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domingo, 19 de agosto de 2018

A ESTRADA DE FERRO – Helena Borborema

ITABUNA, TERRA AMADA!
A Estrada de Ferro


             Às 13 horas e 45 minutos em ponto, os moradores do centro da cidade ouviam, impreterivelmente, o apito do trem da Companhia Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista. Na realidade essa ferrovia nunca chegou ao Sudeste da Bahia, mas o nome estava lá, na estação: Ilhéus a Conquista, embora terminasse em Itabuna, em meio do caminho. No primeiro apito, como numa compulsão coletiva, os senhores da cidade tiravam os seus relógios das algibeiras para conferir. O apito, além de anunciar a partida, alertava a cidade  de que era chegada a hora de retornar à lida. Os colégios começavam as suas aulas, o comércio abria as suas portas, a cidade como que acordava de vez da modorra do meio-dia. A hora era exata, infalivelmente. A locomotiva Ilhéus e Conquista parecia até querer competir com o Big-Ben em pontualidade. Às duas horas em ponto, era a partida anunciada pelo segundo apito.

            Antes da partida, o movimento era bastante grande na estação ferroviária. Gente que se abraçava, uns chorosos, outros alegres, na despedida. Todos tinham alguma coisa para falar. Sobre o alto passeio acumulavam-se malas, pacotes, caixas enormes, cestos, à espera do embarque. Havia vagões para passageiros e vagões para malas, cargas e mercadorias. Na casa da estação, pela janela de uma das salas, seu Leocádio, o chefe, fiscalizava tudo com atenção, acompanhado por outros funcionários. Postado junto a um dos vagões, seu Ferreira, de uniforme cáqui com botões dourados, de quepe, na sua costumeira cortesia, recebia e picotava os bilhetes de embarque. Aí embarcavam homens de negócio que tinham o que tratar no comércio de Ilhéus, moradores de lugarejos próximos da linha férrea que vinham a Itabuna fazer compras, fazendeiros que tinham suas roças de cacau em meio do caminho, advogados que tinham causas a tratar no Fórum de Ilhéus, pessoas que se destinavam ao embarque de navio no porto de Ilhéus com destino, a Salvador, como políticos e pessoas outras que se dirigiam à Capital a passeio. Todos se cumprimentavam, todos se conheciam. Não havia medo nem desconfiança, todos se respeitavam.

            No alvoroço da partida, no meio do burburinho de vozes, sobrepunha-se de repente um ranger de ferro e o ruído forte de uma máquina em movimento. Ouvia-se o apito estridente, e a grande máquina começava a se preparar para a partida. Vagarosamente a princípio, rangendo sobre os trilhos, expandindo grande quentura, fumegando, ela deixava a estação cantando  monótona o seu velho estribilho: Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! E lá ia ela chispando fagulhas, lançando fumaça no ar, barulhenta, a despertar  alegria por onde passava. Pouco a pouco a estação ia ficando vazia, silenciosa, onde eram ouvidas apenas as vozes dos funcionários e de alguns carregadores que por ali sempre ficavam postados, como Prego, negro alto, forte, educado e humilde; Padre, negro forte, caladão; Abacaxi, de cor parda, forte, roliço, meio baixote e prestativo; Baratinha, branco, corado, baixo, com uma ferida fétida na perna, tomador de pinga. Esses eram os carregadores mais conhecidos e, por isso mesmo, os mais solicitados. Todos,  homens humildes, porém honestos e respeitadores.

            Deixando a estação, que ficava no local onde hoje se ergue o prédio da antiga Prefeitura e atual Faculdade de Tecnologia e Ciências – FTC, em frente ao canal, transpondo um pontilhão mais adiante, a grande máquina passava pela Rua da Linha, hoje Avenida Ilhéus, no Pontalzinho, onde era saudada pela criançada que, de suas casas, sobre altos barrancos laterais da estrada de ferro, descia correndo para dar adeus aos passageiros que, de suas janelas, respondiam alegremente. Passava pelo arruado da Caixa d’Água para mais adiante entrar na zona rural, quando apareciam,  aqui q acolá, casas grandes e confortáveis das fazendas de cacau.

