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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

MARIA CABOCLA – Catulo da Paixão Cearense


Maria Cabocla


Patroa: eu sou sertaneja
Vassuncê não me aconsêie
Prá tomar banho de ingrêja.
Crédo em cruz!... Nosso Sinhô!...
Eu sou curada do amô!

Vassuncê pode falá,
Póde mêmo me xingá
Cum tudo que é nome feio...
Me chama todos os nome,
Mas porém nunca me fale
No amô tinhoso dos hôme!

Meu pae que dênde criança
Era Passadô de Gado,
Só se cazou cum a mãezinha,
Pruquê, sá dôna, a mamãe
Era tão bela e fermosa
Que todo o hôme que via
A minha mãe, sá dôninha,
Ficava logo imbeiçado,


Meu avô, esse, sá dona,
Era um cabra tão safado,
Que despois de inchê de fio
A minha santa vozinha,
Se dizovou lá dos matto,
Prá vim sê gallo infeitado.

Meu padrinho apremetteu
Casamento a uma tapuia
Lá das banda do Páu Fundo,
E fartando uma sumana
Prô dia do casamento,
Fugiu prô ôco do mundo.

O Antonico da Favella,
Que era também meu êrmão,
Só se acuêirou cum a Rita,
A neta do Zé Pinguella,
Prá fazê fio na Rita
E se casá cum uma china,
Nascida no Tapadão.

Têve um hôme no sertão,
Um véio, um sinhô de Engenho,
Tão isturrado e crué,
Que se casou-se cum a Rosa,
(que era a branca mais fermosa...)
E tinha prá aquellas banda
Mais de oito ou dez muié!!!

O érmão do douto Jão Gôme,
Que fez tantas imbrêtada
Prá ajuntá cum a afiada
Do Bastião do Gerôme,
Sá dôna sabe o que fez!?

Matou a pobre de fome!!

Não ficava mais calada,
Se fosse fala de todas
As cafangada dos hôme!

Sá dona, a prêmêra vez
Que eu senti a navaiada
D`um disgraçado chamego
Pulo Reimundo Curúmba,
Um tocado de zabumba,
Nunca mais tive assucêgo!!!

Eu fui bonita, sá dôna!...

Sá dôna, eu já tive uns óio
Tão vivo, que parecia
Duas fulô de pôdóio!

Esta carinha enrugada
Já fez munto fôiaráda
Andá de reda no chão!

Mas porém, amô de véra,
Amô cá do coração,
Amô fixe, amô fié,
Eu só tive um só, sá dôna,
Cumo todas as muié.

Eu vi esse hôme mardicto
Tocando aquelle insturmento,
N'uma noite de Natá!

Era um, cabra chaboquêro,
Mas porém chorava tanto
No zabumba feiticêro,
Que o coração aqui dento
Se damnou-se a zabumbá!

Dênde essa noite mardicta
Nunca mais assuceguei!
O hôme jurava tanto,
Cum uma carinha de santo,
Que tudo que elle me disse,
Santamentes, crêditei.

Eu tinha vinte e dois anno
E não sabia, patrôa,
Que coisa era namorá,
Quando sujuguei minh`arma,
Sem arreceio e sobrôço,
Pulo cabôco que tinha
Os dente cumo caroço
De mio de mucunzá.

Deus Nosso Sinhô me váia!

Nem falando uma sumana,
Sem cumê e sem drumi,
Eu dizia o que suffri
Prú móde aquelle canáia!

Todo o mundo me dizia
Que o hôme era arreminado,
Máiscánga e marombadô!

Meus óio não via nada!...

Minhárma táva introzada!...

Eu tava zanza! Era o amô!

Suffri três anno puxado,
Inté que um dia o marvado
Me pediu-me em casamento,
Dizendo ä minha mãezinha
Que dênde aquele momento
Tudo tava apreparado.

Mas porém nesse intrevállo,
Vira, méxe, larga e péga,
Curumba fez um manzéga
E foi prezo... já se vê!

Três dia despois da briga,
Eu desandei cum as bexiga,
Que me botou n'uma cama
Dois mez intêro a soffrê!

Graça a Jesus, fiquei boa!

Mas porém minha patrôa
Já póde fazê indéa
Do que eu penei cum esta cara,
Que já deu tanto cavaco,
E tá cheia de buraco,
Que nem tronco de manguêra,
Quando tá podre de véia.

No intrévallo de dois anno,
Que ele teve na prisão,
Cozinhando prô mardicto,
Prá leva toda a minhã
A comida cum estas mão,
Eu suffri, eu suffri tanto,
Que nem sei lhe dizê, não,
Apois, tarvez, vassuncê,
Sá dôna, não me credite!

