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sábado, 10 de agosto de 2019

10 DE AGOSTO: DIA DE JORGE AMADO – o robe de ouro


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(Rio de Janeiro, 1977 – o robe de ouro)


            Chega-se ao fim de uma batalha que durou oitenta anos, tantos quantos os da Academia*: as mulheres de agora em diante poderão se candidatar às vagas, ganhar a eleição, vestir o fardão com o peitoril de ouro. Como será o fardão das damas? Robe verde, pano de bilhar, ourama no parapeito, desenhado por Austregésilo**. Apesar da ameaça do robe, apoio com alvoroço a luta pela entrada das literatas, voto a favor da proposição de Osvaldo Orico***.

            Essa história de exclusão das mulheres dos quadros acadêmicos foi umas das salafrarices cometidas por Machado de Assis quando fundou a chamada Ilustre Companhia, não foi a única, sujeitinho mais salafrário nosso venerado mestre do romance.  Custou-lhe esforço chegar a branco e a expoente das classes dominantes, mas tendo lá chegado não abriu mão de nada a que tinha direito, culminou a carreira bem-sucedida de burocrata com a fundação da Academia: até hoje a preside, entronizado de sobrecasaca no pátio de entrada do Petit Trianon. Crítico entre amável e sarcástico da burguesia brasileira da época, da classe média alta, o mestre romancista; sustentáculo de seus privilégios e preconceitos, o cidadão Joaquim Maria Machado de Assis, marido de dona Carolina, casou-se com portuguesa.

            Estabeleceu ele próprio a relação dos fundadores, inscreveu os vetos. Nem boêmios - Emilio de Menezes ****só pôde ser eleito após a morte de Machado -, nem mulheres. Na época havia uma escritora de renome estabelecido - e merecido, vale a pena ler seus romances, Júlia Lopes de Almeida *****, impossível passá-la para trás, se ela protestasse seria o escândalo, como fazer para não colocá-la entre os quarenta ilustre titulares? Machado, o manipulador, deu a volta por cima, encontrou como impor o machismo. Barganhou com dona Júlia: ela ficava de fora, mas em troca ficaria de dentro, acadêmico de número, o marido dela, Filinto d'Almeida, escrevinhador de pouca valia. A romancista achou, com a razão, que o consorte precisava bem mais que ela dos bordados da Academia, cedeu-lhe a cadeira, a ela bastavam os romances. Com o quê Machado fechou de vez as portas do silogeu às saias femininas. Nem mulheres nem boêmios, mas teve vaga para jovem de vinte anos, quase inédito, Magalhães de Azeredo, dele se conhecia apenas páginas de louvor, aliás justo, aos livros do fundador da instituição. Também vem de Machado a tradição das cadeiras reservadas aos candidatos das diversas categorias do poder, cadeiras cativas do Exército, da Igreja, do Judiciário, das letras médicas: a tradição dos expoentes perdura ainda hoje. Escritores, uns poucos e nem sempre os melhores. Deixa pra lá.

            Certa quinta-feira, dia de sessão, na sala do chá testemunhei ácido debate entre Luiz Viana Filho e Magalhães Júnior a propósito de Rui Barbosa, alvo da crítica do rebarbativo Raymundo. A memória dos grandes homens, exemplo para a juventude, deve estar acima de qualquer restrição, branca de leite, limpa e polida de qualquer defeito, impoluta para a admiração da posteridade, arengava Luiz. Viu-me parado a escutar, olhou-me com o rabo do olho, sorriu-me, mas, político habilíssimo, não pediu minha opinião. O cidadão Machado de Assis, não o romancista, muito tem se beneficiado com a tese da memória pulcra dos grandes mortos.

            Na votação da proposta o que abriu as portas da Academia às mulheres, Hermes Lima surpreendeu-me: voto contra. Vendo  meu espanto, explica-me: isso aqui não passa de um clube de homens, Jorge, no dia em que entrar mulher nem isso mais será: nossa paz se terminará, a fofoca substituirá a convivência.

            Um jornal faz uma enquete às vésperas da decisão, pergunta qual das nossas beletristas (!) deve ser a primeira a envergar o fardão – perdão, o robe. Em minha opinião, digo ao repórter, nenhuma das nossas confrades merece mais a consagração, os pechisbeques (!) da Academia do que a poetisa - naquele tempo dizia-se poetisa, hoje poetisa é xingo  - Gilka Machado, figura singular em nossa literatura. Poetou sobre o desejo da mulher, a tesão pelo homem, o amor sem peias quando as outras reservaram o coito para os confessionários das igrejas: ousou quando a ousadia significava discriminação, repulsa, abjeção. Sugeri que as prováveis candidatas assinassem manifesto propondo aos acadêmicos o nome de Gilka Machado: mais que outra qualquer merece ser a primeira mulher a ingressar no fatal cenáculo. A sugestão caiu no vazio das vaidades, tampouco eu acreditava fosse avante, sou ingênuo, mas não tanto. As impacientes andavam pelos alfaiates, de figurino em punho, estudando o robe: ainda mais solene e triste do que o fardão.

*Academia Brasileira de Letras

**Austregésilo de Athayde, Presidente da ABL
***Osvaldo Orico (1901/1981), escritor
****Emílio de Menezes (1866/1918), poeta
*****Júlia Lopes de Almeida (1862/1934), romancista


Jorge Amado
(NAVEGAÇÃO DE CABOTAGEM)

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(Rio de Janeiro, 1968 – os mabaças)

            O filme de Fernando Sabino e David Neves, A Casa do Rio Vermelho, um dos doze documentários que a dupla dedicou a escritores brasileiros, tem vinte minutos de duração dos quais os senhores Carybé e Dorival Caymmi desperdiçam uns seis ou sete a dizer mal de mim, o mocinho da película.           

            Fernando e David foram à Bahia para a filmagem, os dois figurantes não estavam, exibiram-se depois, no Rio. Disseram horrores, que eu fazia e acontecia, inventada e produzia, pintava o diabo, amarrava o bode, criticaram-me as bengalas, os bonés e o bigode, as camisas coloridas, as bermudas, as sandálias.

           Assisto o filme, vejo os dois compadres fazendo minha caveira, no entanto sou o terceiro a formar com eles a trinca dos doutores do povo da Bahia, três obás de Xangô, senhores respeitáveis. Meus dois mabaças, Caymmi e Carybé, não merecem confiança, não são pessoas sérias, línguas de trapo, corações de ouro, a voz e a face da Bahia.

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JORGE AMADO - Quinto ocupante da Cadeira 23 da ABL, eleito em 6 de abril de 1961, na sucessão de Otávio Mangabeira e recebido pelo Acadêmico Raimundo Magalhães Júnior em 17 de julho de 1961. Recebeu os Acadêmicos Adonias Filho e Dias Gomes.



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