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sábado, 30 de dezembro de 2017

A FALTA QUE FAZ O HUMOR - Zuenir Ventura

A falta que faz o humor


Vivo dizendo que não sou nostálgico, que, como Paulinho da Viola, “meu tempo é hoje”, que o importante é curtir o momento, carpe diem, essas coisas. Mas tenho recaídas, como a do último fim de semana, com a morte de Luiz Carlos Maciel, que me encheu de pesar e de recordações da época em que ele foi, como grande pensador, o guru de uma geração. Eram os anos de chumbo, tempos difíceis — de censura, prisões, tortura e morte — e curiosamente de grande efervescência artística, a ponto de alguns acharem até hoje que a repressão estimulava a criatividade, quando na verdade era apesar, não por causa dela, que se criava tanto.

Maciel foi responsável por divulgar a contracultura daqui e do exterior na sua coluna Underground, que assinava no “Pasquim”, um fenômeno jornalístico que contava com Tarso de Castro, Sérgio Cabral pai, Ziraldo, Millôr, Jaguar, Francis, Ivan Lessa, Sérgio Augusto para dar dor de cabeça à ditadura. Não a derrubou, mas ridicularizou-a com a sua principal arma, o riso, deixando a lição de que, no entanto, é preciso cantar e não perder a graça. 

Até então, pasquim significava panfleto, qualquer publicação sem qualificação e importância. Com humor e irreverência, o novo jornal subverteu forma e conteúdo, linguagem e conceito do que existia no mercado da informação. A ironia, a sátira, a paródia, o disfarce e o deboche foram usados contra a hipocrisia e o cinismo do poder dominante. Esse jornaleco de nome e cara fora de uso descolonizou um modelo de imprensa que era a transposição mimética do ideal francês ou americano.

A falta de seriedade, a conduta gaiata, anárquica, desorientaram os censores, cujos mecanismos foram apanhados de surpresa por um inesperado veículo alternativo sem declarada intenção política, mas que respondia a uma demanda reprimida. Com uma ousada tiragem inicial de 20 mil exemplares, em poucos meses vendia incríveis 200 mil e passava a influenciar costumes e a lançar modismos.

Se o tropicalismo, outro sucesso da época, pretendia ser uma alegoria do Brasil, o “Pasquim” foi uma paródia. Aquele jogava com o absurdo; este, com o ridículo. Se a ditadura era carrancuda, sempre de cara amarrada, uma das maneiras de se opor era fazendo rir dela. Existia, por exemplo, uma “esquerda festiva” apostando na alegria e capaz de assumir piadas politicamente incorretas como essa de autogozação em plena Guerra Fria: “o capitalismo é a exploração do homem pelo homem. O comunismo é o contrário”.

Daqueles anos de sufoco político, de que há tanto a rejeitar, ficou pelo menos uma lição para estes nossos tempos irascíveis e sem graça: é possível resistir sem perder o humor.

O Globo, 13/12/2017

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Zuenir Ventura - Sétimo ocupante da Cadeira n.º 32 da ABL, foi eleito no dia 30 de outubro de 2014, na sucessão do Acadêmico Ariano Suassuna, e recebido no dia 6 de março de 2015, pela Acadêmica Cleonice Berardinelli.

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JESUS - Raul Teixeira

Jesus

Chegou ao mundo nos braços de uma tecelã e de um modesto carpinteiro, cercado pela moldura da natureza em festa.

A Sua vida se desenvolveu, desde cedo, demonstrando a que viera, quando dialogou com os doutores do templo, aos 12 anos de idade, conforme rezam as tradições.
Conviveu com todos os tipos de criaturas, exaltando a simplicidade e a alegria de viver, a fidelidade ao bem e a fraternidade, a responsabilidade nos atos e o amor.

Falou sobre o bem, sentindo-o.

Ensinou o bem, vivenciando-o e a ele se entregando.

Passou pela Terra como a brisa que sopra na primavera, deixando o aroma da Sua passagem, numa verdadeira floração de bênçãos variadas.

Esteve no mundo como um marco de permanente esperança, insuflando coragem nas almas aterradas de pavor ante as próprias deficiências.

Viveu no planeta entre a luz do Céu e as almas umbrosas da Terra, buscando levantar o coração humano para as altitudes felizes, onde vibram os seres angélicos dos quais Ele fazia parte.

