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segunda-feira, 29 de maio de 2023

Discurso da Gratidão

por Cyro de Mattos

 


Primeiramente minha gratidão a Deus, que me deu a vida. À minha esposa Mariza, meu suporte físico e espiritual durante 50 anos de união conjugal. Aos meus três filhos e seis netos, pelo incentivo.

À confreira Janete Ruiz, que teve a ideia dessa homenagem. À confreira Raquel e ao confrade Wilson pelo apoio. Aos confrades e confreiras que aprovaram a iniciativa generosa, mas penso que outros integrantes desta instituição mereceriam a honraria.

Já vai longe o tempo em que recebi a primeira distinção relevante no meu currículo de vida literária. Foi em 1968, no Rio. Vendi meus livros de Direito do escritório de advocacia, que havia estabelecido aqui em Itabuna, com uma clientela considerável proveniente da área trabalhista, quando então resolvi migrar para o Rio onde seguiria minha carreira literária. Paralelamente, optei pelo jornalismo para sobreviver lá na cidade grande.

O Rio e São Paulo naquela época formavam o tambor cultural do Brasil. Quem quisesse ter repercussão na carreira literária devia migrar cedo para uma das duas metrópoles. Já repórter e redator do Diário de Notícias no Rio, ainda como um moço do interior baiano espantado com a cidade de muita gente e edifícios que altos sinalavam para as nuvens, sentia-me estranho aos meios e costumes da metrópole. Foi aí que tive uma boa surpresa. Conquistava em 1968 o prêmio Internacional Miguel de Cervantes, patrocinado pela Casa dos Quixotes, para autores de língua portuguesa. O conto que me deu o prêmio foi Inocentes e Selvagens. Era a primeira vez que um autor brasileiro conquistava a láurea. Não preciso dizer da alegria.

Vieram outras conquistas literárias e distinções importantes, como foram ressalvadas aqui pela confreira Raquel Rocha. Veio minha entrega

pela progressão e honra de nossa instituição, conforme destacou a confreira Janete Ruiz. A última de nossas conquistas literárias, sem dúvida a mais relevante, se deu recentemente com o Prêmio Literário Casa de las Americas, para o livro Infância com Bicho e Pesadelo e Outras Histórias.

Fico pensando agora como reagiria meu pai Augusto quando soubesse que tinha um filho como autor de 65 livros pessoais publicados no Brasil, 16 no exterior, com vários prêmios de categoria, distinções outorgadas por instituições importantes. Meu pai era um homem iletrado, aprendera a ler e a escrever por esforço próprio. Tudo ele fez com trabalho, esforço e economia para que os filhos fossem gente: o mais velho, José Orlando, se tornasse um médico respeitável, o mais novo, começasse a carreira de advogado nas pegadas de um profissional competente. O irmão mais velho tornou-se um médico de alto valor aqui em Itabuna. Cirurgião elogiado durante décadas de dedicação e amor à Medicina, foi provedor da Santa Casa de Misericórdia com louvores. O filho caçula fora uma decepção para o pai, trocara o certo pelo duvidoso.

O pai disse:

- Você pretende viver nas nuvens, seguindo uma profissão que não existe, não bota comida no prato, aqui na cidade ninguém dá importância a quem vive de escrever livros. – De rosto triste na expressão inconformada concluiu: - Esse negócio de ser escritor só serve pra quem não tem juízo.

Eu observei:

- Meu pai é o que gosto, ser escritor não dá dinheiro nem conceito, reconheço, mas vou seguir o meu destino.

Perguntei-lhe se ele já havia ouvido falar no famoso romancista Jorge Amado, era uma referência para quem quisesse seguir a carreira de escritor.

Ele respondeu que já ouvira falar em Jorge Amado, mas era um caso raro, acrescentando que devemos seguir a regra e não a exceção, onde para se alcançar as metas tudo é mais difícil.

O pai não podia pensar diferente, com o saber que aprendera na escola da vida, queria o melhor para mim.

Certamente hoje, se estivesse aqui comigo, ficaria calado, entre estranho e assustado.

Seria bom, agradável, se ele dissesse:

- Filho eu não sabia que o tempo estava preparando uma boa surpresa pra mim e pra sua mãe Josefina.

O tempo, esse avantajado cavaleiro soberano. Sabe das coisas, conhece os caminhos, dá e toma, tudo bebe e lambe.