            Uma parada no povoado de Mutuns, e o trem continuava sua marcha, apitando para responder às saudações dos moradores das fazendas, sempre cantando o refrão: Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não!... E lá se ia ele em direção aos povoados de Rio do Braço e Água Branca. Nesses lugarejos, uma parada suficiente para descer e receber passageiros. Um ramal da estrada de ferro se estendia para Água Preta, hoje Uruçuca, onde havia uma estação de passageiros, indo até Itapira, atual Ubaitaba. A estação de Água Branca era o ponto alvo da viagem para a criançada que ia nos vagões para Ilhéus. Na parada, os gritos dos moleques vendedores de guloseimas soavam como uma tentação:

            - Olha o amendoim torrado!

            - Olha o pé-de-moleque e o beiju de Água Branca!

            - Castanhas! Quem quer castanhas?

            Água de coco! Amendoim cozido!

            - Bolinhos de arroz e de milho! Quem quer?

            - Cajus doces!

            O trem parava e grande excitação tomava conta da meninada. Era uma algazarra de compra e venda. Depois da parada, a locomotiva retomava a sua marcha, só que reabastecida. Tendo pela frente uma grande reta, ela parecia agora mais rápida. Resfolegante, sacudia-se sobre os trilhos, alegre, chiando,  e com um novo estribilho repetia: Vou com Deus, vou com o diabo! Vou com Deus, vou com o diabo!...

            Com o diabo, não; com Deus, sim, porque nunca descarrilou, nunca matou ninguém, nunca despencou numa ribanceira, e assim, despertando alegria por onde passava, saudada pelas casas lá longe, anunciando a sua passagem com o apito, corria se sacodindo sobre os trilhos, atravessando áreas de baixa vegetação. De repente, a paisagem para os seus ocupantes ia mudando, terrenos cobertos de areia alva e fina apareciam, cajueiros aqui e acolá; adiante, zonas de mangues podiam ser vistas, enfim, uma brisa gostosa vinda do mar anunciava a proximidade  da cidade de Ilhéus. Os passageiros saindo da modorra conversavam mais animados, as crianças se alvoroçavam com aquela mudança de ares, e assim, na alegre expectativa, ia a locomotiva se aproximando cada vez mais do seu destino: a estação de Ilhéus. Novo apito, mais fagulhas entrando pelas janelas como minúsculas estrelas cadentes, e seu Ferreira, que acompanhava a viagem, sempre solícito, passando de um vagão para outro fechando janelas, cuidava para que as faíscas não caíssem na roupa e na pele dos passageiros. Começavam os preparativos para o desembarque. A locomotiva da Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista nunca chegou a ir tão longe, mas cumpria galhardamente a sua função de unir dois grandes municípios, integrando sua economia e sua gente.

            O progresso é quase sempre um demolidor e,  quando mal compreendido, muitas coisas boas, tanto valores materiais como morais, são abatidas, imoladas em seu nome. E em nome do progresso a velha Estrada de Ferro Ilhéus a Conquista foi desativada, depois completamente destruída. Seus trilhos e dormentes foram arrancados, seus vagões sucateados, destruídos pela ação do tempo, sem a piedade dos homens que da sua existência nada guardaram, nem como lembrança que se preserva de um ente querido morto. A sua lentidão tinha de ceder lugar à velocidade dos caminhões, ônibus e automóveis. A sua segurança, em nome da evolução, tinha de ser substituída pelos riscos da alta velocidade. A alegria que tanto deu aos seus usuários hoje faz parte de um passado que ainda é lembrado como grata recordação por aqueles que tiveram a dita de usufruir das gostosas viagens sobre os seus trilhos, embalados pelo acalento da voz de suas máquinas no Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão, bolacha não! Café com pão...

(RETALHOS)
Helena Borborema
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Helena Borborema - Nasceu em Itabuna. Professora de Geografia lecionou muitos anos no Colégio Divina Providência, na Ação Fraternal e no Colégio Estadual de Itabuna. Formada em Pedagogia pela Faculdade de Filosofia de Itabuna. Exerceu o cargo de Secretária de Educação e Cultura do Município. (A autora)
“Filha do Dr. Lafayette Borborema, o primeiro advogado de Itabuna. É autora de ‘Terras do Sul’, livro em que documento, memória e imaginação se unem num discurso despretensioso para testemunhar o quadro social e humano daqueles idos de Tabocas. Para a professora universitária Margarida Fahel, ‘Terras do Sul’ são estórias simples, plenas de ‘emoção e humanidade, querendo inscrever no tempo a história de uma gente, o caminho de um rio, a esperança de uma professora que crê no homem e na terra’” (Cyro de Mattos)

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6 LIXOS ACADÊMICOS CUSTEADOS POR VOCÊ – PRIMEIRA PARTE


9 de agosto de 2018

Por Luan Sperandio, publicado pelo Instituto Liberal

Em 2014, a revista britânica Nature, que é especializada em ciência, analisou a qualidade da produção acadêmica entre diferentes países. Os resultados dos pesquisadores brasileiros são de envergonhar qualquer um minimamente preocupado com o avanço da ciência.