Aquilo que afirmou como fundamental à alegria e à paz tratou de expressar em Sua vida, na condição de Modelo e de Guia de todos nós, por isso amou os Seus e por eles deu a própria vida; atendeu às necessidades das almas enfermas que O buscaram; ofereceu a água fresca da Sua dedicação, a fim de que não mais sede tivesse quem dela bebesse; saciou a fome de entendimento, de conhecimento e de carinho, tudo havendo transformado no sublime pão da vida; apresentou-Se atencioso e verdadeiro para com Seus discípulos, ajustado à posição de Mestre inigualável.

Acompanhando os movimentos da Humanidade através das eras, identificamos nobres e respeitáveis almas que, na postura de líderes ou de condutores sociais, pregaram o bem, o bom e o belo para os seus liderados, que os exalçam pelos tempos afora.

Quando, diante da indagação de Allan Kardec aos Imortais acerca de qual era o Espírito mais perfeito oferecido ao mundo, para servir de Guia e Modelo à Humanidade, os Mentores planetários ripostaram dizendo que era Jesus.

Como Ele foi, então, o maior dentre todos os que à Terra foram enviados para anunciar o Reino dos Céus aos aturdidos filhos do Grande Pai, isso significa que todos os demais, por mais dignos e respeitáveis que tenham sido, são, contudo, menores do que Ele. Mensageiros da Divindade, todos os demais vieram atender aos programas do Criador atidos às épocas, às culturas, às inclinações morais. Jesus, porém, trouxe os matizes da Lei que a todos alcança, sem choques essenciais com nenhum deles, embora o formato próprio às realidades psico-antropológico-sociais de cada um.

Somente Jesus Cristo conseguiu ensinar e exemplificar com Seu viver as lições que nos passou, e se hoje, quando evocamos o Seu luminoso Natal, nos vemos engolfados nessas ondas de felicidade, é porque o Senhor de Nazaré, mais e melhor do que qualquer outro, transformou-Se em Caminho, em Verdade e em Vida para todos nós, em todos os tempos e em todas as dimensões da vida terrestre.

Mensagem psicografada pelo médium Raul Teixeira, na Sociedade Espírita Fraternidade, Niterói-RJ.

Raul Teixeira - Natural da cidade de Niterói, no Rio de Janeiro, Raul Teixeira é licenciado em Física pela Universidade Federal Fluminense, Mestre em Educação pela mesma universidade e Doutor em Educação pela Universidade Estadual Paulista. Professor aposentado da Universidade Federal Fluminense.

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NUMA NOITE ANTIGA DE NATAL – Ariston Caldas

Numa Noite Antiga de Natal


            A noite de Natal seria um bom cenário para o pedido. Ótimo mesmo.

            Júlio Braga pensou assim debruçado à janela, cruzando os dedos, olhando para o pequeno jardim em frente cheio de flores amarelas desabrochadas, havia pouco do amanhecer.

            Ele propusera isso a Isolda e o ato seria em forma de surpresa para seu Clemente e dona Elza, pais da menina,  mesmo sabendo-os difíceis para esse tipo de consentimento. A proposta, logo aceita pela moça, seria uma celebração importante para marcar o primeiro aniversário do namoro deles.

            Júlio juntava o cenário  de acontecimentos novos com ocorrências passadas, lembrava do primeiro encontro, tardinha caindo, o parque de diversão regurgitando de gente, carrossel girando, uma roda-gigante, barraquinhas, auto-falantes, ele no meio, circulando, de olho em Isolda na dita roda-gigante, abismado com as pernas dela abrindo e fechando, sem modo,  mostrando-se desapercebida, cabelo voando pelo vento.

            A proposta dele para  o namoro veio no dia seguinte, aceita por ela depois de muito lenga-lenga. Ele não lhe fazia o tipo desejado – branco demais, lábios finos, cabelo escorrido grudado de vaselina. Mas, moço de futuro, sério, de boa família, educado, bem de dinheiro. Verdade que ela, com somente 13 anos, não ia deslindar essas conceituações advindas de conversa fiada de quem quer que fosse. Como avisar o acontecimento do pedido aos pais de Isolda, particularmente a seu Clemente! Uma parada.

