar seu segredo mais profundo.


            E quando entrou na cidade, o povo inteiro o recebeu, e todos estavam clamando seu nome numa só voz.

            E os anciãos da cidade aproximaram-se e disseram:

            “Não nos deixeis ainda.

            Foste um meio-dia em nosso crepúsculo, e tua juventude deu-nos sonhos para sonhar.

            Tu não és um estranho ou um hóspede entre nós, mas nosso filho e nosso bem-amado.

            Não condenes ainda nosso olhar a sofrer a fome de tua face.”

            E os sacerdotes e as sacerdotisas disseram-lhe:

            “Não consintas que as ondas do mar nos separem já, e os anos que entre nós passaste se tornem uma lembrança.

            Andaste entre nós como um espírito, e tua imagem tem sido uma luz que iluminou nossas faces.

            Muito te temos amado. Mas silencioso foi nosso amor, e com véus tem estado coberto.

            Porém, agora, ele grita e chama-te em alta voz e quer revelar-se a ti.

            Pois assim tem sido sempre com o amor. Ele só conhece a sua própria profundidade na hora da separação.”
  
            E outros vieram também e imploraram-lhe. Mas ele não lhes respondeu. Abaixou apenas a cabeça. E os que os rodeavam viram suas lágrimas caírem sobre o peito.

            E caminhando com o povo, chegou à grande praça em frente ao templo.

            E uma mulher chamada Almitra saiu do santuário. E ela era vidente.

            E ele a encarou com excessiva ternura, pois fora ela a primeira a procurá-lo e nele crer no dia de sua chegada à cidade.

            E ela o saudou dizendo:

           “Profeta de Deus em procura do infinito, quantas vezes sondaste as distâncias à espera de teu navio.

            E agora teu navio chegou, e tu deves partir.

            Profunda é tua nostalgia pela pátria de tua recordações e a morada de teus maiores desejos; e nosso amor não te quer prender, nem nossas necessidades te reterem.

          Uma coisa, porém, te pedimos: antes de nos deixares, fala-nos e dá-nos algo de tua verdade.

            E nós a transmitiremos a nossos filhos, e eles a transmitirão aos seus filhos, e ela não perecerá.

            Na tua soledade, vigiaste por nossos dias e, na tua vigília, escutaste os gemidos e os risos de nosso sono.

            Agora, revela-nos a nós próprios, e conta o que te foi dado descobrir do que existe entre o nascimento e a morte.”


            E ele respondeu:

            “Povo de Orphalese, de que poderia falar-vos senão do que está agora se movendo dentro de vossa alma?”

          

(O PROFETA)
Gibran Khalil Ginran

           
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Gibran Khalil Gibran - Poeta libanês, viveu na França e nos EUA. Também foi um aclamado pintor. Seus textos apresentam a beleza da alma humana e da Natureza, num estilo belo, místico, conseguindo com simplicidade explicar os segredos da vida, da alegria, da justiça, do amor, da verdade.
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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

3 CARACTERÍSTICAS DO BOM OUVINTE - Dolors Massot


Shutterstock | Tijana Ilic

Dolors Massot | Jan 27, 2020

Você acha que é um bom ouvinte? Veja se você tem esses três comportamentos

A comunicação é uma parte muito importante do nosso relacionamento com os outros. Conversando um com o outro e esclarecemos dúvidas é que crescemos em amizade e aprendemos mais sobre outras maneiras de ver a vida.

Quem não anseia encontrar alguém que realmente ouça – um amigo em quem possa confiar e com quem possamos contar quando estivermos passando por uma situação complicada com a qual não sabemos lidar sozinhos. No entanto, nem todas as conversas são igualmente benéficas. Encontrar alguém que realmente sabe ouvir nem sempre é fácil. Muitos de nós tendem a querer falar mais do que ouvir.

Ouvir é uma manifestação de amor pela outra pessoa. Significa estar mais interessado na outra pessoa do que em nós mesmos por um tempo, abrindo-nos para ouvi-las e ajudá-las, se pudermos, pelo simples fato de ouvir. Devemos nos perguntar se realmente ouvimos e prestamos atenção a outras pessoas com o único objetivo de buscar o bem delas. Nós sabemos o que isso realmente significa?

Quais são as características de um ouvinte real?

1
BONS OUVINTES NÃO SÃO MANIPULADORES OU CONTROLADORES

Os bons ouvintes não querem extrair mais informações do que o necessário para resolver a situação que a pessoa está levantando. Eles não tiram vantagem da necessidade da outra pessoa de falar para manipulá-la em confidências inapropriadas. Eles não querem bisbilhotar.

2
BONS OUVINTES NÃO JULGAM

Acima de tudo, os bons ouvintes passam tempo com o interlocutor e demonstram empatia: eles se colocam no lugar da outra pessoa. A pessoa que está falando não precisa saber se o que ela disse ou fez está certo ou errado (a menos que peça nossa opinião).

3
BONS OUVINTES NÃO TENTAM PREGAR

O principal objetivo não deve ser “ensinar uma lição a alguém”, especialmente conselhos genéricos pré-fabricados. Cada alma é única e precisa ser tratada de maneira diferente. A conversa também não deve ser um momento de demonstração pessoal das experiências ou conhecimentos adquiridos. É sobre a pessoa que estamos ouvindo, não sobre nós.

Muitas vezes, as pessoas que se aproximam de nós precisam apenas compartilhar sua preocupação ou sofrimento, sem precisar que digamos a elas o que fazer. Isso não significa que elas nunca pedirão uma opinião ou conselho; o objetivo não é dar – a menos que elas peçam.




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