Antes de se recolher para se reconfortar no sono, depois de mais um dia de trabalho, gostaria que o meu pai dissesse de voz calma:

- Meu filho, você é um escritor de verdade.

Passados tantos janeiros, entre dias alegres e tristes, estou recebendo neste momento singular distinção como Presidente de Honra da Academia de Letras de Itabuna, instituição com finalidades culturais que ajudei a fundar com um grupo de pessoas sonhadoras. Fico comovido com a iniciativa. Recebo a homenagem como reconhecimento ao meu legado, minha participação na instituição que se tornou um capítulo importante em minha vida.

Por isso mesmo, não vejo outra maneira de agradecer essa homenagem a não ser repetindo o que disse em meu poema de louvor à Academia de Letras de Itabuna e que hoje serve como a letra do hino oficial da instituição.

A cidade contigo conhece

Que a vida não é coisa vã,

É a palavra solta a dizer

A beleza de cada manhã.

Imortal é tua maneira de ser,

Tua luz que nunca se apaga,

Ideal é a página que escreves

Pra voar com as asas da alma.

Tudo vale, tudo anda com Deus,

Que nos deu a razão e a emoção,

O sentido de viver com o amor

Pra dizer o que vem do coração.

O sentido de viver com o amor

Pra dizer o que vem do coração.


Obrigado a todos e a todas por este momento cativante.

*Discurso proferido por Cyro na homenagem que recebeu como Presidente de Honra da Academia de Letras de Itabuna, no auditório do Hospital de Olhos, em 27 de maio de 2023.

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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Bicentenários

José Sarney

 


Temos uma tendência a pensar que os anos são bons ou maus, mas, parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que os anos são os anos e suas circunstâncias. Falei nas últimas semanas de dois bicentenários de nascimento, o do Parlamento brasileiro e o de Gonçalves Dias.

Ali mesmo na velha cidade de Caxias, no Alto Itapicuru, onde nasceu a 10 de agosto o filho de Dona Vicência que seria o maior poeta brasileiro, havia poucos dias - no dia 31 de julho - tinham se rendido as tropas portuguesas comandadas pelo Major Fidié, selando a adesão do Maranhão à Independência. Na verdade, o mercenário Cochrane declarara a adesão feita no dia 28, já que o saque ao patrimônio da cidade, seu real objetivo, era coisa resolvida e não soubesse qual era a situação no interior. Coisa feia para uma coisa tão bonita como o congraçamento dos maranhenses em torno da Independência. Mas mesmo essa paz se arrastaria por mais um bom tempo, pois os portugueses, aqui no Maranhão como em todo o Brasil, eram a plutocracia que, de fato, governava.

Foi o que fez, em abril deste ano de 1823, Cipriano Barata, meio expulso das Cortes de Lisboa - onde era deputado pela Bahia - por seu nativismo e de uma Salvador ainda ocupada pelas tropas de Madeira, passou a publicar, em Recife, a Sentinela da Liberdade na Guarita de Pernambuco. Pernambuco estava numa transição entre a Revolução Pernambucana, de 1817, e a Confederação do Equador, de 1824. O Frei Joaquim do Amor Divino Caneca, que fora preso em 1817 pelo Conde dos Arcos como capitão de guerrilhas sob o comando do Coronel Suassuna, e fora solto em 1821, fazia oposição aos governos do Imperador D. Pedro, embora tivesse celebrado missa de ação de graças pela sua aclamação ao título, em dezembro do ano anterior. A 17 de março de 1823 escrevera uma carta subversiva no Correio do Rio de Janeiro de João Soares Lisboa e a 25 de dezembro começará a escrever a Typhis Pernambucana, folha central na explosão nativista do ano seguinte - quando Recife será bombardeada pelo mesmo mercenário escocês, enquanto o batalhão de José Joaquim de Lima e Silva, com seu sobrinho Luís Alves como ajudante e sob o comando de seu irmão Francisco de Lima e Silva, avança por terra. O tio manda enforcar Frei Caneca - e, como todos se negassem a executar a pena bárbara, o faz arcabuzar.

O futuro Duque estreara no Batalhão do Imperador lutando a 28 de março de 1823. Seu tio traiu logo o comandante mercenário francês Labatut e, no dia 2 de julho, concretizara a adesão da Bahia à Independência, com a expulsão do General Madeira.