            Bom mesmo seria uma surpresa, tudo ocorrer sem nenhum aviso. O pior era que ele não tinha nenhuma intimidade com os familiares da menina. O Natal aproximava-se, Júlio contava os dias nos dedos, pensativo. E Isolda, meio assustada: “terei condições de casar agora?” Lembrava-se dos estudos, do cabelo liso de Júlio, dos beiços finos, da idade dela, 13 anos. Mas ele era um sujeito digno, de boa família, coisa e tal. Poderia haver, também, a rejeição dos pais dela, mas ainda pela idade, não tanto pela figura do rapaz que tinha boa condição social, participação ativa nos melhores meios do lugar.

            Quem achou a solução para o problema foi Susana, amiga de Isolda e da família dela. Susana entraria de braço dado com Júlio e o apresentaria aos pais de Isolda, explicando o objetivo da estranha visita. Júlio aceitara a ideia, Isolda, também.

            Chegou o dia, chegou a noite de Natal. Os pais de Isolda, como se soubessem do acontecimento do pedido, iluminaram a residência de ponta a ponta; montaram um presépio e prepararam uma ceia invejável; convidaram parentes e amigos. Isolda, sabendo de tudo, vestiu um conjunto chique, calçou sapatos novos e fez um penteado exuberante.

            Próximo à ceia e à missa, Júlio apareceu na porta da rua, de braço dado com Susana. Uma surpresa para seu Clemente, para dona Elza, não pela presença de Susana, mas pela cara de Júlio, sujeito quase desconhecido ou pelo menos sem  nenhuma intimidade com a família, mesmo namorando com Isolda; mas era uma amizade de encontros espaçados, pelos jardins, nas esquinas, ele nem chegava na ponta  do passeio de seu Clemente. Susana, sim, fora convidada. Isolda assustou-se, chegou a ficar pálida, amuando-se a um canto da sala, sem acreditar no que via, imaginando no que ia dar aquela encrenca. Noivar, 13 anos. Os estudos!

            Novamente Natal. Júlio Braga olhava, agora, umas nuvens vermelhas ofuscando o sol que se escondia. Faltava uma semana. “Será que a missa var ser com chuva?” Indagava-se debruçado à janela de outra casa em outro lugar, sem o jardim em frente com flores amarelas; os dedos cruzados, grossos, cabeludos nas juntas. Onde andaria Isolda? 13 anos naquele tempo, dentro de um conjunto vaporoso, penteado exuberante;  numa roda-gigante, as pernas abrindo e fechando, sem modo. Seu Clemente disse não ao pedido, sisudo, sangue subindo, irritado, bruto. Dona Elza retraiu-se, obediente, silenciosa, entrou para  um quardo onde devera ter chorado algumas lágrimas.

            Júlio envelheceu e não casou; as pernas encurvaram formando um arco, os pés balofos nuns chinelões esparrados, o cabelo escorrido de antigamente, sumiu, dando lugar a uma calva imensa alumiando sem auxílio de vaselina. Ele lembrava, de súbito, desse passado distante, conferindo-o com o presente, perdendo-se entre conjecturas. Tudo aflorou, assim, ao ouvir uma música de Natal repetida nem sabia quantas vezes através do tempo retratando Isolda com treze anos, seu Clemente, dona Elza que teria chorado trancada num quarto, depois da bronca do marido. Eram figuras ofuscadas por meio século, como se fossem personagens de uma estória de ficção.

            Olhou novamente para a vermelhidão do céu enquanto as imagens iam sumindo de sua cabeça, uma a uma, como sombras.


(LINHAS INTERCALADAS)
Ariston Caldas

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Ariston Caldas nasceu em Inhambupe, norte da Bahia,  em 15 de dezembro de 1923. Ainda menino, veio para o Sul do estado, primeiro Uruçuca, depois Itabuna. Em 1970 se mudou para Salvador onde residiu por 12 anos. Jornalista de profissão, Ariston trabalhou nos jornais A Tarde, Tribuna da Bahia e Jornal da Bahia e fundou o periódico Terra Nossa, da Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado da Bahia; em Itabuna foi redator da Folha do Cacau, Tribuna do Cacau, Diário de Itabuna, dentre outros. Foi também diretor da Rádio Jornal.

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