Os dados demonstram que a academia brasileira produz mais pesquisa de baixa qualidade do que de boa – e a um custo bastante elevado. Nos periódicos de excelência, apenas 1% das publicações é de brasileiros. Enquanto o Brasil despendeu R$ 30 bilhões para veicular 670 artigos em revistas de prestígio, o Chile, para pegar um exemplo latino americano, publicou 717, gastando absurdamente 15 vezes menos. Isso faz com que a nossa relação de eficiência no uso de recursos aplicados à pesquisa coloquem o Brasil em 50º lugar entre 53 países analisados.

A academia é um instrumento que, se bem utilizado, impulsiona o desenvolvimento da sociedade por intermédio das inovações que os pesquisadores descobrem. Assim, embora haja um dogma bastante presente em nossas universidades de que qualquer forma de conhecimento é válida, é preciso ter em mente o fato de que há um custo de oportunidade ao seguir determinadas linhas de pesquisa.

Ao se decidir analisar a psicologia por trás de um jogo de RPG, se deixa de pesquisar as reais motivações que levam indivíduos em boas condições e estruturas sociais a praticarem crimes, por exemplo. Enquanto esta produção acadêmica pode resultar em um diagnóstico que, eventualmente, fundamente políticas públicas que possam reduzir a criminalidade, aquela está fadada a ter um impacto social nulo.

Quem vive nos corredores das universidades brasileiras tem a impressão de que a maior parte das pesquisas é produzida com a única finalidade de, ao final, constar no currículo lattes do pesquisador. Além disso, qualquer pesquisador de ponta sabe que suas preferências ideológicas não devem atrapalhar ou contaminar análises científicas. Há uma excessiva politização em nossos trabalhos acadêmicos, ao passo que ciência boa é aquela em que o método possui objetividade, evitando vieses.

Há uma falta de compreensão na academia brasileira a respeito do research design (desenho de pesquisa), que serve justamente para estabelecer regras metodológicas robustas a fim de validar o estudo produzido. Nesse sentido, o papel das universidades brasileiras tem sido muito mais o de uma busca por justiça social do que de produção científica séria.

Embora não deva ser difícil para o leitor entender o porquê de uma produção acadêmica não poder ser um fim em si mesmo ou das motivações éticas e práticas que deveriam impedir alguém de fazer um paper acadêmico como manifestação de sua militância ideológica, esse tipo de conduta parece ser a regra de grande parte dos pesquisadores brasileiros.

Vale destacar que projetos ruins ganharem bolsas no Brasil é uma questão de incentivos institucionais: pelo método de nota que a Capes dá aos cursos de graduação, para manter nota é preciso utilizar as bolsas; caso não sejam concedidas a nenhum pesquisador, o departamento pode a perder para sempre. Dessa forma, alguns projetos que talvez não merecessem financiamento são aprovados a fim de que não essas bolsas não sejam perdidas. Nesse sentido, separei 6 exemplos de trabalhos acadêmicos que demonstram o que você andou financiando nos últimos tempos – e que é difícil acreditar que alguém se disporia a pagar voluntariamente por eles.

1) Você pagou por um trabalho que defende “mostrar o Cu contra o capital”

A título de dissertação de mestrado para design, Carlos Guilherme Mace Altmayer apresentou em 2016 “Tropicuir. (Re)existências políticas nas ações performáticas de corpos transviados no Rio de Janeiro”. O título é um neologismo criado pelo autor, que mistura “tropical” e “queer” (termo em inglês utilizado para conceituar pessoas que não seguem o modelo de heterossexualidade ou de binarismo de gênero).

No trabalho, o autor analisa diferentes representações artísticas no Rio de Janeiro que contrariam o ambiente multicultural “em que há uma falsa tolerância em que estamos inseridos”. Para o pesquisador, há na sociedade um estímulo a uma série de comportamentos reprováveis, tais como a “homofobia, o racismo, o etarismo, o colonialismo, o capacitismo, a gordofobia, a transfobia, a lesbofobia, a bifobia e os discursos de ódio em geral”. O investigador culpa o contexto capitalista neoliberal por produzir a heteronormatividade, isto é, a marginalização ou perseguição de orientações e práticas sexuais que não sejam hétero.