A mamãezinha (coitada!!)
Me vendo assim padecê,
Morreu de lerzão cardite!

Apois bem, vassuncê sabe
O que fez o goróróba,
Quando sahiu da taioba,
Que é o nome lá da prisão?
Abrindo os panno, sá dôna,
Deu de perna prô sertão,
E foi se casá cum a fia
Do LiopordoMarruá,
Um hôme que foi vaquêro
E é hoje um sinhô de Engenho
Nas varge de Pirauá.

Cahi ôtra vêis de cama
No dia que o marupâma
Sahiu de lá da prizura.

Quando aquelle mesquinhez
Me viu a primêra vez,
Cum a cara sarapintada
E cheia de quêmadura,
Já me ôiôu cum farsidez!...

Já não me ôiôu cum ternura!

Oiando prá minha cara,
Quêmada que nem coivara,
O marvadão se esquecia
Que dentro dárma eu trazia
Toda a minha fermuzura!!

O raio do mariola
Não me quis mais, pruquê eu tinha
Nesta cara uns pipocão!!

Sá dôna, o coisa mesquinha
Sabia que a varióla 
não bole cum o coração!

Ele é que era o bexiguento,
Pruquê se não tinha a cara
Quêmada como a coivara,
Seu coração táva negro...
Escuro como um cravão!

Aquelle não-sei-que-diga
Tinha a pió das bexiga
Que se chama... Ingratidão!!!

Nhá moça!... Todos os hôme,
Que tem tantos, tantos nome...
Têm, na verdade, um somentes...
Um só: - Reimundo Curúmba!

E esse nome dento d’árma
Eu sinto que, dia a dia,
Incha mais do que caxumba!

Mas porêm vancê são sabe 
Cumo as cabôca ficava,
Quando o cabra se esfoiava
Num coração d’um zabumba!

Nas festa de Santo Antonio,
Quando isturrava a embolada,
Cada ronco da pancada
Era cumo a trevuada,
Em noite de ventania!

Mas porêm, quando o zabumba
Tocava só prá samba,
Parecia um sabiá,
Chorando a morte do dia!

Crédo, em cruz!... Nosso Sinhô!...

Patrôa: é prú via disso
Que eu lhe disse, inda há pouquinho,
Que eu sou curada do amô.

Já tô véia!... A minha cara
Parece uma biboquêra!

Apois bem! Vancê tá vendo
Em riba daquela serra
Aquelle pé de manguêra?

Agora veje aqui perto
O cadáver quáge secco
Desta véia cajazêra.

Aquella é nova!... Tá moça,
Tá chêrando a mocidade!

Esta aqui já tem cem anno
E nem tem mais uma fôia
Prá de intêrtê cum a sôdade!

Aqui, no cadáver secco
Deste gaio ressequido,
Vancê não ouve um gemido
D’um passo, prú caridade!

Agora veje a manguêra,
Aquella manguêra moça,
Cumo té cheia de ninho!
Vancê vá vê cumo o vento
Abraça aquellas foiage
Cum amô e com carinho!

Carão, Serradô, Bicudo,
Sereno, Cardiá, Canáro,
Margarida, Solitáro,
Sovélla, Vim-Vim, Collêra,
Rabijunco, Jumará...
Tudo tá cantando lá
Na rucéga da manguêra.

Assim sêmo nós, sá dôna!

Os hôme só nos percura,
Quando nós, que sêmo as árve
Tâmo cheia de verdura.

Sá dôna, o hôme é um ladrão!

Esse cabra, esse inadão,
Só jura, quando não sente!

Cum as suas doce leréia,
Esse Dentão é que róba
A fermuzura da gente!

Se um dia eu ficasse doida,
Me casando cum um bárbacho,
Eu haverá de ingeitá
Todo o fio que eu parisse,
Se o fio fosse hôme macho.

Carregá na mãe do corpo
Um anno quáge, sá dôna,
O diabo do curerê!...

O hôme vêio do Inferno!!...

Não é fio de muié!!!

Eu gósto de uvi, sá dôna,
Uma viola chorada,
Quando saluça, maguada,
Nos seus saluço de amô!

Mas porêm, o que se sente,
O que sastifaz a gente,
É as dez corda da viola,
E não a mão do bengóla...
Do violêro... o tocadô.

Sem as dez corda, sá dona,
Póde cantá, cumo quêra,
cantá, inté fica louco,
Que aquelles dêdo, sá dona,
Há de batê n’um páo ôco.

Vancê vêje! O Serra d’Agua,
Um rascado de viola
Do sertão, onde eu nasci,
Quando reméxa na prima,
E canta n’uma peleja,
Desafia um bemtevi!

