Total de visualizações de página

terça-feira, 30 de junho de 2020

ITABUNA CENTENÁRIA UM POEMA: A MOSCA AZUL – Machado de Assis


 A Mosca Azul 
Machado de Assis


Era uma mosca azul, asas de ouro e granada,
Filha da China ou do Industão,
Que entre as folhas brotou de uma rosa encarnada,
Em certa noite de verão.


E zumbia, e voava, e voava, e zumbia,
Refulgindo ao clarão do sol
E da lua, - melhor do que refulgiria
Um brilhante do Grão-Mogol.


Um poleá que a viu, espantado e tristonho,
Um poleá lhe perguntou:
“Mosca, esse refulgir, que mais parece um sonho,
 Dize, quem foi que to ensinou?”


Então ela, voando, e revoando, disse:
- “Eu sou a vida, eu sou a flor
Das graças, o padrão da eterna meninice,
E mais a glória, e mais o amor.”


E ele deixou-se estar a contemplá-la, mudo,
E tranquilo, como um faquir,
Como alguém que ficou deslembrado de tudo,
Sem comparar, nem refletir.


Entre as asas do inseto, a voltear no espaço,
Uma cousa lhe pareceu
Que surdia, com todo o resplendor de um paço

 E viu um rosto, que era o seu.

Era ele, era um rei, o rei de Cachemira,
Que tinha sobre o colo nu,
Um imenso colar de opala, e uma safira
Tirada ao corpo de Vichnu.


Cem mulheres em flor, cem nairas superfinas,
Aos pés dele, no liso chão,
Espreguiçam sorrindo, as suas graças finas,
E todo o amor que têm lhe dão.


Mudos, graves, de pé, cem etíopes feios,
Com grandes leques de avestruz,
Refrescam-lhes de manso os aromados seios,
Voluptuosamente nus.


Vinha a glória depois; - quatorze reis vencidos,
E enfim as páreas triunfais
De trezentas nações, e o parabéns unidos
Das coroas ocidentais.


Mas o melhor de tudo é que no rosto aberto
Das mulheres e dos varões,
Como em água que deixa o fundo descoberto,
Via limpos os corações.


Então ele, estendendo a mão calosa e tosca,
Afeita a só carpintejar,
Como um gesto pegou na fulgurante mosca,
Curioso de a examinar.


Quis vê-la, quis saber a causa do mistério.
E, fechando-a na mão, sorriu
De contente, ao pensar que ali tinha um império,
E para casa se partiu.


Alvoroçado chega, examina, e parece
Que se houve nessa ocupação
Miudamente, como um homem que quisesse
Dissecar a sua ilusão.


Dissecou-a, a tal ponto, e com tal arte, que ela,
Rota, baça, nojenta, vil,
Sucumbiu; e com isto esvaiu-se-lhe aquela
Visão fantástica e sutil.


Hoje, quando ele aí vai, de aloé e cardamomo
Na cabeça, com ar taful,
Dizem que ensandeceu, e que não sabe como
Perdeu a sua mosca azul.


  (Ocidentais, in Poesias completas, 1901.)

 ------------

Machado de Assis (Joaquim Maria Machado de Assis), jornalista, contista, cronista, romancista, poeta e teatrólogo, nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 21 de junho de 1839, e faleceu também no Rio de Janeiro, em 29 de setembro de 1908. É o fundador da cadeira nº. 23 da Academia Brasileira de Letras. Velho amigo e admirador de José de Alencar, que morrera cerca de vinte anos antes da fundação da ABL, era natural que Machado escolhesse o nome do autor de O Guarani para seu patrono. Ocupou por mais de dez anos a presidência da Academia, que passou a ser chamada também de Casa de Machado de Assis.

Fonte: ABL

Nenhum comentário:

Postar um comentário