Nessa coisa da Independência meu tataravô Manuel de Sousa Martins fora um precursor, proclamando no dia 24 de janeiro de 1823, em Oeiras, a capital do Piauí, a adesão da Província. De lá marchara para Campo Maior - adesão a 2 de fevereiro - onde pouco depois, no dia 13 de março, se travou a grande Batalha do Jenipapo, que o Fidié ganhou e onde perdeu a guerra.

Feio foi o que aconteceu em Belém do Pará. Cochrane foi vitorioso a 15 de agosto. No dia 16 de outubro houve uma revolta contra os portugueses, que continuavam mandando na cidade. Um Grenfell, assecla do escocês, mandou trancar os brasileiros no porão do brigue São José Diligente, onde, aglomerados e sem ar, foram ainda por cima arcabuzados e cobertos de cal viva. No dia 22 eram 252 os mortos sufocados, marcados pelas faces embranquecidas e os olhos e lábios arroxeados como 'com cara de palhaços', nome que passou a denominar o brigue fúnebre.

Mas concluo essas notas de bicentenário lembrando o de uma heroína, Maria Leopoldina, nascida Leopoldina Carolina Josefa de Habsburgo-Lorena, nossa Imperatriz, que no dia 17 de fevereiro deu à luz a princesa Paula do Brasil e em novembro ficou grávida da princesa Francisca do Brasil. Educada com esmero, se interessava sobretudo por botânica e mineralogia - seu amigo José Bonifácio de Andrada e Silva era grande mineralogista e grande botânico. Ela trouxe de Viena uma comitiva de sábios, entre eles Spix e Martius, autores de registros fundamentais de nossas fauna e flora, inclusive o Flora Brasiliensis, que catalogou mais de 22 mil espécimes de mais de dois mil gêneros.

Portal Metrópoles Online , 23/05/2023

https://www.academia.org.br/artigos/bicentenarios

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José Sarney - Sexto ocupante da Cadeira nº 38 da ABL, eleito em 17 de julho de 1980, na sucessão de José Américo de Almeida e recebido em 6 de novembro de 1980 pelo Acadêmico Josué Montello. Recebeu os Acadêmicos Marcos Vinicios Vilaça e Affonso Arinos de Mello Franco.

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quarta-feira, 24 de maio de 2023

O Rio

Cyro de Mattos


 

Nasce de um olho que pulsa na terra. Desce a montanha num fio e encontra o leito, que o espera dormindo no sono milenar da terra. Bebe nuvem, come terra e segue no passo de cobra. Às vezes cai em outro rio, vira réptil enorme com o volume de água que lhe dá mais força. Atravessa a floresta, o deserto e a várzea com seus pastos verdes à margem, povoados de reses.

 Passa a ponte, contorna a vila, avista a cidade. Desce ao largo, sereno, bonito de ser visto. Despede-se das últimas casas na curva. Leva as cores que as borboletas tecem nos barrancos. Os sons das manhãs e tardes na linguagem formada pelos pássaros. Desde não sei quando acontece no seu destino de rio, rumo à sua morada última, onde rapidamente esquece o que era doce. O peixe, o espelho, o murmúrio entre as pedras polidas em carícia de água. Conversas com a lua, cantigas de lavadeira, casos de pescador. Os modos do areeiro com a pá, retirando a areia nos trechos rasos, do aguadeiro que traz a água boa e pura. Quando encontra o mar, o rio esquece bichos como a lontra e o jacaré, que abocanham o peixe, apurando a fome num estilo irado. Esquece até mesmo a pancada formosa. O vento, o sol, a chuva, seus eternos companheiros de viagem.

 Areia, pedra, peixe: tão água. Rio-mar de tão grande. Falo do rio Amazonas, como não poderia deixar de ser. Se for de águas negras o ano inteiro, refiro-me ao rio Negro. Se deixar a terra fresca nas margens, depois da enchente, certamente é o Nilo no milagre que faz surgir tantas lavouras para as populações ribeirinhas. Se for pequeno, transborda nas cheias, traz árvore, bicho grande morto, submerge casas. E assusta.

Os seres humanos sempre tiveram atração pela água, que é fundamental à sobrevivência. As grandes civilizações surgiram às margens de rios, citando-se aqui o Tigre e Eufrates, o Nilo, o Yangtse-Kiang. Cidades importantes brasileiras ficam às margens de rios: São Paulo, Porto Alegre, Recife, Aracaju, Belém e Manaus. Itabuna, chão de meu nascimento, também nasceu às margens do rio Cachoeira, que divide a cidade em duas partes.