Entre os trabalhos analisados para a produção da dissertação – apenas para citar um exemplo para o leitor entender o nível do trabalho – está a obra do artista Kleper Reis e seu projeto “CU É LINDO”. A obra compõe uma trilogia de trabalhos denominada “A Santíssima Trindade ou Em Nome Do Pau, Do Cu e Da Buceta”.

Para o autor, a mídia brasileira possui um papel de controle moral e invisibilizador das dissidências sexuais. É por isso que “A sociedade brasileira está em crescente processo de fascistização, e que insiste em controlar, manter e promover o autocontrole de nossos cus.”

Ao final ele propõe uma “urgente política na criação de linguagens estético-políticas para proteger práticas artísticas” no sentido de confrontar com uma visão binária de gênero, sendo preciso haver uma resistência a eles.

E você, leitor, pagou essa militância tese acadêmica, porque o autor foi beneficiário de um programa de bolsas da CAPES.


2) Você pagou para os níveis de problematização chegarem a um jogo

World of Warcraft é um popular jogo de RPG que se passa no universo de Azeroth. Há mais de 5 milhões de jogadores em todo o mundo, sendo bastante famoso entre os brasileiros. Como o próprio nome sugere, trata-se de um jogo de guerra, mas isso não o impediu de ser objeto de uma problematização de masculinidades a título de dissertação de mestrado.

A ideia do trabalho é relativamente simples: a mídia propaga os símbolos da masculinidade viril por intermédio de filmes, livros, revistas, séries e jogos. “Os protagonistas masculinos possuem imagens fortes, grandes e conquistadores”. Assim, há um endosso na formação de estereótipos, disseminando referências e marginalizando muitos homens que não conseguem atingir esse status hegemônico, sendo, portanto, marginalizados.

Para demonstrar isso, o pesquisador se aprofunda na narrativa do jogo em questão para identificar as estratégias discursivas presentes nas representações de tipos de masculinidades e identidades em dois personagens do jogo, entendendo que eles acabam por reforçar o estereótipo de gênero.

O trabalho é uma reflexão sobre modelos socialmente impostos por uma sociedade patriarcal em que a supremacia masculina possui sua hegemonia baseada na dominação. Na narrativa desenvolvida, ele fala de “Garrosh”, um orc que, segundo o autor, possui um problema de masculinidade por causa da relação que nunca teve perante sua figura paterna. Por ser incapaz de lidar com seus sentimentos, o orc extravasa o que sente por intermédio de sua agressividade.

Nada mau ganhar uma bolsa para passar o semestre jogando e problematizando um game e, ao final, receber um título de mestre em letras por isso.


3) Você pagou para um pesquisador viver experiências sexuais em um banheiro de rodoviária

Fazer banheirão: as dinâmicas das interações homoeróticas nos sanitários públicos da Estação da Lapa e adjacências é uma investigação realizada por um pesquisador que almejava o título de mestre em antropologia.

Por quatro anos, o pesquisador frequentou banheiros públicos da cidade de Salvador para observar o comportamento de homens que se relacionavam sexualmente com outros homens nesses espaços.

O autor da dissertação relata que o hábito de relacionar-se sexualmente com homens aleatórios em banheiros públicos acompanhou sua sexualidade desde quando mais jovem. Assim, decidiu investigar o caso por meio de metodologia autoetnográfica, o que significa que foi baseada na experiência pessoal do pesquisador. Ao longo de 118 páginas, ele narra vários encontros sexuais que observou e que ele próprio viveu. O objetivo? “desmarginalizar esse tipo de comportamento” para que as pessoas perdessem o preconceito em relação à prática sexual em determinados locais públicos.

A Capes financiou a pesquisa em cerca de 20 mil reais e, ao final, o autor obteve o título de mestre em antropologia na Universidade Federal da Bahia.

Após críticas recebidas pelo trabalho, diversas entidades educacionais de antropologia e grupos de estudos de sexualidade divulgaram notas de apoio à pesquisa – o que diz muito mais sobre a comunidade científica brasileira que sobre a qualidade do trabalho.


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PALAVRA DA SALVAÇÃO (92)


Solenidade da Assunção de Maria – Domingo 19/08/2018

Anúncio do Evangelho (Lc 1,39-56)

— O Senhor esteja convosco.
— Ele está no meio de nós.
— PROCLAMAÇÃO do Evangelho de Jesus Cristo + segundo Lucas.
— Glória a vós, Senhor.