Benedicto Pereréca
Se adisfóia na rebéca
E geme cumo um cronqui!!

João Quirino da Liança,
Que é fio dp Aracaty,
Quando grogêia n’um samba,
N’um rialêjinho de boca,
Faz a gente fica louca,
Pruquê parece que o cabra
Aninhou dento da boca
Um bando de jurity!

Veja agora!... O Serra d’Agua.
O violêro famanado,
Dá pancada na Totônha!

Benedicto Pereréca,
Esse rei dos rebenquêro,
Prú via d’um comboêro,
Matou a Maria Antônha.

João Quirino da Liança
Dá n’um só dia seis piza
Na sua moça – a Luiza,
Que era gordinha e bonita,
Quando vivia cum os pae,
Tão contente e tão feliz!!...

Quirino só vae prá casa,
Quando cansou de bêbê
E já se póde acendê
Um phóspho no seu nariz.

Patrôa, vancê discurpe!

Vancê são vá se offendê,
Se eu préguntá prá vancê
Adonde véve a rézão
D’esses hôme,  d’esses músgo,
Que quêma o peito da gente,
Cumo se fosse um cravão?!

É que os hôme não têm árma!

Os instrumento, sá dôna,
É que tem um coração!

O amô dos hôme isbilita
As muié, quando é bonita,
Priquê o hôme é um aribú!...
A língua dele é frevente
E istrépa a honra da gente,
Cumo um jaremacurú.

Quando tá mamparriando,
Introviscando as muié,
O cabra chora e saluça,
Taliquá cumo um vim-vim!

Mas porêm, quando o marvado
Já não tá mais embeiçado,
O Capêta arrenegado
Fére as muié, sem piadade,
Cumo um cabacurumim!!!

Vancê veje o que assucéde
Cum as árve dos mattagá!...

As árve sofre de noite
As gambetada do açoite
Dos górpe do temporá!...

O vento passa berrando
E lá se vae truvejando,
De vez em quando aparando,
Prá se rí, prá gargaiá,.
E de novo hi gargaiando,
Vendo as árve se esfôiando,
Cabeceando, esgaiada,
No meio da foiarada,
As suas fôia chamando,
Cum os braço têzo prô á!!

Quando aminhéce, sá dona,
As árve té tão calada,
Tão serena e assucegada,
Bençoando a luz do dia,
Que inté parece que as árve,
Não tendo sofrido nada,
Nem se alembra das cornada
Da sarvage ventania!!

Ansim sêmo nós, sá dôna,
Sêmo todas as muié,
Quando o pampêro dos hôme
Entra cá dentro da gente,
Roncando, cumo um trovão,
Arrancando as fôia verde
Das rosa da mocidade,
Cum tanta sarvagidade,
Que adisfóia o coração!

E assim cumo os arvoredo,
Despois dos beijo da aráge,
Torna a se enchê de verdô,
Abasta um riso, um agrado,
Dos óio do arrenegado,
Prô coração, machucado,
Cobri-se outra vez de frô!!

O hôme, esse barimbé,
Não ama as muié, patrôa,
Ama todas as muié!!

Vassuncê vêje um terrêro,
Adonde um gallo, manhêro,
Tá todo a se gambeá,
No meio lá das galinha,
Das galinha mais bonita
E das franga mais catita
Que vassuncê maginá.

Veje agora vassuncê:
Se passá uma galinha
No terrêno da vizinha
D’alli, d’aquella molóca,
Vassuncê logo há de vê
O raio do coróróca,
O hôme de penna, o ingrato,
Se apinhoscá pulos matto,
Correndo que nem um doido,
Atraz da galinha chóca!!

É um cauzo que faz pensá!

Apois o bicho canáia
Nem prú disgraça arrespeita
A galinha rabugenta,
Que é uma mãe, que vai criá.

Esse bengóla-fuméga,
O pinga-fogo sovina,
Que anda lá fora cum as “china”
E vem prá casa impuiá,
Abasta que a gente fale
Cum um franguinho, sem pecado,
Pró gallo fica damnado
E logo querê mata!!!...

Vassuncê tem seu marido,
Hôme de munto valô
E eu não tôu falando ansim
Prá martratá seu doutô!

Mas porêm, ói, eu lhe falo,
Sem sobroço de peccado,
Que o hôme, sá dôna, é um gallo,
Munto disavregonhado!

Os hôme diz que as muié
Quando não mata, consome!...

Mas porêm, eu lhe pregunto:
Quem foi que vendeu Jesus?

Foi muié? Não! Foi um hôme!

Vassuncê não viu, sá dôna,
Quando o Fio do Sinhô
Desceu do céo cá prá terra,
O que foi que aconteceu?