Rio que inspira poetas e prosadores. Os sinais visíveis da escrita escorrem por caminhos de água e aos poucos vão erguendo um mundo. Não tem rio que se compare com aquele que banha nossa infância. Veja o que nos diz Fernando Pessoa, o genial poeta português, nesses versos: “O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia...” Quer dizer assim o poeta que o Tejo desce da Espanha, entra no mar de Portugal, “toda a gente sabe isso”, mas ninguém tem conhecimento do rio que passa na aldeia do poeta. Porque menos conhecido, pertencendo a menos gente, “é mais livre e maior o rio de minha aldeia”, observa. O rio de Fernando Pessoa, como o Cachoeira, “não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele.”, a navegar com gentes, coisas, num calendário que emerge de sentimento e pensamento. Soletra manhãs e noites por meio da palavra chamada saudade, essa janela íntima que as criaturas humanas gostam de abrir em seu estar no mundo.

 O homem cumpre cuidar o mundo em que vive, mas não é isso o que se vê há muito tempo. Não se toca com o que desfaz em pouco instante, ceifando aquilo que a natureza demorou anos para fazer com saber e arte. Uma lástima. É comum ver agora o rio agonizando, morrendo de sede, como a dizer: viver assim não vale a pena, ao invés do amor que dou, tanta morte me trazem. E dizer que qualquer rio só quer viver saudável, em perfeito entendimento com a natureza. Não como o rio de minha terra, que há anos chora água em sua descida triste. Nem de longe parece o rio de minha infância. De tão viscoso agora, com os detritos despejados por bocas de vômitos, de dia e de noite.

A mãe natureza dá poderes ao homem, fazendo da vida uma aliança proveitosa, que se renova nas estações, entre o despontar dos verdes e a colheita dos maduros. Na minha infância lembro das canoas que os pescadores traziam carregadas de peixe. Mas a natureza cobra um preço alto quando é maltratada. Não perdoa aquele que a fere sem hesitar um minuto.

 O homem vem desprezando a terra com nascentes puríssimas, afugentando as nuvens derramadeiras de chuva com a derrubada das matas. Na sua aptidão de disseminar a escuridão das coisas, prefere apertar com as mãos neutras a goela das águas. No cortejo que ofende a muitos, como se nada de mais estivesse acontecendo, continua fora do rio que brilha no raso e guarda tesouros no fundo.

 Numa capacidade incrível de persistir dentro da bruma.

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Cyro de Mattos
é escritor de contos, crônicas, romance, poemas, literatura infantojuvenil, ensaio e memorialista. Membro efetivo da Academia de Letras da Bahia. Doutor Honoris Causa da Universidade Estadual de Santa Cruz. Possui prêmios literários importantes. Também é editado no exterior.

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quarta-feira, 17 de maio de 2023

Desviados da ternura

Cyro de Mattos



Dor é vida, sofremos porque vivemos, li no poeta Jorge de Lima. A vida torna-se leve quando habitada com amor. Há milênios que as religiões estão tentando mostrar ao ser humano que só o amor constrói. Braço ao abraço a rota fica mais fácil. Há milênios, nós os humanos estamos construindo a história de nossa condição com intolerâncias, violência, egoísmo, traição, infâmia, em atestado absurdo, quase sem fim, do quanto gostamos de cultivar o ódio, fazer uso da farsa e vaidade, escrever a vida às avessas. Desviados da ternura, mais para urubu do que para curió. O que sabe hoje o nosso pobre coração humano de Deus? Do enigma, da dor e do amor?

Essa lição fácil, dar alpiste aos desvalidos, injustiçados, pássaros tristes com as penas doídas, o filho unigênito de Deus, aquele homem de coração solidário, pleno de amor, ensinou no dia a dia. Por onde andou o seu coração foi para dizer que Deus existe. Podemos senti-lo na flor do coração. Basta amar o outro. A flor do coração sente-se em outros que em afeto se juntam. O semeador de esperança, curador de enfermidades, vencedor da morte, o que abriu as portas da esperança, o bem amado salvador da humanidade, no país dos que elegiam a vida sustentada com os valores materiais, em que o ouro e a prata ocupavam a primazia, disseminava que como cantiga plantada na ciranda do deserto a morada neste planeta se faz possível com todas as mãos numa só comunhão.