Naqueles dias, Maria partiu para a região montanhosa, dirigindo-se, apressadamente, a uma cidade da Judeia. Entrou na casa de Zacarias e cumprimentou Isabel. Quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança pulou no seu ventre e Isabel ficou cheia do Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre! Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar? Logo que a tua saudação chegou aos meus ouvidos, a criança pulou de alegria no meu ventre. Bem-aventurada aquela que acreditou, porque será cumprido o que o Senhor lhe prometeu”.

Então Maria disse: “A minha alma engrandece o Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humildade de sua serva. Doravante todas as gerações me chamarão bem-aventurada, porque o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. O seu nome é santo, e sua misericórdia se estende, de geração em geração, a todos os que o respeitam. Ele mostrou a força de seu braço: dispersou os soberbos de coração. Derrubou do trono os poderosos e elevou os humildes. Encheu de bens os famintos, e despediu os ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrando-se de sua misericórdia, conforme prometera aos nossos pais, em favor de Abraão e de sua descendência, para sempre”. Maria ficou três meses com Isabel; depois voltou para casa.

— Palavra da Salvação.
— Glória a vós, Senhor.

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Ligue o vídeo abaixo e acompanhe a encenação da Visitação de Maria a Isabel:

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“Como posso merecer que a mãe do meu Senhor me venha visitar?”

Na festa da Assunção, a liturgia nos propõe aprofundar o sentido do encontro a partir da contemplação deste horizonte inspirador: a Visitação. Os ícones que ao longo dos séculos expressam esta visita, esta saudação, nos apresentam duas mulheres vinculadas, unidas por um abraço, por um beijo, por uma mesma alegria. Em seu modo de entrar em comunhão, em sua maneira de dialogar e de se alegrar, elas se revelam mestras para nós, para nossa humanidade fragmentada que aspira viver a “cultura do encontro”. 

A cena apresentada por Lucas nos deixa na agradável e desafiante companhia de Maria e Isabel: duas mulheres, dois ventres cheios de vida; duas mulheres cheias de Deus; duas mulheres em um mesmo encontro. Ambas estão grávidas e de um modo surpreendente. As duas esperam filhos muito especiais; sentem que carregam em seus ventres uma novidade que as supera. As duas tem “um corpo abençoado” e um ventre fecundo, sinal e realidade da ação de um Deus que é Vida.

Duas mulheres com duas missões diferentes: uma, portadora do Messias, e outra, portadora daquele que preparará os caminhos. Duas mulheres diferentes, mas cada uma com sua experiência de Deus. Uma, a experiência de Deus em um seio virginal; a outra, a experiência de Deus em um seio seco e estéril. No encontro entre as duas, cada uma descobre e reconhece o mistério da presença de Deus na outra.

O ícone da Visitação contagia e desperta o prazer e a alegria: a do encontrar-se, a do crer e a do servir. Alegria fecunda, já que está ligada a dois nascimentos que vão mudar a história de seu povo e da humanidade. Nesta cena, Deus mesmo se infiltra no cotidiano e naquilo que socialmente não tem maior relevância, ou seja, a vida diária de duas mulheres: Maria e Isabel. Quebra-se assim a centralidade do Templo. Elas festejam as maravilhas do Senhor em um lugar simples, numa região montanhosa, num caminho e numa casa de família simples. O maravilhoso e extraordinário tem lugar no ordinário e humilde. Ali se celebra a vida chegada e por chegar. As protagonistas da cerimônia são duas simples mulheres. 

Neste maravilhoso acontecimento tudo é encontro, junta-se o Antigo e o Novo Testamento, a juventude e a idade madura. As duas mulheres estão profunda e intimamente vinculadas entre si. Com elas e delas nasce o tempo novo, o do Reino, o de Jesus. Tem-se a impressão de viver um momento culminante da história. Elas nos conduzem a agradecer a capacidade feminina de deixar transparecer o Mistério que nos habita, de despertar-nos uns aos outros para essa Vida cuja presença reconhecemos em nosso interior.

Maria, aquela que sente o êxodo de Deus, saindo de si mesmo, para encarnar-se no seu seio virginal, e que a move a pôr-se em caminho, saindo de si mesma, porque o serviço aos outros a apressa.