Nosso Sinhô Jesu-Christo,
Duvidando d’elle inté,
Já tarde se arrependeu
De não tê vindo prô mundo
Cum o corpo d’uma muié!!!

Inté São Pedro, esse véio,
Que era um pobre pescadô
E foi apóstro do Christo,
Negou trez vez o Sinhô!

Os canáia, os miseráve,
Garrando o santo Jesus,
Aprégáro aquelle corpo,
Aquelle corpo sagrado,
Em riba d’uma montanha,
Curcificado na cruz.

Mas porêm, quando o Divino,
Cheio de fome e de sede,
Pulos ingrato morria,
Não têve uma só muié
Que não chorasse, de joêio,
Cum a Santa Virge Maria!

Emquanto as muié chorava
E os seus fiinho amostrava
Prá Deos, pedindo perdão,
Os desgraçado insurtava
O Deos, que soçorócava,
No meio de dois ladrão!!...

Inté mêmo Mardalena,
Cum quem os hôme, os canáia,
Sem piedade impilicava
E chamava de catráia
E vendedêra do amô,
No pé da cruz saluçava,
As ferida résfrescava
E cum os cabello enxugava
O sangue do Redemptô.

Os cão dos hôme, nhá moça,
Que apregáro, de mardade,
Naqueles dois páo cruzado
O Christo, o santo Jesus,
Anda agora trabaiando
Prá fazê Nosso Sinhô,
Que morreu prú nosso amô,
Descê de riba da cruz.

Sá dôna, eu sou sertaneja!

Eu já tôu munto madura,
Prá tomá banho de ingrêja!

Vassuncê póde falá,
Póde mêmo me xingá
Cum tudo que é nome feio...
Me chamá todos os nome,
Mas porêm, eu lhe supprico,
Pula luz desses seus óio,
Que nunca mais, sá patrôa,
Vancê me fale, brincando,
No amô tinhoso dos hôme!!!

Sá dôna! A estrella da tarde,
Que nós chama – Papa-Ceia,
Que Deos accende, piadoso,
E parece uma candeia
Na cabêcêra do dia,
Tá cuchichando cum o sino
D’aquella pobre ingrejinha,
Que tá mandando prá estrella
A Estrella da Ave-Maria.

Apois bem!... Prú Jesú Christo,
Pula sua dô sagrada,
Prá sempe amardiçoada
Sêje a raça disgraçada
Dos hôme... desses crué!

E em nome da Santa Virge,
Da Mãe de Deos adorada,
E tômbem da Madalena,
Da catráia apedrejada,
Que foi santa pula fé...
Sêje, apois, abençuada
Prá sempre e sempre as muié!!!!

                               Sá dôna!

Ansim cumo faz a abêia,
Essa cabôca lodassa,
Que o macho logo escurraça,
Despois da acuiêração,
As muié tômbêm devia,
Prá acabá cum o suffrimento,
Despois do acuiêramento,
Dá cabo desse Zangão.

(POEMAS BRAVIOS)
Catulo da Paixão Cearense

.........................
                                                                   Paris, 22 Junho 1919
            Meu Poeta e Amigo:

            “V. continua a afinar as suas cordas pelos motivos sentimentaes do Brasil brasileiro. Seu estro ganha alturas religiosas de um inspirado directo do Povo e da Terra. Seus poemas alimentam-se das raízes suculentas do sertão, florescem no espinhal do Sofrimento, do Trabalho e da Saudade, em que vibra a vida dos nossos desdenhados roceiros.
            Dizer-lhe como, da comoção que me causou a leitura de seu livro nas poeiras estivaes deste Paris atordoado e frenético pela Victória, pela Moda e pelo Tango? Respirei a farta os bons cheiros da agrestia do mato natal; rolei de cambulhada com os rudes pastores do Cariry; sambei com a caboclada nos ranchos; ponteei as violas chorosas dos cabras; suspirei, amei, vivi ao sol de minha terra, a centenas e centenas de léguas de quando a Pátria beija o mar.
            Tudo pelo prestígio do seu plectro, cuja espontaneidade e nacionalismo o impregnam de uma força simples e tocante.
            A’s suas justas vaidades de homem de poesia e coração não será de menos a confissão do exilado, enternecido pelo vigor dessas impressões, que V. faz despertar, encoivarando as redondilhas.
            A “Terra Caída” quanto ganhou de relevo e lirysmo no trespasse musical de suas rimas! Ás páginas desencantadas do “Inferno Verde” V. poz o sello de sua inspiração cândida e fremente”.
            Admirador, amigo, agradecido.
                                               
                                      Alberto Rangel (Carta a Catullo Cearense)

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