Ghandy lembra que a cada dia a natureza produz o suficiente para nossas carências. Se cada um de nós tomasse o que lhe fosse necessário, não haveria pobreza no mundo. Ninguém morreria de fome. O genial Charles Chaplin fala do caminho da vida com beleza e liberdade. Lamenta que tenha ocorrido o desvio da ternura. Ressalta que a inveja, o ciúme e a cobiça envenenaram a alma dos homens, ergueram muralhas de ódio no mundo, fazendo-nos marchar a passos de ganso para a miséria e horror dos morticínios.

Gostava de oferecer um abraço de bom coração a qualquer um quando percorria a cidade, em seu rito de amar o próximo como se fosse a si mesmo. Em linguagem simples, com amenidade de nuvem, dizia que todos nós somos missionários. Consistia a prática em doar-se ao outro, semear o amor entre os excluídos de uma vida digna, muitos deles sem saber a razão da fome e sede. Ele assim prosseguia sereno, ao mesmo tempo que era o pai, o filho, o irmão.

Homem que doou a vida ao outro como a maior prova de amor.  Um libertador para os enfermos e possuídos do mal. O que foi enviado para ser crucificado como resultado da bondade que a todos ofertou. O que no último gemido ainda pediu ao Pai eterno que nos perdoasse, não sabíamos o que estávamos fazendo com o Amor.

 

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Cyro de Mattos é ficcionista, poeta e ensaísta

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domingo, 14 de maio de 2023

Aprendi em Paraitinga

Ignácio de Loyola Brandão

 


Carmem e Marcelo Mercadante, médicos e amigos, ligaram: 'Aqui, em São Luiz do Paraitinga, começa uma feira literária, a primeira. Passem o fim de semana conosco'. Nem tinham desligado, estávamos lá com o compositor Hélio Ziskind e Carla, influencer, minha cunhada.

Nesse meio tempo, o casal tinha entrado em contato com Suzana Salles, a cantora, que se comunicou com Alexandre Gennari e outros curadores, de modo que cheguei como autor-surpresa. A Feira. Pequena, impecável. Quando se quer, se faz, não chora.

A prefeita Ana Lúcia Bilard Sicherle presente na primeira fila. Terceiro mandato de uma mulher. Três dias com Marcelino Freire, Penélope Martins, Leusa Araujo, Rubia Konstantyn, Alice Ruiz, Milton Hatoum, Tati Bernardi e eu. Mais escritores da região, essenciais.

Sei disso, saí do interior. Auditórios lotados - gente espalhada pelo chão - em todas as sessões. Professores das proximidades. O antigo clima de alegria das festas literárias recomposto.

A cidade é conhecida por sua resiliência desde a enchente de 2010, catástrofe vencida pela população. Na fala de Milton Hatoum, sujeito sóbrio, corajoso, o mediador fez uma pergunta complexa sobre tempos atuais, inteligência artificial, redes sociais, GPT, etc. Milton, tranquilo: 'Não sei responder'. Foi aplaudido.

Aos 86 anos, aprendi uma lição. Aprende-se em qualquer idade, estando disposto. Posso responder não sei. Mas, e a vaidade? A coragem? Admitir a incapacidade ou tentar enrolar?

Vi em São Luiz que a plateia gosta de sinceridade. Marcelino Freire e Tati Bernardi corajosamente falaram de suas famílias, mães e pais, e tias, amigos, tocaram pela coragem de admitir neuras, loucuras, esquizofrenices. Porque na plateia sempre tem uma história esquisita igual à nossa.

Alice Ruiz revelou como é fácil escrever um poema e uma letra de música. Mas vá fazer sua letra, seu poema. Dureza, sensibilidade.

Esteve tão bem e encantadora a Festa Literária de São Luiz que até os cães gostaram. Em todas as sessões, um vira-lata entrou, passeou pela primeira fila, achou um lugar, se acomodou ficou até o final. Compenetrado. Disseram-me que acompanha todas as procissões da cidade, que é lindinha. O cão só não tinha crachá!

Abh, cães! Quase me esqueço. Carmem e Marcelo abrigam em seu sítio duas cadelas, Pitanga e Canela. No dia em que chegamos, as duas tiveram um entrevero, Pitanga caiu de um deck, machucou-se. Marcelo, que é ortopedista, já tratei a lombar com ele, cuidou, enfaixou. Pitanga passou a mancar e todo mundo a agradava com afagos e comidas. Duas horas depois, Canela também estava mancando, esperando agrados. Cães são iguais a nós.