Maria é a Mulher que inaugura e estabelece os critérios para encontrar-se com o Senhor e com os(as) demais. Sua capacidade de encontro parte de uma experiência de profunda interioridade; interioridade visitada por Deus e, portanto, fecundada por seu olhar cheio de amor e ternura, cheio de compaixão pela humanidade e pela criação. Só a partir de uma interioridade fecunda se dá a possibilidade dos encontros mais verdadeiros.

Na Laudato si (n. 240) o Papa Francisco nos diz que “a pessoa humana mais cresce, mais amadurece e mais se santifica à medida que entra em relação, quando sai de si mesma para viver em comunhão com Deus, com os outros e com todas as criaturas. Assim, assume em sua própria existência esse dinamismo trinitário que Deus imprimiu nela desde a criação. Tudo está conectado, e isso nos convida a amadurecer uma espiritualidade da solidariedade global que brota do mistério da Trindade”.

O dogma da Assunção, festa do encontro pleno, nos revela que precisamos nos converter à cultura do encontro em todos os sentidos. Maria foi “assumida” para o encontro definitivo com Deus porque foi presença que inspirava e proporcionava encontros humanizadores. Ela “subiu” porque “desceu” ao encontro dos preferidos do Pai. 

Maria, na cena da Visitação, passa da interioridade ao acontecer, à história, ao encontro. É assim como se dá uma autêntica experiência de Deus. Ela nos mostra que tal experiência tem dois pés: um posto na experiência do amor de Deus que nos visita, e outro posto sempre no caminho que precisamos percorrer para ir ao encontro dos demais. Os dois pés são indispensáveis para que a experiência de Deus seja cristã, seja encarnada, seja Visitação. Os dois pés, sempre em movimento cordial: de sístole e diástole.

Deus começa sempre pelo coração; mas logo desce aos pés. Em outras palavras: Deus põe pés no coração. Maria recebeu do anjo a notícia que sua prima Isabel estava esperando um filho e já estava no sexto mês de gestação. Não foi necessário que Isabel pedisse a Maria e solicitasse seus serviços. O amor descobre as necessidades dos outros; o amor não necessita que ninguém lhe peça favores, nem que alguém lhe solicite serviços. Maria não esperou o chamado de Isabel. Porque o amor não espera, antecipa. O amor sempre tem pressa, não sabe esperar. O amor não fica em sentimentos; o amor se faz gesto, atitude, caminho e serviço.  “O amor consiste mais em obras que em palavras” (S. Inácio).

O amor põe o coração em caminho; o coração põe pressas aos pés. Amor, coração e pés se fazem serviço aos demais. Quando amamos, nossos pés se põem em caminho: levar alegria aos outros. Por isso, nesta visita e neste encontro, todas saltam de alegria: João salta de alegria no ventre de Isabel. Isabel salta de alegria e extravasa seu júbilo. Maria salta de alegria e entoa seu hino de reconhecimento e agradecimento. Isabel encheu-se de surpresa ao ver a surpreendente Maria diante de si. E não pode segurar sua alegria; por isso, também explodiu em um grito de louvor e reconhecimento.

Nosso mundo está carente de Visitação, de uma vida cristã com iniciativa e experiência de encontros, que deixe suas seguranças, que saia, atenta às necessidades dos demais, que cuide da vida que há nela e onde queira que esteja germinando ou tenha possibilidades de acontecer; assim entendemos a vida cristã vinculada com a terra e o cuidado da casa comum. 

Encontrar-nos é construir pontes e derrubar muros, é desafiar a cultura do desencontro, da fragmentação e do descarte. Os encontros mudam nossa vida e vamos descobrindo nossa identidade através deles. Eles nos colocam em atitude de êxodo, de saída, de Visitação. O encontro, quando se dá a partir da experiência de Deus, que é contemplação e saída, se torna autêntica e solidária profecia.

Texto bíblico:  Lc 1,39-56
Na oração: é indispensável situar-se na cena da Visitação; escutar as duas mulheres que conversam entre si; seguir seus passos, proceder como elas, viver hoje o que elas viveram.

A Visitação é, portanto, um convite a “cruzar montanhas”, transpassando fronteiras, abrindo buracos nos ilusórios muros de classe, de cultura, de raça, de gênero, de religião, etc... Cruzar montanhas, saindo apressadamente ao encontro do outro, para fazer a experiência de viver, em ritmo de Visitação, o regozijo da vida divina que habita no humano e se expande na criação inteira.
- Como encarnar o ícone da Visitação no seu ritmo cotidiano? Há lugar para encontros surpreendentes? 

Pe. Adroaldo Palaoro sj


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