O
sertanejo é, antes de tudo, um forte.
Não tem o
raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral.
A sua aparência,
entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a
plástica impecável, o desempenho, a estrutura corretíssima das organizações
atléticas.
É desgracioso,
desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete, no aspecto, a fealdade típica
dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta
a translação de membros desarticulados. Agrava-o a postura normalmente abatida,
num manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A
pé, quando parado, recosta-se invariavelmente no primeiro umbral ou parede que
encontra; a cavalo, se sofreia o animal para trocar duas palavras com um
conhecido, cai logo sobre um dos estribos, descansando sobre a espenda da sela.
Caminhando, mesmo passo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme.
Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem ser o traço
geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se na marcha estaca pelo
motivo mais vulgar, para enrolar um cigarro, bater o isqueiro ou travar ligeira
conversa com um amigo, cai logo – cai, é o termo – de cócoras, atravessando
largo tempo numa posição de equilíbrio instável, em que todo o seu corpo fica
suspenso pelos dedos grandes dos pés, sentado sobre os calcanhares, com uma
simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem
permanentemente fatigado.
Reflete a
preguiça invencível, a atonia muscular perene em tudo: na palavra remorada, no
gesto contrafeito, no andar desaprumado, na cadência langorosa das modinhas, na
tendência constante à imobilidade e à quietude.
Entretanto,
toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é
mais surpreendedor do que vê-la desaparecer de improviso. Naquela organização
combalida operam-se, em segundos, transmutações completas. Basta o aparecimento
de qualquer incidente exigindo-lhe o desencadear das energias adormidas.
O homem
transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na
estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta, sobre os ombros possantes,
aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes, numa
descarga nervosa instantânea, todos os efeitos
do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu
canhestro, reponta, inesperadamente, o
aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento de força e
agilidade extraordinárias.
(OS SERTÕES)
Euclides da Cunha, em ANTOLOGIA NACIONAL, de Fausto Barreto
e Carlos Laet – 31ª edição, Livraria Francisco Alves, São Paulo, 1954.
-----------
EUCLIDES RODRIGUES
PIMENTA DA CUNHA nasceu em Cantagalo, RJ, em 1866. Após uma infância difícil e
uma vida estudantil-militar marcada por atos de insubordinação e punições,
formou-se em ciências e matemática na Escola Superior de Guerra, onde fez
também os cursos de artilharia, estado-maior e engenharia militar.
Em 1895,
deixou a farda e, mudando-se para São Paulo, passou a dedicar-se à engenharia
civil e, logo em seguida, também ao jornalismo, enviado à Bahia como
correspondente do jornal “O Estado de São Paulo” para cobrir a fase final da luta entre forças governamentais e os
rebeldes de Canudos (1897), publicou a respeito uma série de reportagens e
colheu material para seu grande livro – “OS SERTÕES”, vindo à luz em 1902.
Em 1904, a
convite do Governo, chefiou a comissão de reconhecimento das fronteiras
brasileiras no Alto Purus. Retornando, ficou no Rio de Janeiro como adido ao
gabinete de Rio Branco, no Itamarati (Ministério das Relações Exteriores).
Eleito para a Academia Brasileira de Letras, tomou posse em 1906.
Morreu
assassinado, em 1909.
Obras: Além
de “OS SERTÕES”, deixou “Contrastes e Confrontos” (1907) e “À Margem da
História” (1909).
..........
Toda a
fama de Euclides da Cunha “nasceu com OS SERTÕES, obra que retrata com
impressionante força verbal e intenso realismo a terra e o homem do sertão
nordestino e a luta sangrenta contra os fanáticos de Canudos. Nesse livro,
que é um monumento de nossas letras e mereceu ser traduzido para vários idiomas,
o autor revela-se, a um tempo, cientista
emérito e primoroso estilista. A linguagem de Euclides da Cunha, opulenta,
nervosa, veemente, é o reflexo de sua alma indômita e de seu caráter retilíneo.”
(Domingos Paschoal Cegalla).
* * *