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE 'ZERO' E 'NÃO VERÁS PAÍS NENHUM'.

Jornal O Estado de S. Paulo, 07/05/2023

https://www.academia.org.br/artigos/aprendi-em-paraitinga

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Ignácio de Loyola Brandão - Décimo ocupante da Cadeira 11da ABL, eleito em 14 de março de 2019 na sucessão do Acadêmico Helio Jaguaribe.

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sábado, 13 de maio de 2023

Maio lusófono

Arnaldo Niskier

 


No mês de maio, os países lusófonos celebram o 'mês da língua portuguesa'. Essa homenagem ao idioma e à cultura de origem portuguesa é um reconhecimento à relevância da língua e dos traços culturais partilhados por aqueles países que têm com Portugal uma relação histórica?

Reiteradas vezes temos dito, na Academia Brasileira de Letras, que a nossa obrigação primeira é cuidar com desvelo da língua portuguesa. E isso, naturalmente, parte da educação oferecida aos jovens estudantes.

Em todos esses anos fiz um extraordinário esforço para entender o fenômeno da educação, procurando trabalhar pelo seu constante aperfeiçoamento. Como professor e homem público, sempre busquei separar o que era ensino do que representava educação. Sem confundir as responsabilidades de cada um.

Como professor de História e Filosofia da Educação da UERJ, como autor de mais de três mil artigos e 100 livros sobre educação publicados e como autor de dezenas de conferências em diversos estados brasileiros, posso afiançar que conheço muito bem quais são os melhores caminhos que devem ser percorridos pela nossa educação, para que seja devidamente aperfeiçoada e bem disseminados os saberes e letras da Língua Portuguesa.

A literatura aproxima mundos e sonhos diferentes. A arte define e revela quem somos, que mitos cultivamos, em que ideais estéticos nos espelhamos, quais sentimentos conjugamos.

Um texto mal escrito abala a imagem do profissional que o escreveu e, sem dúvida, desqualifica o trabalho. Infelizmente, o descaso com o nosso idioma é notório, como podemos notar nos estudos frequentes da Academia Brasileira de Letras.

O Português é anterior a Portugal. Trata-se da quinta língua mais falada no mundo, a terceira mais falada no Ocidente e a mais falada no Hemisfério Sul. Partilhada por nove países, essa língua é um traço cultural e identitário que os unifica em torno de uma mesma matriz linguística. Se olharmos para a Península Ibérica, no século sexto, o espanhol e o galego, ambos derivados do latim, se ouviam por aquelas bandas. Nas palavras de Fernando Venâncio, autor do livro 'Assim Nasceu uma Língua - edição portuguesa da 'Guerra & Paz' - 'a história do português é, em larga medida, a história das suas tentativas de afastamento do galego'. O que é válido para o passado, será válido para o presente e para o futuro: como esperar que a fala do Brasil (ou de Angola, ou de Moçambique) continue fiel ao português de Portugal?

É preocupante a falta de conhecimento de diversos profissionais de diferentes áreas em relação à Língua Portuguesa. Alegam essas pessoas que a simples troca de um z por um s não muda o valor de uma petição advocatícia, a receita de um médico ou, ainda, o relatório de um administrador. Puro engano: um texto mal escrito abala a imagem do profissional que o escreveu e, sem dúvida, desqualifica o trabalho. Infelizmente, o descaso com o nosso idioma é notório, como podemos notar nos estudos frequentes da Academia Brasileira de Letras.

Devemos ter cuidado com o que se fala e com o que se escreve, pois a nossa imagem está sempre sendo avaliada.

Chumbo Gordo, 10/05/2023

https://www.academia.org.br/artigos/maio-lusofono

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Arnaldo Niskier - Sétimo ocupante da Cadeira nº 18 da ABL, eleito em 22 de março de 1984, na sucessão de Peregrino Júnior e recebido em 17 de setembro de 1984 pela acadêmica Rachel de Queiroz. Recebeu os acadêmicos Murilo Melo Filho, Carlos Heitor Cony e Paulo Coelho. Presidiu a Academia Brasileira de Letras em 1998 e 1999.

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quinta-feira, 11 de maio de 2023

 

O Escritor e o Mundo Conturbado de Hoje

 

 Entrevista

 de Helena Parente Cunha 

  a Cyro de Mattos

 


Helena Parente Cunha nasceu em Salvador de Bahia.  Depois de lecionar no Curso de Letras, da Universidade Federal da Bahia, transferiu-se para o Rio de Janeiro onde viveu há décadas, foi reconhecida como Professora Emérita da Universidade Federal do Rio de Janeiro e se tornou docente da Pós-Graduação da Faculdade de Letras. Autora de trinta livros publicados (poesia, conto, romance, ensaio, crítica literária) e quase uma centena de volumes com outros autores, no Brasil e no exterior. Seus livros receberam prêmios em concursos de expressão nacional.  É dessa mulher de caráter afável, erudita, criativa, que procuramos saber sobre a condição do escritor e os caminhos da literatura no mundo massificado de hoje, cheio de fortes agressões e cobranças. 

 

 

Cyro de Mattos  - Thomas Mann acha que ser escritor é uma maldição, que começa cedo, terrivelmente cedo. Para  você, que caminha nessa estrada feita de solidões e desejos, dores e ternuras, o que é ser escritor? Destino, profissão, missão?

 

Helena Parente Cunha - Como escritora, vejo-me  levada a tentar dizer o que sinto no turbilhão de emoções em que a vida nos coloca. E também tentar dizer o que penso neste mundo de violência e atravessado de contradições e desacertos. Como a realidade é sempre mais do que as palavras podem abarcar, muitas vezes, na tentativa de dizer o indizível, é preciso ultrapassar a língua, mesmo desrespeitando a gramática e as normas da correção. Mas não pelo simples gosto da transgressão e sim pela urgência do dizer.

Não acho que ser escritor seja maldição. Escrever é muitas vezes doloroso na busca da palavra que se recusa a vir à tona.  Mas é sempre altamente gratificante e prazeroso.

 

 

CM - Hoje vivemos em uma sociedade que prioriza o estômago, o corpo e o poder. Que função tem a literatura  em um mundo que cada vez mais concebe os valores éticos e espirituais como expressão de nadas?

 

HPC- Acredito que a literatura não tenha obrigações salvacionistas, mas tem um compromisso com seu tempo, expressa as tendências da sua época, misérias ou grandezas, frustrações ou vitórias, vícios, esperanças.

 

CM - Atualmente, em várias cidades brasileiras, sei da existência de inúmeros grupos de poetas e poetisas que se reúnem periodicamente, uma vez por semana ou por quinzena, por exemplo, para dizer poemas da própria autoria, sentindo-se estimulados para escrever sobre temas variados que podem transformar-se em livros individuais ou coletivos. Pelo que entendi, produzem por indiscutível prazer em criar e divulgar sua produção no próprio grupo ou na internet ou em performances em várias cidades e até estados. Por não haver sido ainda legitimada pelos críticos ou pelos cursos de Letras, essa produção fica um tanto à margem da chamada literatura oficial. De uma forma ou de outra, constitui uma das belas características de nossa pós-modernidade multifacetada, onde convivem os extremos positivos e negativos.

 

HPC – A sociedade contemporânea cultiva, em grande escala,  a imagem e o som como linguagens para dizer a vida. O suporte do livro tradicional mudou com a chegada dos meios eletrônicos.  O livro impresso está na fase terminal?

Não acredito nesta visão um tanto apocalíptica. Da mesma forma que a fotografia não acabou com a pintura nem o cinema desbancou o teatro, acho que a riqueza do real exige novas linguagens para ser expressa, sem que uma necessariamente derrube a outra.

 

CM – Não se pode deixar de considerar que o texto literário abraçou  um novo espaço democrático graças à internet, através do exercício usual de blogs, jornais e revistas eletrônicas.   Isso  faz bem ou mal à literatura?

 

HPC - Cada época tem seu modo específico de considerar o texto literário. Nossa época se caracteriza por mudanças radicais ocorridas em tempo recorde, o que resulta na coexistência de vários aspectos díspares e contraditórios que disputam espaço na página ou na tela. A especificidade do ser literário também se altera ao sabor das características temporais. No novo espaço democrático oferecido pelos meios eletrônicos, sinto que há mais flexibilidade para o gosto não só das elites acadêmicas, mas também para um espaço democrático.

 

CM  – Com a presença forte da televisão e dos meios eletrônicos, a literatura passou a ter grandes  concorrentes como instrumentos de lazer e forma de conhecimento. De que maneira isso afeta o autor, que já foi muito prestigiado em outros tempos?

 

HPC - Houve tempos em que o poeta era cultuado como um profeta ou enviado dos deuses. Em outros tempos se destacava como porta-voz da ideologia vigente.

E hoje, onde a tendência se volta para a multiplicidade de expressão, muitas vezes o autor ou a autora se vê pressionado pela originalidade do texto e pela urgência em inovar, o que pode redundar em extravagâncias e obsessão pelo ineditismo. O prestígio vivido pelo escritor no passado me parece obscurecido pela excessiva valorização do poder econômico e seu afã de abranger e deformar valores e princípios.

 

CM - Uma enxurrada de autores continua a passar  por debaixo da ponte. Hoje se escreve mais para menos leitores?

 

HPC- Não sei se hoje se escreve mais para menos leitores, entretanto, talvez por conta da democratização trazida pelos meios eletrônicos, um número maior de autores encontrou mais possibilidades para suas publicações, considerando-se ainda as atuais tendências para abolir hierarquias e hierarquizações, rejeitar regras e formulações que em outros tempos se impunham para a criação literária.

 

CM – Seu romance, Mulher no Espelho, Prêmio Nacional Cruz e Sousa, da Fundação Cultural de Santa Catarina, já em décima edição, é um marco na moderna ficção feminina, a partir da década 70. Fale um pouco desse romance maior em nossas letras.

 

HPC -  Como disse,  escrevo para dizer o que sinto e também o que penso e muito do que imagino. E para apontar abusos, injustiças, violência da sociedade patriarcal, desesperos do sentimento de culpa, hipocrisias das fórmulas vazias da falsa convivência de uma sociedade refém das aparências, as certezas de verdades mentirosas, os preconceitos contra os excluídos, o desejo, o corpo, mulheres anuladas ante o todo-poderoso pai ou marido, distorções da cultura machista, dilaceramento entre dúvidas e milenares perguntas sem respostas. Entre momentos líricos, irônicos, satíricos, dramáticos, trágicos, se sucedem monólogos, reflexões e angústias.

Escrever este livro foi aprendizado cruel que me levou a mais de um ano de depressão. Mas o prazer dessa escrita me trouxe a recompensa de sentir que vale a pena ser escritora.

 

HPC  – Fale também sobre  Impregnações na Floresta, seu último livro de poesia,  motivado por uma viagem feita à Amazônia. Um belo livro  revestido  das percepções  íntimas, interiorizado por seu sentimento  e sensibilidade decorrente do seu estar no mundo. Como a crítica e seus leitores receberam o livro?   

- Foi um livro que procurou reviver momentos de silêncio e contemplação no encantamento indizível da floresta. Acho que, por este motivo, as pessoas que se comunicaram comigo me pareceram, de certo modo, integradas naquela magia.

 

CM  –.  Embora sua obra seja de alto nível, elaborada em várias frentes,   estudada em universidades, não desfruta da mídia que privilegia um pequeno grupo.  Como você encara esse tempo que divulga inverdades e valores duvidosos?

 

HPC- Para lhe dar uma resposta justa, teria que ler mais sobre o que a mídia  publica e mais dos livros com que a mídia se ocupa.

 

CM – Entre suas atividades literárias, qual a que mais lhe completa, a de ficcionista, poeta, ensaísta, crítica  ou professora universitária?

 

HPC -  A depender do meu estado de espírito, eu percebo o gênero que mais me convém naquele momento. Quando me deixo levar pela emoção, pela fantasia, escolho o lírico, porquanto me parece que o poema curto concentra melhor o transbordar do sentimento.  Diante de realidades concretas que me chamam a atenção pelo abuso do poder, intolerância, discriminação, prepotência, etc, prefiro narrar e assinalar minha revolta ante os absurdos de muitos dos relacionamentos humanos. Nessas circunstâncias, é preferível o conto ou o romance. No ensaio proponho um estudo sobre questões de ordem cultural, social, psicológica e que em geral tem a ver com minhas pesquisas ou temas de minhas aulas. Quando escrevo sobre escritores, jamais critico, mas se o texto não me agrada, prefiro me calar.

 

Nota - Essa entrevista foi concedida para figurar no livro Palavras, de Cyro de Mattos, ainda inédito. Helena Parente Cunha faleceu em 11 de fevereiro de 2023.

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